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Camara obscura

03.05.17
Quem já esteve num quarto completamente escuro, com a luz a entrar apenas por uma pequena frincha, poderá ter observado o fenómeno da "câmara escura" - ou seja, vemos reflectido numa parte do tecto ou da parede do quarto, o que se passa na rua... mais do que isso, passa-se como um filme a cores!

O princípio base de qualquer aparelho fotográfico, inclusive das actuais câmaras digitais, é esse princípio da câmara escura... que estranhamente não é muito divulgado, mas que muito provavelmente seria do conhecimento pré-histórico.

Para ilustrar o assunto, usamos as experiências que Abelardo Morell fez recentemente nalguns quartos, com paisagens que são por si esclarecedoras do local onde foram feitas.
Abelardo Morell - Camera Obscura (longa exposição em quartos escuros) 
- quarto no Hotel Frantour em Paris (1999), e quarto no Hotel Loews em Filadélfia (2014).

A questão que se pode colocar, para quem desconhece fotografia, é a de como as paisagens exteriores acabam por ficar tão nitidamente reflectidas no interior das paredes do quarto escuro?
- Bom, esse é o princípio da câmara escura...
... a luz entra dentro da câmara (do quarto) por um pequeno orifício, as imagens aparecem invertidas, e apresentam melhor definição quando o buraco é mais pequeno... tendo por outro lado a desvantagem de que se entrar menos luz, ver-se-à muito pior a imagem exterior. Quando o buraco aumenta de dimensão, ainda que entre mais luz, as imagens acabam por ficar muito mais desfocadas.
No caso das experiências feitas por Abelardo Morell, como ele visou uma grande definição, o orifício deveria ser pouco maior que o buraco de uma agulha, o que implicava tão pouca luz, que as fotos que vemos em cima tiveram entre 5 e 10 horas de exposição.

Interessa aqui notar que este tipo de fenómeno é perfeitamente natural e visível em múltiplas situações, não sendo necessária exposição exagerada. A wikipedia tem uma página muito boa sobre a câmara escura, onde é ilustrado um exemplo visível no sótão do castelo de Praga:
Sótão de Castelo em Praga faz câmara escura com imagem do Palácio no exterior. (wikipedia)

Interessa que independentemente de se conseguir registar a imagem numa película, ela seria visível desde tempos imemoriais, especialmente em cavernas.
Por exemplo, na Idade do Gelo, devido ao frio, se os homens tentassem tapar a entrada, um simples buraco nessa cobertura iria provocar o efeito de câmara escura nas paredes da caverna...
Isso permitiria, por outro lado, que as paredes da caverna (próximas do exterior) servissem como telas prontas a uma cópia do desenho projectado naturalmente - ainda que de forma invertida.
Tanto mais, quanto aos pedreiros foi possível com tijolos tornar quartos escuros, e notar que uma pequena abertura de luz permitiria ver o exterior reflectido nas paredes, como uma imagem fotográfica. Assim, tais técnicas estariam ao dispor desde o tempo das primeiras construções.

Portanto, a ideia subjacente à fotografia existia há milénios. Se Platão na Alegoria da Caverna falava em sombras projectadas, o seu discípulo Proclo no Séc. V, comentava o assunto em termos do efeito de reflexão que pode ser visto na câmara escura.

O processo foi usado muito certamente para fazer desenhos, ou para treinar o traço, sobre a imagem desenhada. Não é assim de excluir que alguns desenhos, até pré-históricos, tenham sido feitos acompanhando o traço visível na parede rochosa.
Os quadros romanos mais realistas, como os retratos de Fayum, podem ter sido elaborados usando esta técnica, colocando a pessoa retratada no exterior, e o pintor no interior de uma câmara escura.
É pelo menos reportado que alguns quadros holandeses do Séc. XV, e seguintes, podem ter sido produzidos desta forma, e é assumido que se tratou de uma técnica de pintura até ao aparecimento das primeiras fotografias no Séc. XIX.
Ou seja, a grande novidade no Séc. XIX foi apenas o conseguir-se fixar a imagem, usando uma emulsão de prata muito sensível à luz... mas nem será de excluir que existissem outras substâncias que reagindo à luz, como a fotossíntese, permitissem um registo da imagem vista.

Um exemplo assumido da técnica da Camara Obscura é visto nas pinturas de Canaletto, nomeadamente nas suas paisagens de Veneza. Além disso, pelo simples uso de uma lente prismal, temos o princípio da Camara Lucida (ou câmara clara) que permite a projecção do que se vê numa mesa de pintura.
A tese de que este tipo de técnicas permitiu a grande diferença entre as pinturas pré-renascentistas e as pinturas realistas seguintes foi defendida por Hockney e Falco.
Convém notar que com o aparecimento e divulgação da fotografia, ficando mais clara a facilidade de fazer quadros realistas, isso levou ao aparecimento das técnicas alternativas de pintura - que se seguiram, desde o impressionismo até aos estilos completamente abstractos e desligados da realidade.

Como mágicos que não gostam de revelar os seus segredos, com medo do público achar menos fascinante o seu trabalho de ilusão, também os pintores não gostaram de ser associados a estas técnicas de simplificação, que usavam o auxílio da câmara escura, da câmara clara, ou outros artifícios com espelhos ou lentes... 
Sempre que existiu uma diferença significativa entre o conhecimento do mago e a ignorância do espectador foi possível iludir plateias. Se algumas destas ilusões eram assumidas como tal, para conforto do espectador, muitas outras foram usadas como simples truques de magia visando captar uma credulidade religiosa... e isso seria tanto mais facilitado quando se visava impressionar crianças, ou camponeses menos instruídos, sendo ainda claro que não foi preciso muito para iludir um desaparecimento da Estátua da Liberdade perante uma plateia incrédula.

Finalmente, só uma pequena nota acerca da palavra "câmara"... que, como se poderá ler no Vocabulário de Bluteau, trata-se "da casa em que se dorme", ou melhor, a "câmara" é onde está a "cama", portanto um local privado, com pouca luz. Desse significado antigo, aos outros significados que se lhe seguiram, que foram desde "camareiro" (moço que assistia o senhor na câmara), a "camarata" ou "camarada", na partilha de camas, até às "câmaras" municipais, foi apenas um pequeno passo de privacidade.

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publicado às 04:38

Camara obscura

03.05.17
Quem já esteve num quarto completamente escuro, com a luz a entrar apenas por uma pequena frincha, poderá ter observado o fenómeno da "câmara escura" - ou seja, vemos reflectido numa parte do tecto ou da parede do quarto, o que se passa na rua... mais do que isso, passa-se como um filme a cores!

O princípio base de qualquer aparelho fotográfico, inclusive das actuais câmaras digitais, é esse princípio da câmara escura... que estranhamente não é muito divulgado, mas que muito provavelmente seria do conhecimento pré-histórico.

Para ilustrar o assunto, usamos as experiências que Abelardo Morell fez recentemente nalguns quartos, com paisagens que são por si esclarecedoras do local onde foram feitas.
Abelardo Morell - Camera Obscura (longa exposição em quartos escuros) 
- quarto no Hotel Frantour em Paris (1999), e quarto no Hotel Loews em Filadélfia (2014).

A questão que se pode colocar, para quem desconhece fotografia, é a de como as paisagens exteriores acabam por ficar tão nitidamente reflectidas no interior das paredes do quarto escuro?
- Bom, esse é o princípio da câmara escura...
... a luz entra dentro da câmara (do quarto) por um pequeno orifício, as imagens aparecem invertidas, e apresentam melhor definição quando o buraco é mais pequeno... tendo por outro lado a desvantagem de que se entrar menos luz, ver-se-à muito pior a imagem exterior. Quando o buraco aumenta de dimensão, ainda que entre mais luz, as imagens acabam por ficar muito mais desfocadas.
No caso das experiências feitas por Abelardo Morell, como ele visou uma grande definição, o orifício deveria ser pouco maior que o buraco de uma agulha, o que implicava tão pouca luz, que as fotos que vemos em cima tiveram entre 5 e 10 horas de exposição.

Interessa aqui notar que este tipo de fenómeno é perfeitamente natural e visível em múltiplas situações, não sendo necessária exposição exagerada. A wikipedia tem uma página muito boa sobre a câmara escura, onde é ilustrado um exemplo visível no sótão do castelo de Praga:
Sótão de Castelo em Praga faz câmara escura com imagem do Palácio no exterior. (wikipedia)

Interessa que independentemente de se conseguir registar a imagem numa película, ela seria visível desde tempos imemoriais, especialmente em cavernas.
Por exemplo, na Idade do Gelo, devido ao frio, se os homens tentassem tapar a entrada, um simples buraco nessa cobertura iria provocar o efeito de câmara escura nas paredes da caverna...
Isso permitiria, por outro lado, que as paredes da caverna (próximas do exterior) servissem como telas prontas a uma cópia do desenho projectado naturalmente - ainda que de forma invertida.
Tanto mais, quanto aos pedreiros foi possível com tijolos tornar quartos escuros, e notar que uma pequena abertura de luz permitiria ver o exterior reflectido nas paredes, como uma imagem fotográfica. Assim, tais técnicas estariam ao dispor desde o tempo das primeiras construções.

Portanto, a ideia subjacente à fotografia existia há milénios. Se Platão na Alegoria da Caverna falava em sombras projectadas, o seu discípulo Proclo no Séc. V, comentava o assunto em termos do efeito de reflexão que pode ser visto na câmara escura.

O processo foi usado muito certamente para fazer desenhos, ou para treinar o traço, sobre a imagem desenhada. Não é assim de excluir que alguns desenhos, até pré-históricos, tenham sido feitos acompanhando o traço visível na parede rochosa.
Os quadros romanos mais realistas, como os retratos de Fayum, podem ter sido elaborados usando esta técnica, colocando a pessoa retratada no exterior, e o pintor no interior de uma câmara escura.
É pelo menos reportado que alguns quadros holandeses do Séc. XV, e seguintes, podem ter sido produzidos desta forma, e é assumido que se tratou de uma técnica de pintura até ao aparecimento das primeiras fotografias no Séc. XIX.
Ou seja, a grande novidade no Séc. XIX foi apenas o conseguir-se fixar a imagem, usando uma emulsão de prata muito sensível à luz... mas nem será de excluir que existissem outras substâncias que reagindo à luz, como a fotossíntese, permitissem um registo da imagem vista.

Um exemplo assumido da técnica da Camara Obscura é visto nas pinturas de Canaletto, nomeadamente nas suas paisagens de Veneza. Além disso, pelo simples uso de uma lente prismal, temos o princípio da Camara Lucida (ou câmara clara) que permite a projecção do que se vê numa mesa de pintura.
A tese de que este tipo de técnicas permitiu a grande diferença entre as pinturas pré-renascentistas e as pinturas realistas seguintes foi defendida por Hockney e Falco.
Convém notar que com o aparecimento e divulgação da fotografia, ficando mais clara a facilidade de fazer quadros realistas, isso levou ao aparecimento das técnicas alternativas de pintura - que se seguiram, desde o impressionismo até aos estilos completamente abstractos e desligados da realidade.

Como mágicos que não gostam de revelar os seus segredos, com medo do público achar menos fascinante o seu trabalho de ilusão, também os pintores não gostaram de ser associados a estas técnicas de simplificação, que usavam o auxílio da câmara escura, da câmara clara, ou outros artifícios com espelhos ou lentes... 
Sempre que existiu uma diferença significativa entre o conhecimento do mago e a ignorância do espectador foi possível iludir plateias. Se algumas destas ilusões eram assumidas como tal, para conforto do espectador, muitas outras foram usadas como simples truques de magia visando captar uma credulidade religiosa... e isso seria tanto mais facilitado quando se visava impressionar crianças, ou camponeses menos instruídos, sendo ainda claro que não foi preciso muito para iludir um desaparecimento da Estátua da Liberdade perante uma plateia incrédula.

Finalmente, só uma pequena nota acerca da palavra "câmara"... que, como se poderá ler no Vocabulário de Bluteau, trata-se "da casa em que se dorme", ou melhor, a "câmara" é onde está a "cama", portanto um local privado, com pouca luz. Desse significado antigo, aos outros significados que se lhe seguiram, que foram desde "camareiro" (moço que assistia o senhor na câmara), a "camarata" ou "camarada", na partilha de camas, até às "câmaras" municipais, foi apenas um pequeno passo de privacidade.

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