Houve duas teorias que marcaram o advento da concepção científica descentrada do homem:
- primeiro o heliocentrismo, recuperado por Galileu do trabalho de Copérnico (apesar de Aristarco de Samos ser mesmo citado por Arquimedes);
- depois o evolucionismo, em que Darwin propõe a evolução das espécies, colocando o homem como apenas mais uma espécie.
Estas concepções marcaram o afastamento do Homem e a Terra do centro do universo, deixando de ocupar um lugar especial no mundo, seja por criação divina, seja por razão natural.
Ao que parece, o matemático Pedro Nunes, quando informado pela teoria publicada por Copérnico, seu contemporâneo, terá respondido que era "matematicamente equivalente".
De facto, não é difícil perceber que, ao contrário do que é popularizado, ambas as representações - geocêntrica ou heliocêntrica - são absolutamente equivalentes. É uma relatividade de posição trivial.
Convirá desmistificar a "falsidade" da posição geocêntrica...
Devem distinguir-se duas posições geocêntricas. Num caso mais puro não se admite a rotação terrestre, noutro caso admite-se essa rotação, mas não a rotação em torno do Sol. O sistema ptolomaico era complexo e muito ajustado às observações terrestres, que conseguiria obter com o auxílio de órbitas adicionais nos planetas que manifestassem movimentos retrógrados. Ptolomeu parece ter referido que, mais importante do que a validade do sistema, era o aspecto de poder calcular sem grande erro, as posições planetárias... não se tratava de entrar em conflito com o sistema heliocêntrico de Aristarco.
Anticítera
De facto, o sistema geocêntrico deverá ter sido usado na concepção do
mecanismo encontrado em Antícitera... um mecanismo de relógio, com a posição do Sol e Lua (e talvez de planetas), com mais de 2100 anos, que só teria sido igualado no Séc. XVIII.
A incrível máquina encontrada em Antícitera
Do ponto de vista prático, seria mais importante conhecer as posições na Terra do que ter uma visão externa do sistema. Este mecanismo dá-nos uma clara ideia de que o conhecimento na Antiguidade era muito superior ao que foi relatado e transmitido ao longo de gerações... até hoje. Excluindo, é claro, um eventual conhecimento secreto.
Comparações de visões:
Ninguém se preocupa com os detalhes do sistema geocêntrico. No entanto, o primeiro problema são as fases da Lua. A rotação da Lua diferiria em ~1/28 para comportar uma diferença de iluminação, que permitisse regressar à fase inicial ao fim de ~28 dias. Galileu argumentará com as fases de Vénus e com os satélites de Júpiter, mas nada disso invalidaria a aparente rotação em torno da Terra.
Ilustramos, numa simples simulação computacional, ambas as visões, no caso geocêntrico mais puro:
Descrição parcial das órbitas dos 4 primeiros planetas, de forma equivalente, na visão heliocêntrica e geocêntrica pura, num período de 84 dias (~ revolução de Mercúrio). Na visão geocêntrica pura, a rotação da Terra é substituída pela rotação de todos os outros corpos, o que complexifica o sistema. Apesar da simplificação heliocêntrica, ambas as representações são equivalentes (note-se que a posição relativa dos planetas é a mesma).
A rotação terrestre não é perceptível na imagem da visão heliocêntrica, enquanto na imagem geocêntrica ela é predominante e como consequência complexifica as órbitas na forma espiral...
A mais elaborada visão Ptolomaica (tal como
Oresme Séc. XIV) admitiria uma simplificação com a rotação terrestre. Nesse caso, o sistema geocêntrico fica mais simples, sem órbitas diárias, mas mesmo assim demasiado complexo:
Sistema geocêntrico, onde a rotação terrestre é suprimida do modelo, permitindo visualizar o modelo num espaço de 7 anos. É mais facilmente perceptível o aparente movimento retrógrado dos planetas.
Estas visões geocêntricas são tão exactas quanto a heliocêntrica, é uma questão de referencial, tal como na mecânica se pode pode optar por coordenadas Eulerianas, fixas, ou Lagrangianas, ligadas ao corpo em movimento. Mas, a visão heliocêntrica teve a sua vitória final com o modelo gravitacional de Newton. À simplificação matemática, acrescia uma base física, a lei da gravidade.
A concepção Ptolomaica tinha ainda erros, de averiguação difícil, no que dizia respeito à ordenação planetária. Em particular, porque os planetas internos (Mercúrio e Vénus), próximos do Sol, são apenas visíveis no período crepuscular (aprox. 20º (1h30m) para Vénus e 10º (45 min) para Mercúrio, antes do nascer ou após o pôr do Sol). A difícil observação de um trânsito de Vénus (sobre o Sol), clamada pelo persa
Avicena, terá sido influência para considerar Vénus mais próximo da Terra. Tal é particularmente notável num época em que não era claro que Vénus ao anoitecer fosse o mesmo planeta que ao amanhecer!
A posição geocêntrica de Mercúrio, Vénus e Marte teria que contemplar o caso desses planetas estarem mais próximo ou mais longe da Terra do que o Sol. Assim a sua posição relativa seria indecidível entre os quatro, Marte pode estar mais próximo da Terra do que o Sol, Mercúrio ou Vénus.
Apenas um planeta com órbita do Sol acima de 2 UA (1 UA= distância da Terra ao Sol) ficaria sempre mais longe do que o Sol... Acima de 2UA é a distância ao Sol do cinturão de asteróides, e depois dos planetas externos, com Júpiter, Saturno, etc.
Isidoro de Sevilha
É neste contexto de ambiguidade que encontramos a obra de Isidoro de Sevilha (de Rerum Natura, Séc. VI). Vemos que há uma separação de Vénus, é colocado Lucifer, anterior ao Sol, e Vesper, posterior ao Sol - ambos os nomes correspondem a designações de Vénus.
Lucifer é a estrela de alva, e Vesper a sua aparição ao entardecer. De forma estranha, como não é mencionado Marte podendo aqui colocar-se uma identificação de Marte a Vesper, já que também Júpiter aparece nomeado como
Faeton (optando pela nomeação grega). Mercúrio e Saturno aparecem designados normalmente.
Sistema planetário por Isidoro de Sevilha (Séc. VI)
É razoavelmente bizarra a associação depois dada ao nome Lucifer ("portador da luz") a Vénus, enquanto estrela da manhã, e prende-se com interpretações da literatura bíblica, e à influência posterior das obras de Dante e Milton.
Ao contrário, o aparecimento de Vénus a ocidente, no pôr do sol, era associado à esperança com o nome Hesper (ou Vesper), muitas vezes associado ainda às Hespérides, ilhas paradisíacas ocidentais... cujo nome viria de Hespero, um dos reis míticos da Ibéria.
Manifestação clara da dualidade Ocidente/Oriente, em que o Ocidente era associado à terra prometida ocidental, ou seja à América... à esperança de regressar ao
Paraíso Perdido (trazendo o título de Milton).
Bartolomeu Velho
Dentro da concepção geocêntrica, posterior a Copérnico, a representação de Bartolomeu é interessante, pois assume apenas uma rotação solar anual, e não propriamente a visão pura, da rotação diária do Sol. O tempo já é outro, e este será já um esquema geocêntrico de compromisso que assume claramente a rotação terrestre.
Sistema geocêntrico sem rotação - Bartolomeu Velho (1568), cartógrafo.
Apresenta as curiosas esferas de Ar e Fogo, antes da Lua.
A posição dos astros indica claramente a ordem crescente do seu tempo de revolução:
- Lua: 27 dias e 8 horas (~correcto -15 min.) ;
- Mercúrio: 70 dias e 7 horas (~88 dias)
- Vénus: 273 dias e 23 horas (~225 dias)
- Sol: 365 dias e 6 horas (~correcto -ano bissexto)
- Marte: 2 anos, 730 dias (~687 dias)
- Júpiter: 12 anos (~11,86 anos)
- Saturno: 30 anos (~29,4 anos);
- Estrelas: 36000 anos
Os valores são bons atendendo à época, sendo o valor mais estranho os 36000 anos para a revolução estelar. Mais curioso ainda é arriscar valores para as circunferências. Sendo o valor 6300 léguas correspondente à dimensão do perímetro equatorial terrestre, com uma légua aproximadamente 6,3 Km... obtemos praticamente 2 UA para a localização das estrelas, enquanto para a distância ao Sol, dá menos de 1% do valor conhecido. Não há uma ligação directa entre o tempo de revolução e a distância em léguas para o grau, não se conhecendo outra razão para os valores apontados.
O mapa-mundi incluso também não apresenta nenhuma novidade à época.
ContextoO modelo heliocêntrico de Aristarco deverá ter sido considerado em todo o mundo grego, e nem o próprio Ptolomeu o terá querido colocar em causa.
Como é óbvio, no período de regressão civilizacional que se seguiu, os textos de Aristarco caíram no esquecimento, e o Almagesto de Ptolomeu acomodaria uma visão popular e ao mesmo tempo bíblica.
O heliocentrismo puro (Sol no centro do universo) acabou por ser rapidamente substituído, por uma visão galáctica recomeçada com a catalogação de Messier no Séc. XVIII, e com a inclusão da própria Via Láctea enquanto mais um entre tantas galáxias.
A Terra perdeu o seu lugar especial no Universo, e os homens ficaram reduzidos na sua dimensão... seriam simples habitantes de um planeta minúsculo.
Ainda assim, habitantes especiais, feitos à imagem de Deus...
Ora, sobre essa questão coube a Darwin postular a nossa insignificância seguinte.