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Continuamos os retratos, que foram mais retro-actos, inspirações em descrições passadas, mas que no caso da Dinastia de Avis, que se segue, não deveriam oferecer grande dúvida, já que não havia propriamente falta de pintura e pintores em Portugal ao tempo dos descobrimentos.

Houve, isso sim, uma grande capacidade de sumir com tudo o que existia... e tal não se justifica apenas pela cobiça espanhola em período filipino, pela cobiça francesa em período napoleónico, ou mesmo pelo sismo de 1755. Tal justifica-se especialmente por actuação interna, sempre presente, e sempre convenientemente ignorada.

Aproveito para falar ainda nos Painéis de S. Vicente, porque vem a propósito de alguns rostos em questão... mas não tenciono voltar a esse assunto, que considero "resolvido". 

D. João I
Diz Brito: "Teve o rosto comprido, mais magro que gordo, a testa pequena, o cabelo preto, & não muito basto, trouxe-o sempre comprido & muy concertado, os olhos teve pretos pequenos & de muita viveza, seu retrato temos antigo, & quasi de seu tempo, ainda que por ser tirado em velho não mostrará tudo conforme a relação da Crónica, mais que nuns longes, que se podem ver na figura que aqui vai esculpida."

D. João I (à esquerda na Sala dos Capelos, que é praticamente idêntica à de Brito, à direita)

Neste caso, como já discursei sobre a presença dos rostos da Dinastia de Avis nos Painéis de S. Vicente, e como nem considero mudar de opinião sobre eles... apresento aqui a "versão sem barba", considerando devidamente estranho que Bernardo de Brito tenha considerado os rostos noutros túmulos, mas não faça referência ao túmulo de D. João I no Mosteiro da Batalha, no que diz respeito a D. João I ou a D. Duarte.

D. João I (nos Painéis, segundo Alvor-Silves, comparado com iluminura da época e com rosto no Mosteiro da Batalha)

D. Duarte I
Segundo Brito: "Seu retrato nos ficou de seu tempo, & deles vi dois conformes, um, que ficou em uma tábua pequena no Mosteiro da Batalha, donde o tirou o Cardeal D. Henrique & outro que tenho em meu poder tirado deste, que tenho por muy autêntico, tanto por sua antiguidade, como por condizerem suas feições com as próprias que descreve sua história."


D. Duarte (à esquerda na Sala dos Capelos, que é praticamente idêntica à de Brito, ao centro, e à cópia colorida, à direita)

O mesmo comentário que fiz antes... ou seja, o rosto que está no túmulo de D. Duarte não apresenta barba, e por várias razões considero-o muito identificável ao do Painel de S. Vicente. Mais uma vez, Bernardo de Brito omite o rosto esculpido no Mosteiro da Batalha, talvez por ser a sua versão sem barba.
D. Duarte (nos Painéis, segundo Alvor-Silves, comparado com o rosto no Mosteiro da Batalha)

D. Afonso V
Diz Brito: "Seu retrato tirei assim dos mais apurados, que há no Reino, como doutro que houve de França, tirado no tempo que lá andou, muy conforme com os que cá temos."
 
D. Afonso V (à esquerda na Sala dos Capelos, que é praticamente idêntica à de Brito, ao centro, bem como à cópia colorida, à direita)

Também neste caso, há uma figura correspondente nos Painéis de S. Vicente... no chamado "painel dos frades", que evidencia farta barba e cabelo, e que poderá facilmente corresponder a D. Afonso V, mas é a própria posição na sequência de destaque das 3 figuras, que levou à fácil identificação da composição na lógica de representar o "painel dos frades" como reis antecessores de D. João II.

Há, é claro, várias outras razões explicadas por todo o contexto dos Painéis, e que aqui omito, remetendo para essas páginas anteriores. 
Para que não fiquem dúvidas relativamente à minha posição sobre a representação geral dos Painéis de S. Vicente, exposta antes, a minha convicção mantém-se a mesma, ou é ainda maior... e sinceramente, dada a confirmação pelo "Manuscrito do Rio", algo que só li depois, parecem-me todas as outras hipóteses - abundantemente veiculadas, numa completa fantasia, sem pés nem cabeça.

D. João II
Segundo Brito: "Foi homem de meia-estatura, bem proporcionado, como mostra este retrato, que se tirou de outro seu, que está no Mosteiro de S. Domingos de Lisboa, onde está pintado no altar de Nª Senhora com a Rainha sua mulher. O escudo se lhe acrescentou porque ele o reduziu ao modo em que hoje está, com 5 dinheiros em cada escudo & 7 castelos no escudo vermelho, a que chamamos Orla: sendo antes semeado de quantos cabiam & tendo cada um dos escudos pequenos 30 dinheiros."

 
D. João II (à esquerda na Sala dos Capelos, que difere pelo escudo, da imagem de Brito, ao centro,  e da cópia colorida, à direita)

Comparando com a imagem dos Painéis, sem barba, é talvez uma das que mais se afasta desta representação barbuda, e que se prende com todo o simbolismo da morte do filho Afonso, onde determinou rapar a barba, um gesto que foi acompanhado por todo o reino. Por isso, nessa altura considerei outras imagens que haviam sido atribuídas a si:

D. João II enquanto figura central dos Painéis (à esquerda) e duas representações comparativas (a central é supostamente um seu retrato em vida).

Portugal, esse grande sumidouro de tudo o que é registo histórico, terá perdido esse retrato de que falava Bernardo de Brito, como estando no Convento de S. Domingos de Lisboa. Por algumas semelhanças, o da Sala dos Capelos poderá ser candidato a cópia directa, dada a ausência de escudo, que Bernardo de Brito inclui por iniciativa própria. No entanto, dada a cópia directa posterior (a tempo de D. Pedro II ou D. João V), podemos presumir que o quadro do altar de S. Domingos "sumiu" durante o período filipino.
Nestas coisas não se deve perder esperança, porque os Painéis foram encontrados 400 anos depois, servindo então de plataforma para as obras de restauro na Santa Engrácia... Assim que foram encontrados, logo Columbano Bordalo Pinheiro seguiu a conclusão óbvia, mas achou-se conveniente propalar outra história absurda, e manter os Painéis no estatuto de "mistério". 
O funcionamento deste país é um absurdo pegado, desde há 500 anos a esta parte, para não dizer mais.

D. Manuel
Sobre D. Manuel, diz Brito: "Foi el rey de corpo meão, mais sobre o pequeno que grande, a barba teve castanha escura, o nariz curto rombo & grosso, a boca grande & grossa, mas muy corada: sendo velho trazia a barba rapada, como está esculpido no vulto de pedra sobre a igreja de Belém, que se fez pelo próprio natural, com tanto artifício que diziam alguns antigos que só lhe faltava falar & dali se tirou o retrato que aqui vai esculpido.

D. Manuel (à esquerda na Sala dos Capelos, ao centro a imagem de Brito, e à direita a cópia colorida... todas similares)

O que é interessante nestas descrições de Bernardo Brito é que ele de certa maneira considera que o seu testemunho poderá sobreviver mais do que as representações de quadros ou esculturas que vê... quer no caso do quadro do altar de S. Domingos - que viria mesmo a sumir; quer no caso da escultura na Igreja dos Jerónimos, que ainda permanece:
A estátua de D. Manuel nos Jerónimos, de que fala Bernardo de Brito.
D. João III
Diz Brito: "Era de presença Real, cheia de Majestade, tanto que algumas pessoas lhe indo falar se perturbavam: seu retrato se conserva em diversas partes, muito ao vivo, em particular no mosteiro de Belém, em uma tábua que está no coro, posta no pé de um devoto crucifixo, na qual está também o príncipe seu filho & muitos irmãos seus retratados excelentissimamente. E daí se tirou esta medalha, sem outra diferença mais que o ceptro e a coroa, que lá não tem & eu lhe fiz por aqui, à imitação dos outros retratos."

D. João III (à esquerda na Sala dos Capelos, ao centro a imagem de Brito, e à direita a cópia colorida... similares, excepto talvez na coroa e ceptro, que Brito acrescentou)

No blog "do porto e não só" está uma detalhada análise da pintura ao tempo de D. Manuel e D. João III, mas não encontrámos um quadro que corresponda à descrição do que fala Bernardo de Brito - poderá ser outro caso de actuação do sumidouro nacional.

D. Sebastião
Acerca de D. Sebastião diz Brito: "Seu retrato, depois de muitas diligências, me veio à mão por via de uma pessoa nobre & muy curiosa & amiga de conservar a memória de sua pátria, do que se esculpiu o que aqui pus."
D. Sebastião (à esquerda na Sala dos Capelos, ao centro a imagem de Brito "sem coroa", e à direita uma versão diferente)

O quadro que encontro com mais semelhança, relativamente ao exposto por Brito é um que está na wikipedia... mas com "coroa". Extremamente curioso, porque Brito afirma várias vezes adicionar a coroa quando faltava, e neste caso parece fazer o oposto! 
D. Sebastião (Museu de Évora)
Depois, como todos sabemos, o Portugal histórico idealizado entrou em estado comattoso, e tal qual bela adormecida, passa por sonhos de um passado glorioso misturado com pesadelos de corjas reinantes.

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publicado às 23:17


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