A obra
saudades da Terra, de Gaspar Frutuoso (
1522-1591), é sem dúvida um texto que nos permite compreender como era já sentida no Séc. XVI a problemática da ocultação sobre a verdade histórica, em particular acerca dos descobrimentos.
É suficientemente ilustrativa a sequência de títulos dos capítulos do primeiro livro
- De uns queixumes que faz a Verdade, estando solitária em uma serra da ilha de S. Miguel.
- De um sonho que sonhou a Verdade.
- Como via a Verdade figurada sua tristeza em uma ribeira.
- Como a Verdade viu vir voando a Fama, e, vendo-a a Fama se desceu onde ela estava, e da prática que ambas tiveram.
- Em que a Verdade diz à Fama quem é.
- Como a Fama conheceu a Verdade e lhe disse também quem ela era.
- Das novas que deu a Fama à Verdade de seus irmãos o Temor de Deus e a Vergonha do Mundo.
- Em que a Fama pede à Verdade que lhe conte as cousas das ilhas, e a Verdade lhe declara umas letras do triângulo que traz no vestido, e a Fama a consola.
- Em que a Verdade, respondendo a uma de duas perguntas que lhe fez a Fama, trata em geral do descobrimento das Canárias e dalgumas coisas delas.
- Do que se diz das linguages de todas estas ilhas Canárias.
- De algumas cousas que outros dizem das duas ilhas Forteventura e Lançarote.
- De algumas cousas da ilha chamada Gram Canária.
Mesmo sem ler a obra, a sequência de títulos mostra bem ao leitor como Gaspar Frutuoso tem necessidade de fazer um diálogo entre um personagem que é a Verdade e outro que é a Fama.
Inconveniente, muito inconveniente... a insularidade foi permitindo a primeira edição local de 1873, no Funchal, por Álvaro Azevedo...
Talvez identificando o problema da obra nesta primeira parte, Azevedo procura reduzir a primeira centena de páginas apenas a 4 páginas do Preâmbulo.
Os títulos dos capítulos continuam a ser auto-explicativos mais à frente:
- 22. Em que a Verdade, respondendo à segunda pergunta, conta o descobrimento das Antilhas, que agora se chamam Índias Ocidentais, e como os reis de Castela as possuem, declarando a linha da repartição da conquista antre eles e os reis de Portugal.
- 25. Em que mostra a Verdade, por experiência de modernos e alguma razão, não estar o estreito de Magalhães antre duas terras firmes, mas ter da parte do Polo Ártico terra firme e da do Antártico somente algumas ilhas.
- 26. Como parece que Cristóvão Colon com sua viagem deu princípio donde tomou o imperador Carlos Quinto a empresa das colunas que pôs em suas armas e, continuando-a Fernão de Magalhães, desejou de as pôr mais avante, em que se declaram algumas outras insígnias das armas imperiais.
- 28. Contra as duas opiniões em que, contando a Verdade os reis antigos de Espanha até o tempo que Platão diz serem vencidos dos reis da ilha Atlanta, sem se achar tal vitória, se prova não haver sido tal ilha, e por outras razões não serem estas ilhas dos Açores em algum tempo pegadas com Europa.
- 29. Em que pela história dos mais reis e sucessos de Espanha, depois de el-rei Eritreo até o tempo de Platão (que dizem que floresceu 450 anos antes do nascimento de Nosso Senhor) não se escreve, nem houve vitória, que reis de ilha Atlanta tivessem de reis de Espanha, nem subversão de ilha Atlanta, nem sinais disso, nem que estas ilhas dos Açores fossem pegadas com a terra de Portugal, cujo mar, junto de sua costa, naquele tempo (sem se tal achar) era muito navegado.
- 30. Em que põem a Verdade outras histórias de outros tempos além de Platão contra as duas opiniões juntamente contrariadas.
- 31. Em que a Verdade põem outras razões e conjecturas, por onde parece não haver sido ilha Atlanta.
Se Gaspar Fructuoso acaba por afastar a teoria de uma ideia de Atlântida, não afasta no seu texto a hipótese da identificação de que a Atlântida fosse uma designação da América... isso era aliás uma larga opinião à época. Que outra "ilha" com as dimensões superiores à Ásia e África juntas (como afirmaria Platão) caberia então no Oceano, existindo a América?
Gaspar Frutuoso é irónico sobre este assunto:
E se Platão literalmente afirma (o que eu duvido) que era tão grande a Atlanta como África e Ásia juntas, e não houve tal ilha, ou não podia ser tão grande como ele diz, como pelas razões ditas claramente se colige, sendo mentira o que a Platão disseram (entendido no sentido literal), como parece ser, eu não vi nunca mentira tamanha, pois é uma mentira tão grande como África e Ásia.
Há muito para discutir sobre o texto de Frutuoso, deixamos a figura mote da edição de Azevedo (que é concentrada sobre a ilha da Madeira), que é João Gonçalves Zarco.
Talvez por erro de impressão (falta de C maiúsculo...) o nome aparece adulterado:
Zarco ou Zargo?
Esta adulteração prende-se tão somente com a tal alcunha "Zarco"... que sendo "Zargo" faz-nos lembrar Sargo... não o peixe pequeno (ainda que os nomes dos peixes sejam reveladores), mas sim o peixe graúdo, que neste caso seria apropriadamente um
Sargão.
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