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Estando a falar de brasões, e como ainda não tinha havido ocasião disso, convém referir o

Livro do Armeiro Mor (1509-21) de António Godinho, ou
Livro da nobreza e da perfeição das armas dos reis cristãos 
e nobres linhagens dos reinos e senhorios de Portugal 
(Torre do Tombo, PT/TT/CR/D-A/001/20)

Este livro terá sido encomendado por D. Manuel, mas apenas teria sido terminado após a sua morte, em 1521. Começa por ser interessante logo o prólogo, onde António Godinho relembra uma frase que atribui a Platão, sobre a virtude, dizendo que - tendo olhos, se amaria a si mesma.
MVITO ALTO E MVITO PODEROSO REY E SENHOR, dito é de Platão
que se a virtude com os olhos corporais se visse, geraria amor de si mesma.
E por isso os poetas e sábios trabalharam de a ensinar declarando-a por metáforas, fingimentos de figuras, para o entendimento e coração a melhor sentir e conceber.
Os antigos faziam estátuas com que muito acendiam os ânimos nela, segundo SALVSTIO, e outros autores. E por que nos prémios que os príncipes dão aos bons, a proporção é necessária segundo as qualidades dos méritos. Coisa conveniente foi os que assinaladas virtudes fazem serem assinaladas com imagens de insignes armas. Com as quais guardando a imortalidade de suas famas, seus sucessores tivessem obrigação de os imitar, que muita parte dos homens se move mais pela fama que por outra virtude
O prólogo é mais extenso, e na "História Genealógica da Casa Real Portuguesa" (Tomo 1, em 1735), António Caetano de Sousa transcreveu-o, dizendo que aquele prólogo "teria sido visto por poucos"... e nesse aspecto, não mudou quase nada, porque continua a estar escrito apenas aí. Curiosamente Caetano de Sousa diz que o livro teria a inscrição inicial - Livro da Nobreza por Fernão das Minas, dos Reis Cristãos e das nobres linhagens dos reinos e senhorios de Portugal. Surge habitualmente um alemão (Harriet ou Arriet) como possível contribuidor ou autor inicial (Caetano de Sousa fala num volume ainda mais perfeito que teria a sua autoria).

Índia Maior e Menor
Merecendo certamente diversos destaques, por razão de menção a reinos desconhecidos, etc, irei apenas aqui salientar um par de brasões: da Índia Maior e a Índia Menor:
 
Índia Menor seria a Índia propriamente dita, e Índia Maior designava inclusivamente as regiões ao sul da Ásia, podendo incluir toda a parte da Indonésia, ou ainda mais além...
O brasão da Índia Maior tem uma balança, a libra, constante da divisa do Infante D. Pedro, e o brasão da Índia Menor tem a figura de Cristo crucificado, o que me parece algo bizarro nesta fase inicial, onde o envio de missionários ainda não teria começado (ainda nem existiam jesuítas). 
Poderia estar aqui a invocar-se a "táctica da cunha", do Infante D. Henrique, ou seja que a chegada à Índia era apenas um passo para atacar os muçulmanos na Arábia, e permitir a progressão pelo Suez para a conquista de Jerusalém - algo parcialmente concretizado por Afonso de Albuquerque, quando anexou o Suez.
A balança para a Índia Maior poderia indicar uma necessidade de equilíbrio das potências, uma balança de poder, não apenas considerando as rivais potências europeias, mas também a gigantesca dimensão dessa Índia Maior, que poderia incluir até a China.

Armas e Escudos
Sendo claro que, desde a Antiguidade, apareciam símbolos nos escudos, identificando o exército combatente, ou a legião (caso romano), na época medieval com a feudalização e a existência de exércitos privados de senhores - duques, condes, marqueses, essa marca foi passando a constituir uma marca da família senhorial, e dos seus descendentes. Isto ocorreu especialmente a partir de Carlos Magno, e ficou mais formalizado nas Cruzadas, quando determinadas regras começaram a ser definidas "internacionalmente".

O formato dos escudos dos brasões passou a ser praticamente o mesmo, e sendo assumido que seria a forma do escudo segurado pelo braço esquerdo, enquanto o direito segurava a espada. Há assim uma orientação privilegiada dos objectos - por exemplo, era natural o leão ou a águia aparecerem virados para a esquerda, já que isso corresponderia a olhar de frente o opositor, estando no braço esquerdo.
Mas também vemos águias bicéfalas, olhando em ambas as direcções, no caso imperial.

Ora, a forma dos escudos sugere-me a Lorica Squamata, a armadura em escamas romana. Trata-se de uma armadura formada por pequenas escamas, que era suficientemente flexível para ser usada como revestimento metálico protector, lembrando a forma das escamas de répteis ou peixes. Muitos telhados europeus tinham também esta disposição nos seus telhados, em que cada telha correspondia a uma escama.
Um nome usado para os brasões era justamente
"cota-de-armas" (em inglês, coat-of-arms)
o que distingue da "cota-de-malha", onde a cota, a veste, da armadura era feita com ligações em forma de malha metálica.
O que isto sugere é que o conjunto dos diversos escudos de cada senhor formavam uma armadura do reino, ou do império.
Cada escudo, tal como cada senhor, tinha a sua autonomia relativa, mas estavam ligados entre si.
Acresce que o formato dos escudos era díspar, podendo ser circular, rectangular, não havendo necessariamente uma forma pré-definida, como ficou depois estandardizado no "escudo", ainda que com algumas variantes artísticas. O círculo ou o losango, na heráldica, passou depois a ser usado para pessoas não combatentes - como o clero, ou as esposas dos senhores, não se assumindo que poderiam ser usados escudos circulares, como foi hábito de tantos povos.

Regra de Tintura
Um aspecto frisado por António Godinho foi a necessidade de adaptar os brasões senhoriais às regras heráldicas formais de outras nações, diz-se ter sido preferida a forma inglesa e alemã, por comparação com a francesa e castelhana.
Algo que passou a servir de regra foi a distinção no uso das cores (ver International Heraldry):
Metais: Amarelo (ouro) e Branco (prata) 
Cores: Vermelho, Azul, Verde e Preto (o uso de roxo-magenta será mais recente)
[do lado direito está a forma de representação quando a imagem é preto-e-branco]

Uma regra básica, que o pessoal detesta ver quebrada, é:
- metais não tocam em metais, nem cores tocam em cores.

Aliás, diz Godinho a este propósito:
(...) per outra regra que manda não trazer metal sobre metal nem cor sobre cor: se verificaram muitas que falsas andavam, podendo-se presumir não serem verdadeiras.
Um dos problemas com a actual bandeira portuguesa é que o verde toca directamente o vermelho, sem a separação por uma cor metálica, sendo praticamente caso único nas bandeiras europeias (as novas bandeiras de Alemanha e Rússia e de outros novos estados, têm problemas similares - veja-se a bandeira do império alemão, cortada pelo branco, enquanto na Rússia foi tradição).
Por exemplo, a Itália resolveu o problema de juntar vermelho e verde, cortando-os com o branco metálico, tal como a maioria dos restantes estados europeus.
Curiosamente, também a bandeira monárquica dos Braganças tinha o mesmo problema (o azul tocava o vermelho do escudo).
As excepções admitidas desde há muito eram o Estado papal e o Reino de Jerusalém, que podiam tocar o amarelo com o branco.

Ironicamente, os heraldistas diriam que quem não estivesse bem armado, estaria armado em parvo ("parvo" significa pequeno em latim). No entanto, com a ascensão da burguesia e maçonaria, estas regras típicas da elite medieval foram perdendo relevo, e os que antes eram parvos ou pequenos passaram a grandes ou sábios, definindo uma nova matilha, e uma nova práxis.
Ainda assim, para quem preza o status quo, a violação de regras instituídas durante séculos será uma parvoíce, enquanto pequenez temporal.

Eventuais significados das cores podem ser especulados... ligados às estações, é natural a ligação do verde à Primavera, do vermelho ao Verão, do azul ao Outono, ou do preto ao Inverno. Ou ainda, o verde estaria ligado à felicidade e jovialidade, o vermelho à coragem, força e excelência, o azul à piedade, liberdade e sinceridade, e o preto ao conhecimento e trabalho.
Também os metais podem ser associados:
- o ouro (Sol) à fé e obediência; a prata (Lua) à pureza, verdade e igualdade.
É claro que os peritos em técnica heráldica recusam as associações, até porque será matéria de segredo, a ser decifrado pelo conjunto da empresa explicitada no brasão.

Acrescenta-se que o uso do escudo no braço esquerdo, dá outro sentido ao brasão enquanto bração, ou seja, uma extensão defensiva do braço, complementando outra pequena observação anterior.

Armas antigas
Voltamos assim ao assunto das armas do Rei de Portugal (conforme foi discutido no postal anterior com J. Ribeiro e D. Jorge).

(1) Acresce agora um outro símbolo estranho que também foi atribuído ao rei português:

Zurich Roll - atribuição ao Rei de Portugal (brasão do meio, sendo os outros de Inglaterra e Marrocos)

Este caso pode ser apenas uma interpretação ligeira do manuscrito, que se percebe mal, mas onde parece ler-se "portogAl", além disso faltando outra representação do símbolo real português.
Como o Rolo de Zurique é de 1330-45, este período coincide com D. Afonso IV (e não deixa de ser curioso que praticamente todos os brasões estão alterados ou apagados no manuscrito genealógico de Antóno de Holanda). Podemos pensar que o rei usou armas pessoais, além das armas clássicas, e neste caso certamente enigmáticas, caso se confirme a atribuição.

(2) Também no Rolo de Segar (c. 1282) aparecem desenhadas as armas de Portugal, mas ao contrário da reconstrução apresentada, que nos dá 5 escudos azuis sobre fundo branco, o original aparece raspado, com um fundo azul... ou seja, houve alguém que procurou apagar as armas que ali estavam, já que as restantes aparecem reconhecíveis.

Segar's Roll original (à esquerda) e reconstrução errada (à direita).

Como curiosidade, diria que o símbolo do Rei Palialogre, assumido como Rei Paleólogo, parece ser mais um canguru do que um dragão no original... é apenas uma observação lateral, porque a dinastia dos Paleólogos poderia ser bem associada ao dragão.

(3) Também no Herald's Roll (1270-80) aparece no número 25 o rei de Portugal (a partir de 1279 seria D. Dinis) com 3 quinas, mas é o número 18. King of Bornholm (roy de ...)? que é mais próximo do desenho apresentado no postal anterior, sendo que este "Bornholm" será mera dedução pois não é feita qualquer transcrição. Neste caso, como não temos acesso ao original, serve a boa comparação com o escudo apresentado por Djorge no postal anterior:
Acresce que este símbolo é bastante parecido com o atribuído ao rei da Noruega Haakon IV, só mudando as cores (que seriam vermelho e ouro, ao invés de azul e prata).

(4) Finalmente surge a menção de Djorge a um símbolo muito semelhante ao anterior, consistindo em 3 caravelas, na freguesia de Caravelas-Mirandela.

O original poderia representar barcos conforme o apresentado no escudo acima, que depois foram interpretados como caravelas, o que mudou ainda a forma de alinhamento vertical. No entanto mantém-se componentes comuns - o fundo azul, os barcos e o seu número.

Podemos estar aqui em presença de uma tradição mais antiga, ou então de um período da História de Portugal, que ocorreu na mudança da sucessão por D. Afonso III, onde ele ou os seus sucessores, D. Dinis e D. Afonso IV, podem ter escolhido armas pessoais diferentes.

Um assunto, um mistério, ou mais uma mistela, que fica por investigar melhor...

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publicado às 20:08


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