, mas o registo é tão singular que merece nova dedicatória.
Em poucas palavras, Brunilda foi uma princesa visigoda, nascida em Toledo, circa 543 d.C.
Casou-se com o rei da Austrásia, Sigeberto, e envolveu-se numa brutal luta de poder com a mulher do rei da Neustria, de nome Fridegonda. Viveu setenta anos, e tentou assegurar a sucessão do filho, netos, e bisneto, acabando finalmente às mãos do filho de Fridegonda, Clotário II, em 613 d.C.
O ódio remanescente era tal que Clotário II decidiu pela sua execução brutal, primeiro entregando-a às exigências das suas tropas durante 3 dias, e depois sendo esquartejada ou arrastada por cavalos.
Falo deste tema, porque ao ver as moedas ibéricas, deparei com uma do rei visigodo Gundemar.
Esta moeda, e as seguintes, servem também para notar como, de um momento para o outro, as perfeitas caras de desenhos romanos, passaram a dar lugar a coroas com bonecos de crianças.
Mas o nome de Brunilda foi de tal maneira forte, que se foi quase esquecido oficialmente, foi-se impondo pela mitologia, em histórias alternativas, que bebiam em parte do original. Na saga dos Nibelungos passou a nome mítico de rainha da Islândia, foi valquíria na mitologia nórdica, tendo ficado imortalizada com Siegfried na obra prima de Wagner - o Anel dos Nibelungos.
Desde o "Senhor dos Anéis" até à mais recente série popular "Guerra dos Tronos", todos acabam por ir beber ao mítico ambiente primevo medieval, um ambiente algo sinistro em que a original Brunilda foi uma das protagonistas principais.
A ideia de uma rainha, forte e bela como uma valquíria, trouxe a protagonista até para a
banda desenhada da Marvel, e chegou a filme, enquanto rainha islandesa (Kristanna Loken interpretou o papel de Brunilda no filme alemão "
Dark Kingdom: The Dragon King", inspirado no Anel dos Nibelungos).
A primeva sociedade medieval, completamente abalada pela queda do Império Romano ocidental, pouco mais tinha que um século quando a história de Brunilda a marcou profundamente.
Chegou-nos ainda a história concorrente do Rei Artur, de Guinevere e Lancelot, mas aqui as coisas chegam a um nível bem mais complicado.
O ambiente é a França merovíngia, em que Childerico se torna o seu primeiro rei, já que o seu pai Meroveu tem uma existência semi-lendária. É através de Childerico e do seu filho Clóvis que se funda a dinastia merovíngia.
Anel e selo de Childerico I (CHILDIRICI REGIS), o primeiro rei merovíngio.
Não é de excluir que a herança deste Anel pudesse ser relevante na história.
A França é unida por Clóvis I, mas dividida pelos filhos na sua sucessão.
Um deles, Clotário I, acaba por reunir o território às expensas de guerras contra os irmãos, mas de novo, na sua sucessão, a França é dividida entre os filhos, e a guerra renasce.
Moeda de prata de Clotário I (CHLOTHAHIRIVI).
De um lado teremos Chilperico, rei da Neustria (Soissons), do outro Sigeberto, rei da Austrásia (Metz), e a meio o irmão Gontrão, rei da Burgundia (Borgonha, Orléans), para além de outro irmão, rei de Paris, que morre cedo.
Esq: Moeda de ouro de Chilperico (CHILPRCVS RES). Dir: Moeda de ouro de Gontrão, rei da Borgonha (Burgúndia). Desde o início Chilperico tenta sem sucesso invadir os reinos dos irmãos.
Ao contrário da tradição de poligamia merovíngia, Sigeberto decide casar com Brunilda, princesa visigoda, e rapidamente reconhecida como rainha de grande inteligência... ou ardil.
Chilperico, com alguma inveja, decide imitar o irmão, e casa com Galsuinta, irmã de Brunilda, prometendo deixar a poligamia, que mantera com Audovera e Fridegonda (entre outras).
Casamento de Brunilda com Sigeberto (crónica do Séc. XV), e moeda de Sigeberto. No entanto, por instigação de Fridegonda, Galsuinta é assassinada em 569, o que naturalmente causa uma ira permanente na irmã Brunilda e, assim, em Sigeberto. Seguem-se 40 anos de guerra civil entre a Neustria e a Austrásia, resultado do ódio entre Fridegonda e Brunilda.
Se Chilperico contou no início com o apoio do irmão Gontrão, depois e até à sua morte, Gontrão será aliado de Brunilda (e será mesmo elevado ao estatuto de
São Gontrão pela Igreja).
Nas diversas batalhas contra Chilperico, os reis Sigeberto ou Gontrão saem vencedores, deixando a Neustria numa posição cada vez mais fragilizada.
Numa tentativa de invasão da Austrásia em 573, o filho mais velho de Chilperico e Audovera (
Teodoberto) é morto em batalha, deixando a situação mais complicada.
Em 575 Chilperico está derrotado e Sigeberto consegue a subsmissão dos vassalos da Neustria, mas logo após ser consagrado rei da Neustria, é assassinado por homens a mando de Fridegonda.
Nesta novela digna de série de sucesso, a situação acaba por se inverter, já que o filho de Sigeberto tem apenas 5 anos de idade.
Chilperico consegue assim retomar o seu reino, e a posição de fraqueza passa para a Austrásia.
1ª Regência - filhoBrunilda, agora viúva, é regente na menoridade do filho Childeberto, mas vê-se confrontada pelos nobres da Austrásia.
Como Fridegonda se movia no sentido de eliminar os filhos de Chilperico com Audovera, Brunilda acaba por casar estrategicamente com o sobrinho Meroveu, que seria herdeiro da Neustria. Sendo uma união entre tia e sobrinho, apesar de não ser consanguínea, é ainda provocatória.
Gera-se uma guerra entre o pai Chilperico e esse filho, Meroveu, que é derrotado e fugindo em 578 suicida-se, assistido pelo seu servo.
Brunilda volta-se então para o apoio do cunhado Gontrão, que não tem herdeiros, acabando por conseguir que este declare Childeberto como seu sucessor na Burgundia.
Em 583, Childeberto faz 13 anos e é consagrado rei, terminando a regência de Brunilda.
Em 584, talvez a mando de Brunilda, Chilperico é assassinado, sendo sucedido por Clotário II, seu filho com Fridegonda,
Em 592 ao morrer Gontrão, Childeberto acaba por juntar os reinos da Austrásia e Burgundia.
2ª Regência - netosChildeberto, morre novo, com 25 anos (em 595), e tendo dois filhos, um deles (Teodoberto II) herda a Austrásia, enquanto o outro (Teodorico II) herda a Burgundia.
Ambos são pequenos, e Brunilda acumula a regência dos reinos dos netos (Austrásia e Burgundia).
Em 597 morre a rival Fridegonda, que Brunilda associava à morte do marido e do filho, e que esteve ainda associada a uma infindável série de assassinatos internos na Neustria, inclusivé de bispos, e até da tentiva de matar a própria filha.
Durante algum tempo refugiou-se com o filho em Notre-Dame e conseguiu a protecção do cunhado, Gontrão. Num típico volte-face, pouco tempo depois, tentará assassiná-lo...
O ódio de Fridegonda contra Brunilda seria herdado com zelo pelo seu filho Clotário II.
Túmulo de Fridegonda em Saint-Denis
Crónica e repetida situação, a rivalidade entre irmãos.
Após a maioridade, Teodoberto expulsa a avó da Austrásia, e assim também os seus dois netos entram em guerra, agora com Brunilda refugiada junto de Teodorico, na Burgundia.
Brunilda liga-se então a um novo amante, Protadius, que ela consegue elevar à posição mordomo do palácio borgonhês (um equivalente a primeiro-ministro), preparando uma armadilha mortal ao anterior. Protadius leva Teodorico a invadir a Austrásia, mas acaba morto em 606 numa conspiração dos nobres que queriam a paz entre os irmãos, liderada pelo duque da Suábia. Por sua vez, Brunilda manda-lhe cortar os pés e o duque acabará morto.
O conflito entre os netos de Brunilda não cessa, e Teodoberto II, após perder a guerra contra o irmão, acaba por ser assassinado em 612 com o seu filho, a mando do irmão ou da avó. Mas também Teodorico II acaba por morrer, e em 613 é o seu filho, Sigeberto, bisneto de Brunilda que herda o trono da Burgundia e da Austrásia.
3ª Regência - bisnetoJá com setenta anos, Brunilda vê-se de novo como regente, pela menoridade de Sigeberto II.
Mas desta vez os mordomos dos palácios da Burgundia e da Austrásia não querem ter de novo Brunilda a influenciar o bisneto, e aliam-se a Clotário II, o filho de Fridegonda, rei da Neustria.
Clotário II, Rei da Neustria, e em 613 de toda a França.
É finalmente a oportunidade de Clotário II reunir os reinos sob seu comando, livrando-se logo da descendência de Brunilda, e culpando-a da morte de dez reis, inclusive dos herdeiros que ele mandou matar. A execução de Brunilda, pela brutalidade, terá sido provável promessa à sua mãe Fridegonda.
Durante 3 dias Brunilda é entregue às sevícias das tropas de Clotário II e depois é executada, ou sendo arrastada por um cavalo, ou sendo separada por vários cavalos. O corpo desmembrado é depois queimado, guardando-se apenas as cinzas.
Terminava assim a história de uma princesa espanhola, a loura visigoda nascida em Toledo no cristianismo ariano, convertida no casamento ao cristianismo papal, e regente competente durante a menoridade do filho, dos netos, e do bisneto.
Como Clotário II saiu vencedor desta guerra civil inciada entre a sua mãe Fridegonda e Brunilda, não terá querido que ficasse nenhum registo digno desse nome que honrasse as proezas e ardis de Brunilda.
Esse terá sido o primeiro passo para que o nome e a história de Brunilda tivessem atingido o estatuto mítico, passando mesmo para um panteão semidivino, na figuração do seu nome enquanto valquíria. Sobreviveu ainda no mito o amor inicial de Sigeberto (escrito depois como Siegfried ou Sigurd). Também o nome de Gontrão (Guntram) acaba por poder ser associado no mito nibelungo a Gunther.
Os nomes dos opositores acabam por ser ignorados ou alterados no registo mitológico.
Existiu uma família nobre
Nibelungida, associada a um nobre que foi historiador posterior, de nome Nibelungo, que terá continuado um relato burgundio de 642 chamado
Crónica de Fredegário.
Porém, o termo
Nibelungo (ou Gibichung) seria associado à casa real da Burgundia.
A lenda da Canção dos Nibelungos remete depois a uma destruição dessa casa pelos Hunos de Átila (Etzel), o que aqui corresponderia a uma fabricação temporal, já que essa presença huna tinha ocorrido no século anterior ao nascimento de Brunilda.
Se procurarmos algum nexo na mitologia desenvolvida, ao mesmo tempo que Brunilda era morta em suplício, estaria Maomé recebendo as primeiras palavras de Alá. Não foi a nobreza burgundia a ser destruída um século depois pela invasão árabe, mas sim a nobreza visigoda, de onde era orginária Brunilda.
Quer a anterior invasão huna, quer a posterior invasão árabe, deixaram profundas marcas na Europa medieval, e enquanto invasões externas, ou bárbaras, poderiam ser confundidas, sendo mais comum no europeu central a lembrança huna do que a lembrança árabe (que foi repelida com sucesso em Poitiers por Carlos Martel).
Também, e de alguma forma retendo apenas um lado da história, a Brunilda do mito será sempre jovem, ficando a ideia de que o enredo da lenda prefere reter a personagem até ao momento em que Sigeberto é morto, esquecendo as suas tribulações posteriores. Numa especulação mais solta poderemos entender que Fafnir, o dragão morto por Siegfried, poderia ser uma eventual invocação da morte do filho de Chilperico.
Este é um caso em que a história factual, muito baseada no
registo de Gregório de Tours, ultrapassa em complexidade os contornos de uma ficção mitológica muito simplificada.