A forma como o regime irá encobrir a Salazar a sua demissão por Américo Tomás, é especialmente bem retratado numa entrevista que Roland Fauré, o director do jornal francês L'Aurore, caracterizava desta forma:
Assim quando Fauré regressa a França, o jornal fará disso uma história sensacional - com o título "Salazar acredita que ainda governa Portugal":
A história parecia demasiado incrível, retirada de uma tragédia shakespeariana, ter um rei enclausurado no seu castelo, tendo a ilusão de que ainda reinava, e Fauré decidiu investigar por si mesmo. A promessa que teve que fazer - não revelar a Salazar que já não era ele o Presidente do Conselho.
Portanto, esta entrevista de Fauré, em 20 de Agosto de 1969, é o testemunho mais incrível do teatro em cena.
Salazar aparece como suficientemente lúcido para manter uma conversação sólida, e a pergunta que ficará é a de saber se o próprio tinha consciência de que tinha sido afastado. Afinal, com a assumpção de ignorância, ele acabava por obrigar a que os ministros continuassem a visitá-lo, a darem-lhe conta do que se passava, e a ouvirem a sua opinião sobre cada assunto.
Afinal, sejamos claros... o que tivemos aqui foi uma absoluta "
teoria da conspiração".
O que tivemos aqui foi aquilo que é sistematicamente negado poder acontecer.
Ou seja, é negado sucessivamente que haja poderes de bastidores que, mantendo uma fachada de poder ao líder, tenham em funcionamento um governo completamente diferente, indiferente à sua opinião, condicionando a informação que chega a uns e a outros.
Só que a situação é sempre muito mais complicada do que aparenta ser.
Salazar, ao forçar a visita dos ministros, ainda que fosse no simples encenar da palhaçada, conseguia manter funções essenciais... de influência. Ou, conforme ele dizia - "
eu não imponho decisões", as decisões eram ele "
esboçadas" e tomadas "
oficialmente no conselho" a que presidia Américo Tomás.
Mas afinal, não era sempre isso que acontecia? - Ele nunca poderia controlar por completo todas as decisões... qualquer líder é sempre limitado pelas informações a que tem acesso.
Se o sistema arranjara outro pé para aquela bota, o pé de Marcelo Caetano, a encenação forçava a que os ministros, afinal escolhidos por Salazar, não pudessem ser demitidos por Marcelo, enquanto durasse a encenação. Assim, quem aparecia afinal como figurante naquele teatro, no Verão de 1969?
Marcelo ou Salazar?
Consta que Marcelo tentou, mas pouco conseguia mudar o rumo político anterior.
Ainda que tivesse um novo pé, a bota tinha o número de Salazar. O sistema funcionara como uma bota que apenas calçara o seu pé, qual Cinderela eleita para se casar com um poder inerente à sociedade portuguesa. Para manter o pé, Marcelo teria que conformar a sua cabeça à medida do "Botas".
Marcelo ficaria furioso com esta entrevista de Salazar, e depois do afastamento de Franco Nogueira, e das eleições de Outubro 1969 (posteriores à entrevista), em Janeiro de 1970, Marcelo Caetano procederá a uma maior reformulação ministerial. Decidira calçar as suas próprias botas.
Se Salazar mantinha alguma lucidez, já não podia dizer "
como sabe, ele não faz parte do governo". O sucessor estava finalmente encontrado, e aquele teatro já seria muito mais difícil de manter. Nos seis meses seguintes o estado de saúde de Salazar vai agravar-se sucessivamente até à sua morte em 27 de Julho de 1970. A conta apresentada pelo Hospital da CUF, envolvendo um total de
43 médicos, e a visita de especialistas americanos, foi considerada
exorbitante. O sistema arrumava o "Botas".
Na perspectiva da "
teoria da conspiração" vigente, Salazar terá sido enganado por todos. Pelos mais próximos, com o pretexto da "
verdade poder afectar a sua saúde", e pelo sistema que aceitara Caetano como sucessor. Se todos os fiéis, desde a governanta Maria de Jesus, ao Cardeal Cerejeira, e tantos outros, aceitaram sem pestanejar esta decisão, parece inverosímil, ainda que sejam bem conhecidos casos em que as famílias decidem enganar, pensando no "melhor" para o enganado. Talvez muito mais natural é que Salazar desviasse o assunto, sempre que lhe pretendiam dar a entender a realidade, preferindo assim a situação de afastamento, com influência, conforme descrevera a Roland Fauré.
Depois, quando ficou definitivamente afastado, já lhe seria indiferente o resultado, dada a sua clara impotência para influir nas decisões, e terá esperado pelo fim, mais ou menos apressado pelas circunstâncias da doença.