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Com chás (2)

12.07.13
Vieira.
Já aqui tínhamos apresentado uma moeda que tinha o símbolo da empresa de D. Sebastião:

Serena Celsa Favent, era o moto, e se o esclarecimento favorece a excelência, aqui temos uma concha, a vieira venusiana, e um peixe, símbolo cristão, sob uma constelação estelar (Pleiades?) enquadrada com o crescente selene, lunar.
Devemos notar que as conchas estão ligadas ao baptismo, havendo mesmo pias baptismais com essa forma:
 
Pia baptismal - Igreja NªSrª Navegantes (Armação de Pera, imagem).

Portanto, há uma ligação da concha à libertação do "pecado original", da expulsão do Paraíso. 
Bom, e tendo acabado de falar nas ilhas polinésias, do Taiti no texto anterior, de forma algo natural estabelecemos a noção de "ilha paradisíaca"... como se congenitamente o fosse reconhecido naquelas paisagens.


Pelicano.
Para além do peixe, também o pelicano, pelo auto-sacrifício pela prole, é considerado um símbolo de Cristo, tendo sido primeiro adoptado por D. João II como seu símbolo.
Vamos encontrar esse símbolo com um influente conselheiro dos reis ingleses Henrique VII e Henrique VIII, tratava-se de Richard Foxe, bispo de Winchester:

Leito de morte de Henry VII Tudor (1509) com destaque para Richard Fox, Bispo de Winchester, 
vêem-se as quinas portuguesas e o pelicano de D. João II.

O que faria o Bispo de Winchester, o conselheiro mais influente de Henrique VII, e depois de Henrique VIII (até ser substituído por Wolsey), usar armas com quinas e o pelicano, símbolos do já defunto D. João II?
Estava aqui implícito que a política de D. João II teria uma continuação pelo lado inglês?

Richard Foxe vai fundar o Colégio Corpus Christi de Oxford, que ainda hoje usa o símbolo do pelicano:
  
Richard Fox, o pátio central com o Pelicano do Corpus Christi de Oxford, e as armas do colégio,
que incluem ainda as armas de Hugh Oldham (com 3 mochos e rosas vermelhas de Lancaster)

Mais tarde, também Isabel I, filha de Henrique VIII, a rainha que determinará a expansão inglesa, irá adoptar o pelicano como símbolo no seu papel de "mãe" da Igreja Anglicana. A simbologia cristã do pelicano remontará a S. Tomás de Aquino, a sua ligação às quinas portuguesas só fica evidente através de Fox, e da influência que terá tido na regência dos Tudor.

A tomba de Fox está na catedral de Winchester da Santíssima Trindade, que era a mais influente à época, e que curiosamente esteve em perigo de colapso por inundação das fundações, sendo "salva" pelo trabalho contínuo de um escafandrista, William Walker, entre 1906-11, que tem um busto na catedral cuja cripta ainda se encontra imersa em água. 

Catedral de Winchester, o escafandrista Walker, e a cripta inundada (com escultura moderna).

Cordeiros.
Curiosamente, 50 anos antes, outro Bispo de Winchester, Henry Beaufort, ficou famoso por dirigir o processo inquisitório que condenou Joana d'Arc à fogueira. Tratava-se de um meio-irmão de Filipa de Lancastre, sendo um dos muitos filhos de John de Gaunt (com Katherine Swynford, no terceiro casamento que originou a linha Beaufort). 
Henry Beaufort, o inquisidor, e Joana d'Arc... 
um cordeiro entregue à fogueira.

Joana d'Arc tinha sido entregue por Philippe III de Borgonha (casado com Isabel de Portugal, filha de D. João I, sobrinha do inquisidor). Margaret Beaufort, também sobrinha deste Henry, será mãe do rei Henrique VII, que derrota Ricardo III, tornando-se o primeiro dos Tudor. Henrique VII usa a rosa de Lancaster, mas ao casar com uma rosa de York, terminará a Guerra das Rosas com a união.
Um detalhe importante é Henrique VII usar num retrato o colar do Tosão de Ouro, o símbolo da Ordem fundada por Philippe III de Borgonha, aquando do casamento com Isabel de Portugal.
Phillipe III de Bourgogne, fundador da Ordem do Tosão de Ouro (esq.)
Henry VII Tudor, membro da Ordem do Tosão de Ouro (dir.)
Ambos usam o colar da ordem, com o cordeiro sacrificial.

Duque de Kent, chefe da Grande Loja de Londres, com colar da Maçonaria.

Juntei uma imagem de colar da maçonaria porque o compasso, ou o esquadro, descaindo em forma de V invertido, assemelham-se ao cordeiro sacrificial, que vemos nos colares da Ordem do Tosão de Ouro.
Conforme já referi noutros textos, o cordeiro tem vários significados, não apenas ligados à lenda de Jasão e dos Argonautas. É claro que a Ordem surgindo no contexto do casamento da irmã do Infante D. Henrique, carrega um aspecto dos Descobrimentos ligado aos "Argonautas" e ao Velo de Ouro.
Descobrir foi desvelar, tirar véus... na forma Ariana deste carneiro, o Velo seria a pele de Aries, uma pele de Ouro, ou de Oro, forma abreviada de Hórus, o olho vigilante que se pode ligar ao verbo Orar.
Descobrir foi revelar, levantar Velas e não tanto retirá-las. As cara-velas do Infante velaram pelo véus antigos, e a Ordem do Tosão ou "Velo de Ouro", pode ser vista como preservação do "véu de Hórus".
Jasão teve que vencer o Dragão da Cólquida para obter o Velo de Ouro, tal como Hércules teve que vencer o dragão Ládon, que guardava as ocidentais Hespérides, num dos 12 trabalhos (ou 12 Oras...).
Ao mesmo tempo aparecia a Ordem do Dragão, de que fez parte o Infante D. Pedro, e que já ligámos à Dra-cola, ou Cola do Dragão, em que o "Colar" se refere ao pescoço, tal como Coço e Cola se referem à retaguarda, entrelaçada ao pescoço... (sobre o significado antigo de "coço da procissão" ser "atrás da procissão", ler D. Manuel Clemente)

A história do cordeiro tem ainda o aspecto hebraico que remete à Páscoa, ou à paz-côa, quando Abraão é sujeito ao teste de obediência divino, e o seu filho Isaac é substituído pelo cordeiro no sacrifício:
Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, miserere nobis... dona nobis pacem
É um bocado complicado falar deste ponto, porque o sacrifício do cordeiro ordeiro envolve aqui um conceito perverso, no outro verso interpretativo. Deus não permitiria o sacrifício do filho eleito, apenas dos cordeiros... e por isso os cordeiros poderiam ser sacrificados, até que Deus se manifestasse em sentido contrário. E quem eram os cordeiros a sacrificar? O sacrifício indiscriminado traria a presença de Deus?
Pois... até que ponto os Árias foram pastores de Aries, cordeiros? Até que ponto os pastores sacrificariam os seus cordeiros para reencontrarem Deus, ou o Messias?
Esta filosofia continha uma aposta tripla 1X2, se Deus não interviesse perante a iniquidade, os pastores beneficiariam do velo de ouro, uma opção hedonista face à ausência divina. De forma oposta, justificariam a sua acção perante o divino, requerendo a sua presença, afinal a sua omnipotência só permitiria o sacrifício dos sacrificáveis. A incógnita X seria a recusa teológica de outras possibilidades... obviamente possível por crença, mas afinal insustentável racionalmente. Azar, este universo foi definido justamente pela racionalidade, e os absurdos levam ao vazio contraditório - o caos irracional fica no seu exterior. O tempo permite o absurdo diferido, temporário, mas não o simultâneo e permanente. Todos os filhos de Gaia são introspectivamente recuperáveis, pela lógica do arrependimento, do reconhecimento de erros, mas não é possível a recuperação dos irrecuperáveis. A persistência eterna no absurdo foi simplesmente excluída, nem tampouco poderia ser humana. Logicamente, não poderia ser doutra forma... os erros podem viver nas ilusões temporárias, que acolhem elementos do caos, mas não o caos completo. Desse oceano caótico importamos a imprevisibilidade, elementos artísticos e sentimentais, mas esses impulsos devem sujeitar-se ao enquadramento racional, sob pena de serem o convite ao estabelecimento do irracional, e à recusa da principal faculdade humana, que nos distingue das alimárias, a racionalidade.

Chapéus...
Há muitos, vários formatos de chapéus. Assim, para além do colar com o cordeirinho sacrificial, também o chapéu usado por Filipe III de Borgonha fez moda, ficou conhecido como "chapéu borgonhês", e resistiu aos tempos, sendo ainda hoje uma indumentária usada pela Confraria do Vinho do Porto:
É claro que no caso da confraria de vinho usa-se no colar uma taça de escanção, para averiguar da cor do vinho, afinal simbolicamente tratado como "sangue de Cristo".
A taça do vinho da Última Ceia foi habitualmente designada como Graal, e houve já quem sugerisse que o nome Portugal encerraria um críptico "por-tu-graal", que assim se complementaria, pela associação de Porto e Gaia, nas caves do famoso vinho, que sozinhas asseguravam as contrapartidas do Tratado de Methuen. Para adivinhos, há outros vinhos... os famosos vinhos da Borgonha, ou de Bordéus, da antiga região da Guiana occitana-basca, entre outros preciosos néctares de um Baco divino di-vinho, cuja preservação de antiguidade necessita do devido arrefecimento em caves bem seladas.

Baptista
Não longe, encontramos a Igreja Matriz de Vila do Conde, cuja a entrada é interessante.
De construção biscainha, apresenta de um lado as armas de D. Manuel (num caso raro, em que ainda aparece a dupla esfera armilar, sugerida por D. João II), e do outro lado temos: a âncora da Póvoa de Varzim, o antigo barco de Vila do Conde, e um outro brazão com uma figura humana que emerge de uma concha (símbolo associado à localidade de S. Pedro de Rates).
Igreja Matriz, de S. João Baptista, em Vila do Conde (imagem).

Como a Igreja é dedicada a S. João Baptista (que aparece no topo da porta), a concha será baptismal, mas também referente à mítica presença do Apóstolo Santiago, que teria ordenado S. Pedro de Rates como primeiro Bispo de Braga (45 a 60 d.C.).
Há assim essa dupla ligação a conchas, cuidando ambas para o simbolismo do renascimento, numa igreja renascentista emanuelina. O homem que sai da concha aparece depois, com D. Sebastião, na forma de peixe, invocando esse Renascimento cristão, que seria o renascimento de Cristo, na forma humana.
O ritual baptista parece remeter para uma origem aquática, pela imersão do baptizado, ou mais simbolicamente vertendo água na sua cabeça.
No entanto, há variações baptistas.
Um outro aspecto de baptismo, era o baptismo com óleo, aplicado na unção de sacerdotes.
Aí podemos ver outro aspecto das vieiras que, virtude dos tempos, são reencontradas no símbolo de uma famosa companhia petrolífera:

A vieira usada como símbolo de petróleo pela Shell.

O petróleo, também designado como "ouro negro", passou a encerrar outros véus, ou velos de ouro negro... mas para essas considerações remetemos para um texto anterior.

Poderíamos ainda falar de outros aspectos interessantes das vieiras, nomeadamente pela sua geometria.
Há uma confluência entre parte de um quadrado e parte de um círculo, podendo ser usado para simbolizar a relação do número Pi na quadratura do círculo.
Por outro lado, as divisões naturais das vieiras (ou outras conchas) poderiam servir para marcar ângulos, constituindo um simples instrumento de posicionamento, semelhante a um vulgar quadrante, para simples uso náutico, em navegações primitivas. Esse seria um aspecto prático de orientação astral para qualquer peregrino, associando a vieira ao cajado do pastor.

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 22:13

Com chás (2)

12.07.13
Vieira.
Já aqui tínhamos apresentado uma moeda que tinha o símbolo da empresa de D. Sebastião:

Serena Celsa Favent, era o moto, e se o esclarecimento favorece a excelência, aqui temos uma concha, a vieira venusiana, e um peixe, símbolo cristão, sob uma constelação estelar (Pleiades?) enquadrada com o crescente selene, lunar.
Devemos notar que as conchas estão ligadas ao baptismo, havendo mesmo pias baptismais com essa forma:
 
Pia baptismal - Igreja NªSrª Navegantes (Armação de Pera, imagem)e concha baptismal (imagem)

Portanto, há uma ligação da concha à libertação do "pecado original", da expulsão do Paraíso. 
Bom, e tendo acabado de falar nas ilhas polinésias, do Taiti no texto anterior, de forma algo natural estabelecemos a noção de "ilha paradisíaca"... como se congenitamente o fosse reconhecido naquelas paisagens.


Pelicano.
Para além do peixe, também o pelicano, pelo auto-sacrifício pela prole, é considerado um símbolo de Cristo, tendo sido primeiro adoptado por D. João II como seu símbolo.
Vamos encontrar esse símbolo com um influente conselheiro dos reis ingleses Henrique VII e Henrique VIII, tratava-se de Richard Foxe, bispo de Winchester:

Leito de morte de Henry VII Tudor (1509) com destaque para Richard Fox, Bispo de Winchester, 
vêem-se as quinas portuguesas e o pelicano de D. João II.

O que faria o Bispo de Winchester, o conselheiro mais influente de Henrique VII, e depois de Henrique VIII (até ser substituído por Wolsey), usar armas com quinas e o pelicano, símbolos do já defunto D. João II?
Estava aqui implícito que a política de D. João II teria uma continuação pelo lado inglês?

Richard Foxe vai fundar o Colégio Corpus Christi de Oxford, que ainda hoje usa o símbolo do pelicano:
  
Richard Fox, o pátio central com o Pelicano do Corpus Christi de Oxford, e as armas do colégio,
que incluem ainda as armas de Hugh Oldham (com 3 mochos e rosas vermelhas de Lancaster)

Mais tarde, também Isabel I, filha de Henrique VIII, a rainha que determinará a expansão inglesa, irá adoptar o pelicano como símbolo no seu papel de "mãe" da Igreja Anglicana. A simbologia cristã do pelicano remontará a S. Tomás de Aquino, a sua ligação às quinas portuguesas só fica evidente através de Fox, e da influência que terá tido na regência dos Tudor.

A tomba de Fox está na catedral de Winchester da Santíssima Trindade, que era a mais influente à época, e que curiosamente esteve em perigo de colapso por inundação das fundações, sendo "salva" pelo trabalho contínuo de um escafandrista, William Walker, entre 1906-11, que tem um busto na catedral cuja cripta ainda se encontra imersa em água. 

Catedral de Winchester, o escafandrista Walker, e a cripta inundada (com escultura moderna).

Cordeiros.
Curiosamente, 50 anos antes, outro Bispo de Winchester, Henry Beaufort, ficou famoso por dirigir o processo inquisitório que condenou Joana d'Arc à fogueira. Tratava-se de um meio-irmão de Filipa de Lancastre, sendo um dos muitos filhos de John de Gaunt (com Katherine Swynford, no terceiro casamento que originou a linha Beaufort). 
Henry Beaufort, o inquisidor, e Joana d'Arc... 
um cordeiro entregue à fogueira.

Joana d'Arc tinha sido entregue por Philippe III de Borgonha (casado com Isabel de Portugal, filha de D. João I, sobrinha do inquisidor). Margaret Beaufort, também sobrinha deste Henry, será mãe do rei Henrique VII, que derrota Ricardo III, tornando-se o primeiro dos Tudor. Henrique VII usa a rosa de Lancaster, mas ao casar com uma rosa de York, terminará a Guerra das Rosas com a união.
Um detalhe importante é Henrique VII usar num retrato o colar do Tosão de Ouro, o símbolo da Ordem fundada por Philippe III de Borgonha, aquando do casamento com Isabel de Portugal.
Phillipe III de Bourgogne, fundador da Ordem do Tosão de Ouro (esq.)
Henry VII Tudor, membro da Ordem do Tosão de Ouro (dir.)
Ambos usam o colar da ordem, com o cordeiro sacrificial.

Duque de Kent, chefe da Grande Loja de Londres, com colar da Maçonaria.

Juntei uma imagem de colar da maçonaria porque o compasso, ou o esquadro, descaindo em forma de V invertido, assemelham-se ao cordeiro sacrificial, que vemos nos colares da Ordem do Tosão de Ouro.
Conforme já referi noutros textos, o cordeiro tem vários significados, não apenas ligados à lenda de Jasão e dos Argonautas. É claro que a Ordem surgindo no contexto do casamento da irmã do Infante D. Henrique, carrega um aspecto dos Descobrimentos ligado aos "Argonautas" e ao Velo de Ouro.
Descobrir foi desvelar, tirar véus... na forma Ariana deste carneiro, o Velo seria a pele de Aries, uma pele de Ouro, ou de Oro, forma abreviada de Hórus, o olho vigilante que se pode ligar ao verbo Orar.
Descobrir foi revelar, levantar Velas e não tanto retirá-las. As cara-velas do Infante velaram pelo véus antigos, e a Ordem do Tosão ou "Velo de Ouro", pode ser vista como preservação do "véu de Hórus".
Jasão teve que vencer o Dragão da Cólquida para obter o Velo de Ouro, tal como Hércules teve que vencer o dragão Ládon, que guardava as ocidentais Hespérides, num dos 12 trabalhos (ou 12 Oras...).
Ao mesmo tempo aparecia a Ordem do Dragão, de que fez parte o Infante D. Pedro, e que já ligámos à Dra-cola, ou Cola do Dragão, em que o "Colar" se refere ao pescoço, tal como Coço e Cola se referem à retaguarda, entrelaçada ao pescoço... (sobre o significado antigo de "coço da procissão" ser "atrás da procissão", ler D. Manuel Clemente)

A história do cordeiro tem ainda o aspecto hebraico que remete à Páscoa, ou à paz-côa, quando Abraão é sujeito ao teste de obediência divino, e o seu filho Isaac é substituído pelo cordeiro no sacrifício:
Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, miserere nobis... dona nobis pacem
É um bocado complicado falar deste ponto, porque o sacrifício do cordeiro ordeiro envolve aqui um conceito perverso, no outro verso interpretativo. Deus não permitiria o sacrifício do filho eleito, apenas dos cordeiros... e por isso os cordeiros poderiam ser sacrificados, até que Deus se manifestasse em sentido contrário. E quem eram os cordeiros a sacrificar? O sacrifício indiscriminado traria a presença de Deus?
Pois... até que ponto os Árias foram pastores de Aries, cordeiros? Até que ponto os pastores sacrificariam os seus cordeiros para reencontrarem Deus, ou o Messias?
Esta filosofia continha uma aposta tripla 1X2, se Deus não interviesse perante a iniquidade, os pastores beneficiariam do velo de ouro, uma opção hedonista face à ausência divina. De forma oposta, justificariam a sua acção perante o divino, requerendo a sua presença, afinal a sua omnipotência só permitiria o sacrifício dos sacrificáveis. A incógnita X seria a recusa teológica de outras possibilidades... obviamente possível por crença, mas afinal insustentável racionalmente. Azar, este universo foi definido justamente pela racionalidade, e os absurdos levam ao vazio contraditório - o caos irracional fica no seu exterior. O tempo permite o absurdo diferido, temporário, mas não o simultâneo e permanente. Todos os filhos de Gaia são introspectivamente recuperáveis, pela lógica do arrependimento, do reconhecimento de erros, mas não é possível a recuperação dos irrecuperáveis. A persistência eterna no absurdo foi simplesmente excluída, nem tampouco poderia ser humana. Logicamente, não poderia ser doutra forma... os erros podem viver nas ilusões temporárias, que acolhem elementos do caos, mas não o caos completo. Desse oceano caótico importamos a imprevisibilidade, elementos artísticos e sentimentais, mas esses impulsos devem sujeitar-se ao enquadramento racional, sob pena de serem o convite ao estabelecimento do irracional, e à recusa da principal faculdade humana, que nos distingue das alimárias, a racionalidade.

Chapéus...
Há muitos, vários formatos de chapéus. Assim, para além do colar com o cordeirinho sacrificial, também o chapéu usado por Filipe III de Borgonha fez moda, ficou conhecido como "chapéu borgonhês", e resistiu aos tempos, sendo ainda hoje uma indumentária usada pela Confraria do Vinho do Porto:
É claro que no caso da confraria de vinho usa-se no colar uma taça de escanção, para averiguar da cor do vinho, afinal simbolicamente tratado como "sangue de Cristo".
A taça do vinho da Última Ceia foi habitualmente designada como Graal, e houve já quem sugerisse que o nome Portugal encerraria um críptico "por-tu-graal", que assim se complementaria, pela associação de Porto e Gaia, nas caves do famoso vinho, que sozinhas asseguravam as contrapartidas do Tratado de Methuen. Para adivinhos, há outros vinhos... os famosos vinhos da Borgonha, ou de Bordéus, da antiga região da Guiana occitana-basca, entre outros preciosos néctares de um Baco divino di-vinho, cuja preservação de antiguidade necessita do devido arrefecimento em caves bem seladas.

Baptista
Não longe, encontramos a Igreja Matriz de Vila do Conde, cuja a entrada é interessante.
De construção biscainha, apresenta de um lado as armas de D. Manuel (num caso raro, em que ainda aparece a dupla esfera armilar, sugerida por D. João II), e do outro lado temos: a âncora da Póvoa de Varzim, o antigo barco de Vila do Conde, e um outro brazão com uma figura humana que emerge de uma concha (símbolo associado à localidade de S. Pedro de Rates).
Igreja Matriz, de S. João Baptista, em Vila do Conde (imagem).

Como a Igreja é dedicada a S. João Baptista (que aparece no topo da porta), a concha será baptismal, mas também referente à mítica presença do Apóstolo Santiago, que teria ordenado S. Pedro de Rates como primeiro Bispo de Braga (45 a 60 d.C.).
Há assim essa dupla ligação a conchas, cuidando ambas para o simbolismo do renascimento, numa igreja renascentista emanuelina. O homem que sai da concha aparece depois, com D. Sebastião, na forma de peixe, invocando esse Renascimento cristão, que seria o renascimento de Cristo, na forma humana.
O ritual baptista parece remeter para uma origem aquática, pela imersão do baptizado, ou mais simbolicamente vertendo água na sua cabeça.
No entanto, há variações baptistas.
Um outro aspecto de baptismo, era o baptismo com óleo, aplicado na unção de sacerdotes.
Aí podemos ver outro aspecto das vieiras que, virtude dos tempos, são reencontradas no símbolo de uma famosa companhia petrolífera:

A vieira usada como símbolo de petróleo pela Shell.

O petróleo, também designado como "ouro negro", passou a encerrar outros véus, ou velos de ouro negro... mas para essas considerações remetemos para um texto anterior.

Poderíamos ainda falar de outros aspectos interessantes das vieiras, nomeadamente pela sua geometria.
Há uma confluência entre parte de um quadrado e parte de um círculo, podendo ser usado para simbolizar a relação do número Pi na quadratura do círculo.
Por outro lado, as divisões naturais das vieiras (ou outras conchas) poderiam servir para marcar ângulos, constituindo um simples instrumento de posicionamento, semelhante a um vulgar quadrante, para simples uso náutico, em navegações primitivas. Esse seria um aspecto prático de orientação astral para qualquer peregrino, associando a vieira ao cajado do pastor.

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 22:13

Num comentário anterior disse que faltaria escrever um Arquitecturas (5), e por isso acrescento este texto. Claro que faltariam muito mais coisas, nomeadamente uma boa indexação, e ainda uma revisão de textos anteriores, adicionando novo material, corrigindo algumas insinuações, etc... Porém, não vejo este trabalho que aqui tive como sendo algo acabado. Convivo bem com os erros, alguns não intencionais, outros nem tanto, e o mais importante é saber justificar as decisões e opções. 
Pouco mais somos do que uma linha de decisões conscientes. Essas decisões podem ser acções ou inacções, mas apenas somos capazes de justificar as que fazemos conscientemente. Do ponto de vista externo, pouco mais se verá que as decisões, e sobre a consciência com que as tomámos, resta-nos uma linguagem ambígua, e uma maior ou menor inibição de revelar o nosso pensamento mais íntimo.
Essa inibição é um resultado da vivência social, e quanto mais inibidora e incompreensiva for a sociedade mais acumulará conhecimento reprimido, escondido num mundo de trevas. Agora, como é óbvio, o conhecimento deve ser informado e enquadrado. O conhecimento não deve servir o propósito contraditório de aniquilar o conhecimento. Da mesma forma que o conhecimento não deve ser negado a quem está em condições de o compreender.

Quem aqui aportar pode cair em frases ou textos soltos que, retirados do contexto, podem levar a interpretações precipitadas. Tratou-se de um estudo pessoal, ziguezagueante, que serve para mostrar dúvidas e incertezas, conceitos e preconceitos. Apesar de cada texto ser razoavelmente autocontido, sofre obviamente do conhecimento circunstancial, ou até do simples estado de espírito, que se foi adaptando, tentando encaixar diversas peças de um imenso puzzle. Também isso é instrutivo.

Interessa-me aqui voltar à questão da cosmogonia, no fim, começando pelo princípio...
Para esse efeito, refiro um mito criacionista chinês, atribuído a Laozi (séc. VI a.C), segundo a tradução disponível na wikipedia:
The Way gave birth to unity, Unity gave birth to duality, Duality gave birth to trinity, Trinity gave birth to the myriad creatures. The myriad creatures bear yin on their back and embrace yang in their bosoms. They neutralize these vapors and thereby achieve harmony.
Este mito procura justificar o aparecimento de tudo, através de um caminho, que pode ser visto no sentido abstracto. É interessante, porque basicamente individualiza a unidade, a dualidade, e a partir da trindade, tudo o resto é consequência.
Podemos ver aqui uma perspectiva de trindade, comum noutras religiões, e mesmo em filosofia, no sentido da percepção cartesiana do "eu", da evidência do "não-eu", e do agrupamento destas duas entidades num conceito maior, eventualmente num "Eu" solipsista, conforme já abordei
Porém, essa visão, que remete o indivíduo para a sua introspecção, é muito própria da filosofia budista, ou ainda mais antiga, do hinduísmo, Veda, ou vedado, entre castidades, castas, árias e párias.

Não faz muito sentido usar analogias de autores que inventam personagens, que se misturam com personagens na sua história, até porque um personagem resistente pode duvidar do autor, e até considerar que o próprio autor não passa de um personagem da sua imaginação... contradições do paradoxo do pensador, porque o pensador não pode conhecer a raiz do seu pensamento.

Passamos pois, para o "vácuo sagrado", como eventual fonte primeva, em qualquer mito criacionista.
O universo intemporal é uma entidade estável e imutável... por definição, por negação do tempo enquanto entidade aniquiladora.
No entanto, ao admitir mudança, surge sempre a questão do que foi antes de ser o que o que é...
Ora, a simples assumpção de inexistência, seguida de existência, define o universo também como a junção desses dois eventos. Passamos do 0 ao 1, definindo o 2 na junção. Será como um shakespeariano "ser ou não ser", a dúvida entre o existir e o não existir, sendo que essa dúvida é já uma terceira nova entidade.
Creio que esta passagem até à trindade é similar ao invocado por Laozi. Bom, e a partir daqui o processo pode repetir-se. Georg Cantor definiu de forma similar a construção dos números naturais.

Porém, enquanto construção puramente abstracta, um simples processo de edificação, resume-se a uma lista de "estados":
 (0): 0
 (1): 1
 (2): 0 1
 (4): 0 1 0 2
 (8): 0 1 0 2 0 2 0 4
(16): 0 1 0 2 0 2 0 4 0 2 0 4 0 4 0 8 
                                                              etc...

Aquilo que vemos é apenas uma sequência numérica, de replicação da estrutura anterior. A estrutura anterior é mantida, e a nova (a negrito) corresponde a uma evolução dessa para o estado seguinte (porque o universo tem que actualizar os conceitos com a nova estrutura). Os números são apenas símbolos que podem ser substituídos pela sua atribuição anterior. Ou seja, é mais rápido escrever 2 do que (01), e mais rápido escrever 4 do que (0102).

Bom, e como se comporta esta sucessão numérica, que emula uma concepção abstracta, de um universo que forçosamente inclui as entidades geradas? A sucessão numérica em causa está directamente ligada a uma representação binária (cf. OEIS), e apesar de poder ser gerada por uma simples linha de programação u = unir(u,2u), começando com u=(0,1), ao fim de algumas repetições torna-se bastante complexa, evidenciando ainda um comportamento fractal.
Podemos mostrar isso num percurso definido por direcções correspondentes aos números obtidos:

esta figura é apenas ilustrativa, mas serve para mostrar a complexidade, imprevisibilidade e não simetria do sistema gerado, ainda que se possam vislumbrar repetições de padrões (fractalidade). Computacionalmente podemo-nos ficar por umas dezenas de repetições, talvez centenas ou milhares, com grandes máquinas... mas tudo isso é nada, porque a estrutura emerge automaticamente, sem limites, pela sua simples definição.
Bom, e do que se compõe a estrutura? Simplesmente de vários estados do mesmo universo. Por isso, cada "partícula" pode ser encarada como um universo num estado mais elementar, e associações mais complexas aparecem em estados posteriores.
Estranho? Não é assim tão estranho, se notarmos que a idealização de uma máquina universal, uma modelação simplificada como sequência de "0" e "1", esteve presente na concepção de Turing.
Tanto poderá ser visto como enigma, como deus ex machina (ou ex mecanica).
Também não será de estranhar, atendendo à própria opinião da escola pitágorica, que encarava o mundo como uma simples manifestação numérica, acrescentando "a vida é como uma sala de espectáculos, entra-se, vê-se e sai-se"... e nesse sentido seria bom evitar a repetição de tragédias.

Importante é também a interrogação no sentido oposto.
Ou seja, assumindo a existência de partes no universo, de que podem elas ser constituídas?
São universos fechados em si mesmos? Então obedecem à própria lógica de um universo.
São outra coisa? Mas o quê, se são obrigatoriamente partes do universo. Só a nossa modelação física nos leva a pensar em constituintes diferentes, vindos sabe-se lá de onde...
Por isso, as partes de um universo, resultam de manifestações do próprio. Também por isso, quando a estrutura ganha consciência pode entender que uma sua parte é um universo fechado em si mesmo (concepção solipsista).
Bom, e como pode uma estrutura abstracta ganhar consciência?
Pode responder-se com outra questão - e como pode uma estrutura física, um corpo humano, ganhar consciência?
Não só. Há algumas pistas não desprezáveis. Não sei, mas creio que na ausência de uma estrutura social, para um indivíduo isolado, não será verosímil a necessidade de uma linguagem. Acaba por ser a linguagem a formatar conceitos no nosso pensamento. A linguagem emerge de uma experiência de vida social, solidifica-se por múltiplas experiências, e pode liquidificar-se mais tarde, com outras...
Como é possível a partir de repetições, de associações, aprender uma linguagem, num cérebro feito de neurónios? Ou seja, a emergência é natural, numa aparente predisposição do cérebro para esse efeito.

Não houve nenhuma evolução especial no sentido de preservar informação por via genética. Há uma parte, que designamos "instintiva", e essa deve ser considerada herdada, e há uma outra parte, que fez aparecer noções ou valores semelhantes, em diferentes culturas, que também pode ser considerada herdada (parcialmente, porque se mistura com a educação).
Porém, o que é mais importante é que a linguagem não se tornou apenas circunstancial, ligada ao que observamos. Tornou-se abstracta, capaz de evidenciar as mesmas conclusões em indivíduos distintos (por exemplo, através da matemática, ou simplesmente em jogos), e capaz de idealizar mundos para além do observado.
Ora, quando as noções abstractas ganham corpo de ciência, para além do homem, como se verifica no caso das noções e conclusões matemáticas, isso indicia que há uma realidade que transcende as habituais concepções físicas, ainda que possa ser inspirada por elas.

Regressando ao modelo de repetição associativa para um universo, convém notar que cada repetição não significa necessariamente um salto temporal... da mesma forma que não se evidenciam ali nenhumas dimensões físicas. A única coisa que se evidencia é sua complexidade emergente, e de como as partes não são mais do que diferentes associações do todo.
Uma coisa é não ter acesso cognitivo ao passado, outra coisa é achar que ele se perdeu irremediavelmente, como se houvesse um "caixote de lixo" temporal.
E se isto é válido para a história, enquanto passado, também é válido para outras incapacidades cognitivas, provavelmente por defeito de evolução na nossa comunicação.

As efémeras certezas acerca das nossas potências podem transformar-se em incertezas face às nossas impotências. Porque as nossas potencialidades surgem-nos como aparentes dádivas, mas nada disso surgiu com certificado vitalício, e maior potencialidade interior resulta de perspectivar adversidades, sem que isso constitua uma negação às actuais faculdades.

14 de Fevereiro de 2013

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 07:23

Num comentário anterior disse que faltaria escrever um Arquitecturas (5), e por isso acrescento este texto. Claro que faltariam muito mais coisas, nomeadamente uma boa indexação, e ainda uma revisão de textos anteriores, adicionando novo material, corrigindo algumas insinuações, etc... Porém, não vejo este trabalho que aqui tive como sendo algo acabado. Convivo bem com os erros, alguns não intencionais, outros nem tanto, e o mais importante é saber justificar as decisões e opções. 
Pouco mais somos do que uma linha de decisões conscientes. Essas decisões podem ser acções ou inacções, mas apenas somos capazes de justificar as que fazemos conscientemente. Do ponto de vista externo, pouco mais se verá que as decisões, e sobre a consciência com que as tomámos, resta-nos uma linguagem ambígua, e uma maior ou menor inibição de revelar o nosso pensamento mais íntimo.
Essa inibição é um resultado da vivência social, e quanto mais inibidora e incompreensiva for a sociedade mais acumulará conhecimento reprimido, escondido num mundo de trevas. Agora, como é óbvio, o conhecimento deve ser informado e enquadrado. O conhecimento não deve servir o propósito contraditório de aniquilar o conhecimento. Da mesma forma que o conhecimento não deve ser negado a quem está em condições de o compreender.

Quem aqui aportar pode cair em frases ou textos soltos que, retirados do contexto, podem levar a interpretações precipitadas. Tratou-se de um estudo pessoal, ziguezagueante, que serve para mostrar dúvidas e incertezas, conceitos e preconceitos. Apesar de cada texto ser razoavelmente autocontido, sofre obviamente do conhecimento circunstancial, ou até do simples estado de espírito, que se foi adaptando, tentando encaixar diversas peças de um imenso puzzle. Também isso é instrutivo.

Interessa-me aqui voltar à questão da cosmogonia, no fim, começando pelo princípio...
Para esse efeito, refiro um mito criacionista chinês, atribuído a Laozi (séc. VI a.C), segundo a tradução disponível na wikipedia:
The Way gave birth to unity, Unity gave birth to duality, Duality gave birth to trinity, Trinity gave birth to the myriad creatures. The myriad creatures bear yin on their back and embrace yang in their bosoms. They neutralize these vapors and thereby achieve harmony.
Este mito procura justificar o aparecimento de tudo, através de um caminho, que pode ser visto no sentido abstracto. É interessante, porque basicamente individualiza a unidade, a dualidade, e a partir da trindade, tudo o resto é consequência.
Podemos ver aqui uma perspectiva de trindade, comum noutras religiões, e mesmo em filosofia, no sentido da percepção cartesiana do "eu", da evidência do "não-eu", e do agrupamento destas duas entidades num conceito maior, eventualmente num "Eu" solipsista, conforme já abordei
Porém, essa visão, que remete o indivíduo para a sua introspecção, é muito própria da filosofia budista, ou ainda mais antiga, do hinduísmo, Veda, ou vedado, entre castidades, castas, árias e párias.

Não faz muito sentido usar analogias de autores que inventam personagens, que se misturam com personagens na sua história, até porque um personagem resistente pode duvidar do autor, e até considerar que o próprio autor não passa de um personagem da sua imaginação... contradições do paradoxo do pensador, porque o pensador não pode conhecer a raiz do seu pensamento.

Passamos pois, para o "vácuo sagrado", como eventual fonte primeva, em qualquer mito criacionista.
O universo intemporal é uma entidade estável e imutável... por definição, por negação do tempo enquanto entidade aniquiladora.
No entanto, ao admitir mudança, surge sempre a questão do que foi antes de ser o que o que é...
Ora, a simples assumpção de inexistência, seguida de existência, define o universo também como a junção desses dois eventos. Passamos do 0 ao 1, definindo o 2 na junção. Será como um shakespeariano "ser ou não ser", a dúvida entre o existir e o não existir, sendo que essa dúvida é já uma terceira nova entidade.
Creio que esta passagem até à trindade é similar ao invocado por Laozi. Bom, e a partir daqui o processo pode repetir-se. Georg Cantor definiu de forma similar a construção dos números naturais.

Porém, enquanto construção puramente abstracta, um simples processo de edificação, resume-se a uma lista de "estados":
 (0): 0
 (1): 1
 (2): 0 1
 (4): 0 1 0 2
 (8): 0 1 0 2 0 2 0 4
(16): 0 1 0 2 0 2 0 4 0 2 0 4 0 4 0 8 
                                                              etc...

Aquilo que vemos é apenas uma sequência numérica, de replicação da estrutura anterior. A estrutura anterior é mantida, e a nova (a negrito) corresponde a uma evolução dessa para o estado seguinte (porque o universo tem que actualizar os conceitos com a nova estrutura). Os números são apenas símbolos que podem ser substituídos pela sua atribuição anterior. Ou seja, é mais rápido escrever 2 do que (01), e mais rápido escrever 4 do que (0102).

Bom, e como se comporta esta sucessão numérica, que emula uma concepção abstracta, de um universo que forçosamente inclui as entidades geradas? A sucessão numérica em causa está directamente ligada a uma representação binária (cf. OEIS), e apesar de poder ser gerada por uma simples linha de programação u = unir(u,2u), começando com u=(0,1), ao fim de algumas repetições torna-se bastante complexa, evidenciando ainda um comportamento fractal.
Podemos mostrar isso num percurso definido por direcções correspondentes aos números obtidos:

esta figura é apenas ilustrativa, mas serve para mostrar a complexidade, imprevisibilidade e não simetria do sistema gerado, ainda que se possam vislumbrar repetições de padrões (fractalidade). Computacionalmente podemo-nos ficar por umas dezenas de repetições, talvez centenas ou milhares, com grandes máquinas... mas tudo isso é nada, porque a estrutura emerge automaticamente, sem limites, pela sua simples definição.
Bom, e do que se compõe a estrutura? Simplesmente de vários estados do mesmo universo. Por isso, cada "partícula" pode ser encarada como um universo num estado mais elementar, e associações mais complexas aparecem em estados posteriores.
Estranho? Não é assim tão estranho, se notarmos que a idealização de uma máquina universal, uma modelação simplificada como sequência de "0" e "1", esteve presente na concepção de Turing.
Tanto poderá ser visto como enigma, como deus ex machina (ou ex mecanica).
Também não será de estranhar, atendendo à própria opinião da escola pitágorica, que encarava o mundo como uma simples manifestação numérica, acrescentando "a vida é como uma sala de espectáculos, entra-se, vê-se e sai-se"... e nesse sentido seria bom evitar a repetição de tragédias.

Importante é também a interrogação no sentido oposto.
Ou seja, assumindo a existência de partes no universo, de que podem elas ser constituídas?
São universos fechados em si mesmos? Então obedecem à própria lógica de um universo.
São outra coisa? Mas o quê, se são obrigatoriamente partes do universo. Só a nossa modelação física nos leva a pensar em constituintes diferentes, vindos sabe-se lá de onde...
Por isso, as partes de um universo, resultam de manifestações do próprio. Também por isso, quando a estrutura ganha consciência pode entender que uma sua parte é um universo fechado em si mesmo (concepção solipsista).
Bom, e como pode uma estrutura abstracta ganhar consciência?
Pode responder-se com outra questão - e como pode uma estrutura física, um corpo humano, ganhar consciência?
Não só. Há algumas pistas não desprezáveis. Não sei, mas creio que na ausência de uma estrutura social, para um indivíduo isolado, não será verosímil a necessidade de uma linguagem. Acaba por ser a linguagem a formatar conceitos no nosso pensamento. A linguagem emerge de uma experiência de vida social, solidifica-se por múltiplas experiências, e pode liquidificar-se mais tarde, com outras...
Como é possível a partir de repetições, de associações, aprender uma linguagem, num cérebro feito de neurónios? Ou seja, a emergência é natural, numa aparente predisposição do cérebro para esse efeito.

Não houve nenhuma evolução especial no sentido de preservar informação por via genética. Há uma parte, que designamos "instintiva", e essa deve ser considerada herdada, e há uma outra parte, que fez aparecer noções ou valores semelhantes, em diferentes culturas, que também pode ser considerada herdada (parcialmente, porque se mistura com a educação).
Porém, o que é mais importante é que a linguagem não se tornou apenas circunstancial, ligada ao que observamos. Tornou-se abstracta, capaz de evidenciar as mesmas conclusões em indivíduos distintos (por exemplo, através da matemática, ou simplesmente em jogos), e capaz de idealizar mundos para além do observado.
Ora, quando as noções abstractas ganham corpo de ciência, para além do homem, como se verifica no caso das noções e conclusões matemáticas, isso indicia que há uma realidade que transcende as habituais concepções físicas, ainda que possa ser inspirada por elas.

Regressando ao modelo de repetição associativa para um universo, convém notar que cada repetição não significa necessariamente um salto temporal... da mesma forma que não se evidenciam ali nenhumas dimensões físicas. A única coisa que se evidencia é sua complexidade emergente, e de como as partes não são mais do que diferentes associações do todo.
Uma coisa é não ter acesso cognitivo ao passado, outra coisa é achar que ele se perdeu irremediavelmente, como se houvesse um "caixote de lixo" temporal.
E se isto é válido para a história, enquanto passado, também é válido para outras incapacidades cognitivas, provavelmente por defeito de evolução na nossa comunicação.

As efémeras certezas acerca das nossas potências podem transformar-se em incertezas face às nossas impotências. Porque as nossas potencialidades surgem-nos como aparentes dádivas, mas nada disso surgiu com certificado vitalício, e maior potencialidade interior resulta de perspectivar adversidades, sem que isso constitua uma negação às actuais faculdades.

14 de Fevereiro de 2013

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publicado às 07:23

Tinha arrumado o tópico "Arquitecturas", mas na sequência das pertinentes questões levantadas no comentário do Sid, acrescento mais algumas considerações.

Gillray: Britannia entre a Rocha Democrática e o Remoínho do Poder Absoluto.

O raciocínio humano entricheira-se entre Scila e Caribdis... de um lado forma conceitos que emergem da previsibilidade, por outro lado tende a submergir o que é previsível.
Num universo caótico não seria possível formar conceitos, edificar noções estáveis, e num universo demasiado previsível os conceitos mais complexos seriam desnecessários, a ponto de nem serem cogitados. Este ajustamento é mais do que uma simples "coincidência"...
Para dar um exemplo simples, basta pensar na condução... se a resposta do veículo fosse imprevisível face aos movimentos do volante, ninguém saberia conduzir (nem haveria nada para "saber"...), e por outro lado, após sabermos conduzir, o processo torna-se tão automático que fica submerso, relegado em gestos instintivos - o assunto já não merece reflexão.

Em sociedades de fácil sobrevivência, ao género de "paraísos tropicais", onde a fruta está à distância do braço, o engenho humano fica como acessório de vivência. Mas essa vivência pode transformar-se em problema de sobrevivência pelo engenho complexificador de relações sociais. Quando o mundo ficou sob domínio humano, os humanos passaram a temer o seu maior predador - os "outros".
Os "nossos" maiores inimigos são sempre os "outros"... nos "nossos" confiamos, dos "outros" desconfiamos. É claro que o engenho social conseguiu complexificar ainda mais, e a noção de "traição" deixa o indivíduo essencialmente isolado, face à imprevisibilidade de "todos os outros".
Pode caricaturar-se a situação: - na "lotaria dos animais" o Homem ganhou o paraíso, sem ler o aviso - "a incapacidade de partilha transforma paraísos em infernos".

Creio que já não há ministérios "da guerra", só "da defesa"... legitimando-se agora as guerras como "formas preventivas de defesa". E sempre assim foi... mesmo os mais empenhados conquistadores, em última análise procuravam eliminar ou neutralizar "inimigos", fosse por motivos externos ou internos. O medo dos "outros" é também "o medo dos outros", e auto-alimenta-se.

A "ascendência primata" do Homem parece ter relegado o Homem a um papel menos especial na "criação", libertando-se da visão antropocêntrica religiosa. Porém, não é apenas isso... ao contrário do que parece, legitima uma visão bem mais elitista. Afinal, se a diferença entre um homem e um outro primata for apenas resultado de uma evolução animal, também se pode pretender que a Eugenia possa levar a uma variação de raça, e até de espécie, ao ponto de se gerarem "super-homens". A visão do homem-macaco serve muito mais para justificar o tratamento animal que é dado a certos homens, do que para dar um tratamento humano aos animais... 
Há quem tenha cultivado a pureza na descendência, e não foram apenas os aristocratas de ascendência bárbara-goda, nem os nazis pela ideia de "raça ariana". Aproveito para agradecer aqui a oferta de um livro sobre "jewish eugenics", que me chegou há uns tempos pelo correio, sem que eu tenha percebido como obtiveram o meu endereço, ou qual foi o interesse em que o recebesse.

A falta de verdade, a necessidade de ludibriar, de esconder segredos, tudo isso resulta de uma falta de confiança, de fé nos "outros". Todas as quebras legitimarão ainda maiores desconfianças, e o cumprimento exemplar nunca afastará essa noção, escondida nos mais íntimos medos. Um sintoma típico da necessidade de confiança, sentida por algumas pessoas, acaba por se manifestar em animais de estimação, companheiros de onde não esperam especiais surpresas.
A confiança, a fé, sendo afastada dos outros, seus semelhantes, foi também relegada para um conceito externo, divino. As provações, os infortúnios, seriam compensados numa balança de justiça, repositora da verdade, para além da morte. Com alguma tentativa científica de desmistificação religiosa, e com uma expansão do pragmatismo moderno, a confiança humana passou depois a ter à "cabeça" - o capital. As instituições, os estados, vão perdendo a confiança depositada pelos cidadãos, e progressivamente aceita-se a "pena capital", como último depósito de garantias humanas.

Ao indivíduo que incorporou respostas a alguns porquês na sua infância, a ciência actual surge como estéril a esse tipo de perguntas. Formada pelo pragmatismo experimental, a ciência é essencialmente descritiva, e a sua máxima justificativa é a constatação ou "o acaso". À queda da pedra, acrescenta uma relação de aceleração, uma noção de gravidade, mas está longe de justificar, ou sequer de perguntar, por que razão tal força existe. Existe "porque sim", responde-se, como responde qualquer criança incomodada com uma pergunta. E nem é preciso ir à Física, cheia de "buracos negros", mesmo a Matemática pode estudar os números primos, estabelecer teoremas, mas não explica a razão da imprevisibilidade dessa sequência gerada afinal pela simples aritmética da multiplicação. Aliás, ainda é um problema em aberto saber se há uma infinidade de "primos gémeos"... o problema pode ser colocado a uma criança, mas a sua prova resiste há séculos, ou talvez há milénios, já que Euclides apresentou a prova da infinidade dos primos (simples) há mais de 2200 anos, e esses assuntos tinham a atenção dos gregos.

Acontece que, também por experiência, as coisas têm habitualmente algum nexo de causa, que nos permite uma compreensão do mundo que nos rodeia. É claro que este tipo de arquitectura faz suspeitar de um "desenho inteligente", a compasso da noção de um arquitecto divino. Ora, isso não acrescenta informação, apenas transfere o problema, porque essa mesma noção levanta outros problemas lógicos. Há uma outra resposta, que é parecida com o "porque sim", mas tem implícita uma informação muito maior - "é assim, porque não poderia ser doutra forma". E para se perceber um pouco dessa informação subjacente, volto à imagem de Scila e Caribdis... se não houvesse nenhum nexo, nada seria inteligível, e se o nexo fosse facilmente prescrutável, não seria necessária nenhuma inteligência complexa, porque a complexidade nem sequer existiria. Isto é mais ou menos óbvio, muita gente intui este "ter que ser assim", e ainda que seja entendido não é assumido, nem é reconfortante.
Há uma pretensão subjacente de compreensão absoluta, esquecendo a questão do aprofundamento no remoinho de Caribdis - caso tudo fosse explicado, entendido e corrigido, o que nos motivaria para o dia seguinte?

Também por constatação - algo muito científico - verificamos que as coisas ocorreram de uma maneira e não de outra. Isso levou à noção de determinismo, associada indelevelmente à noção de "destino". Talvez por receio de conotação religiosa, e para evitar a desresponsabilização humana, essa noção caiu em desuso no início do Séc. XX. A modelação humana iria ganhar supremacia face ao desenrolar do universo... ridículo, mas tido como "científico". As coisas eram colocadas desta forma: "a moeda tanto pode cair em cara ou coroa", uma constatação de modelação da possibilidade que escondia a impossibilidade de se saber se iria ser uma coisa ou outra. Não é errado pensar em probabilidades, mas é de um absurdo e arrogância considerar que a nossa incompreensão é que modela o universo. E, no entanto, hoje quase ninguém se atreve a dizer o contrário. Porque dizer o contrário é também assumir a impossibilidade do livre-arbítrio, e há que responsabilizar escolhas...
A noção de decisão surge da modelação interna que fazemos do que nos rodeia. O nosso modelo é obviamente impreciso, e por isso não conseguimos antecipar o resultado. Aliás se isso fosse possível, significaria que nos identificaríamos com o universo, e não haveria surpresas, nem tão pouco razão de ser. Ora, como a nossa modelação é imprecisa, pensamos em cenários, em diferentes possibilidades, e daí surge o conceito de que temos escolhas, e de que uma acção diferente levaria a outro resultado. Temos as mãos atadas ao volante, e seguimos o destino nos carris, sem distinguir se é o volante que vira por acção das nossas mãos, ou se são as nossas mãos que viram por acção do volante que segue os carris... e pensamos que poderíamos ter virado atrás noutra direcção, ou que teremos poder de decisão na próxima curva. Aí não seremos enganados, já vemos os carris, e viramos noutra direcção... seguindo os carris, porque os que víamos eram afinal parte do cenário onde contemplamos as diversas possibilidades.

O aumento da nossa compreensão não reduz necessariamente a nossa incompreensão, porque novos problemas se colocam. A melhor compreensão permite apenas que estejamos "mais sintonizados" com o que nos rodeia. A fabricação de logros, enganos, armadilhas, não é nenhuma evolução especial, e pode ser encontrada como forma de sobrevivência ou defesa em muitos animais, não é propriamente uma invenção da inteligência humana... e se há novidade é em ser usado contra a própria espécie. Aliás, se há espécie empenhada em eliminar os seus próprios elementos, é a humana...
O jogo entre a percepção interna e a realidade externa foi estabelecido há muito na "natureza", e tem um sucesso limitado. Em última análise, serve para caçar alguns, durante algum tempo, até que se torne quase irrelevante pela sua previsibilidade, dada a melhoria de percepção dos sobreviventes, ou pela competição interna que anula os predadores.
No jogo entre a fabricação de realidades e a percepção desse fabrico, uns procuram distorcer a percepção, e os outros apuram a compreensão e identificação das distorções. Uns afastam-se da realidade procurando criar um mundo à sua medida, os outros vão, por força das circunstâncias, apurar a sua percepção para a distinção entre realidade e fabricações.

No limite, uns pretendem uma manipulação artística do universo, transformando-o num teatro dos seus modelos, e para isso vão parasitando tudo, inclusivé as descobertas alheias, dos que abnegadamente vão aumentando a percepção científica. A essoutros, resta a convicção profunda, ou fé, de que o universo não se poderá reduzir a uma manipulação teatral. Uns acreditam que o fabrico de uns tantos artífices terá engenho suficiente para submeter tudo e todos, outros acharão que essa pretensão megalómana é "ligeiramente" excessiva... dado o universo em questão. 

Porém, convirá perceber que se devemos diminuir o drama das hostilidades, algumas dificuldades, adversidades, não podem deixar de existir, sob pena de estagnação... afinal, "viver feliz para sempre" é apenas uma frase aplicável a vegetais, desprovidos de sistema nervoso.

The Cure - "Where the birds always sing" (*) 

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publicado às 19:01

Tinha arrumado o tópico "Arquitecturas", mas na sequência das pertinentes questões levantadas no comentário do Sid, acrescento mais algumas considerações.

Gillray: Britannia entre a Rocha Democrática e o Remoínho do Poder Absoluto.

O raciocínio humano entricheira-se entre Scila e Caribdis... de um lado forma conceitos que emergem da previsibilidade, por outro lado tende a submergir o que é previsível.
Num universo caótico não seria possível formar conceitos, edificar noções estáveis, e num universo demasiado previsível os conceitos mais complexos seriam desnecessários, a ponto de nem serem cogitados. Este ajustamento é mais do que uma simples "coincidência"...
Para dar um exemplo simples, basta pensar na condução... se a resposta do veículo fosse imprevisível face aos movimentos do volante, ninguém saberia conduzir (nem haveria nada para "saber"...), e por outro lado, após sabermos conduzir, o processo torna-se tão automático que fica submerso, relegado em gestos instintivos - o assunto já não merece reflexão.

Em sociedades de fácil sobrevivência, ao género de "paraísos tropicais", onde a fruta está à distância do braço, o engenho humano fica como acessório de vivência. Mas essa vivência pode transformar-se em problema de sobrevivência pelo engenho complexificador de relações sociais. Quando o mundo ficou sob domínio humano, os humanos passaram a temer o seu maior predador - os "outros".
Os "nossos" maiores inimigos são sempre os "outros"... nos "nossos" confiamos, dos "outros" desconfiamos. É claro que o engenho social conseguiu complexificar ainda mais, e a noção de "traição" deixa o indivíduo essencialmente isolado, face à imprevisibilidade de "todos os outros".
Pode caricaturar-se a situação: - na "lotaria dos animais" o Homem ganhou o paraíso, sem ler o aviso - "a incapacidade de partilha transforma paraísos em infernos".

Creio que já não há ministérios "da guerra", só "da defesa"... legitimando-se agora as guerras como "formas preventivas de defesa". E sempre assim foi... mesmo os mais empenhados conquistadores, em última análise procuravam eliminar ou neutralizar "inimigos", fosse por motivos externos ou internos. O medo dos "outros" é também "o medo dos outros", e auto-alimenta-se.

A "ascendência primata" do Homem parece ter relegado o Homem a um papel menos especial na "criação", libertando-se da visão antropocêntrica religiosa. Porém, não é apenas isso... ao contrário do que parece, legitima uma visão bem mais elitista. Afinal, se a diferença entre um homem e um outro primata for apenas resultado de uma evolução animal, também se pode pretender que a Eugenia possa levar a uma variação de raça, e até de espécie, ao ponto de se gerarem "super-homens". A visão do homem-macaco serve muito mais para justificar o tratamento animal que é dado a certos homens, do que para dar um tratamento humano aos animais... 
Há quem tenha cultivado a pureza na descendência, e não foram apenas os aristocratas de ascendência bárbara-goda, nem os nazis pela ideia de "raça ariana". Aproveito para agradecer aqui a oferta de um livro sobre "jewish eugenics", que me chegou há uns tempos pelo correio, sem que eu tenha percebido como obtiveram o meu endereço, ou qual foi o interesse em que o recebesse.

A falta de verdade, a necessidade de ludibriar, de esconder segredos, tudo isso resulta de uma falta de confiança, de fé nos "outros". Todas as quebras legitimarão ainda maiores desconfianças, e o cumprimento exemplar nunca afastará essa noção, escondida nos mais íntimos medos. Um sintoma típico da necessidade de confiança, sentida por algumas pessoas, acaba por se manifestar em animais de estimação, companheiros de onde não esperam especiais surpresas.
A confiança, a fé, sendo afastada dos outros, seus semelhantes, foi também relegada para um conceito externo, divino. As provações, os infortúnios, seriam compensados numa balança de justiça, repositora da verdade, para além da morte. Com alguma tentativa científica de desmistificação religiosa, e com uma expansão do pragmatismo moderno, a confiança humana passou depois a ter à "cabeça" - o capital. As instituições, os estados, vão perdendo a confiança depositada pelos cidadãos, e progressivamente aceita-se a "pena capital", como último depósito de garantias humanas.

Ao indivíduo que incorporou respostas a alguns porquês na sua infância, a ciência actual surge como estéril a esse tipo de perguntas. Formada pelo pragmatismo experimental, a ciência é essencialmente descritiva, e a sua máxima justificativa é a constatação ou "o acaso". À queda da pedra, acrescenta uma relação de aceleração, uma noção de gravidade, mas está longe de justificar, ou sequer de perguntar, por que razão tal força existe. Existe "porque sim", responde-se, como responde qualquer criança incomodada com uma pergunta. E nem é preciso ir à Física, cheia de "buracos negros", mesmo a Matemática pode estudar os números primos, estabelecer teoremas, mas não explica a razão da imprevisibilidade dessa sequência gerada afinal pela simples aritmética da multiplicação. Aliás, ainda é um problema em aberto saber se há uma infinidade de "primos gémeos"... o problema pode ser colocado a uma criança, mas a sua prova resiste há séculos, ou talvez há milénios, já que Euclides apresentou a prova da infinidade dos primos (simples) há mais de 2200 anos, e esses assuntos tinham a atenção dos gregos.

Acontece que, também por experiência, as coisas têm habitualmente algum nexo de causa, que nos permite uma compreensão do mundo que nos rodeia. É claro que este tipo de arquitectura faz suspeitar de um "desenho inteligente", a compasso da noção de um arquitecto divino. Ora, isso não acrescenta informação, apenas transfere o problema, porque essa mesma noção levanta outros problemas lógicos. Há uma outra resposta, que é parecida com o "porque sim", mas tem implícita uma informação muito maior - "é assim, porque não poderia ser doutra forma". E para se perceber um pouco dessa informação subjacente, volto à imagem de Scila e Caribdis... se não houvesse nenhum nexo, nada seria inteligível, e se o nexo fosse facilmente prescrutável, não seria necessária nenhuma inteligência complexa, porque a complexidade nem sequer existiria. Isto é mais ou menos óbvio, muita gente intui este "ter que ser assim", e ainda que seja entendido não é assumido, nem é reconfortante.
Há uma pretensão subjacente de compreensão absoluta, esquecendo a questão do aprofundamento no remoinho de Caribdis - caso tudo fosse explicado, entendido e corrigido, o que nos motivaria para o dia seguinte?

Também por constatação - algo muito científico - verificamos que as coisas ocorreram de uma maneira e não de outra. Isso levou à noção de determinismo, associada indelevelmente à noção de "destino". Talvez por receio de conotação religiosa, e para evitar a desresponsabilização humana, essa noção caiu em desuso no início do Séc. XX. A modelação humana iria ganhar supremacia face ao desenrolar do universo... ridículo, mas tido como "científico". As coisas eram colocadas desta forma: "a moeda tanto pode cair em cara ou coroa", uma constatação de modelação da possibilidade que escondia a impossibilidade de se saber se iria ser uma coisa ou outra. Não é errado pensar em probabilidades, mas é de um absurdo e arrogância considerar que a nossa incompreensão é que modela o universo. E, no entanto, hoje quase ninguém se atreve a dizer o contrário. Porque dizer o contrário é também assumir a impossibilidade do livre-arbítrio, e há que responsabilizar escolhas...
A noção de decisão surge da modelação interna que fazemos do que nos rodeia. O nosso modelo é obviamente impreciso, e por isso não conseguimos antecipar o resultado. Aliás se isso fosse possível, significaria que nos identificaríamos com o universo, e não haveria surpresas, nem tão pouco razão de ser. Ora, como a nossa modelação é imprecisa, pensamos em cenários, em diferentes possibilidades, e daí surge o conceito de que temos escolhas, e de que uma acção diferente levaria a outro resultado. Temos as mãos atadas ao volante, e seguimos o destino nos carris, sem distinguir se é o volante que vira por acção das nossas mãos, ou se são as nossas mãos que viram por acção do volante que segue os carris... e pensamos que poderíamos ter virado atrás noutra direcção, ou que teremos poder de decisão na próxima curva. Aí não seremos enganados, já vemos os carris, e viramos noutra direcção... seguindo os carris, porque os que víamos eram afinal parte do cenário onde contemplamos as diversas possibilidades.

O aumento da nossa compreensão não reduz necessariamente a nossa incompreensão, porque novos problemas se colocam. A melhor compreensão permite apenas que estejamos "mais sintonizados" com o que nos rodeia. A fabricação de logros, enganos, armadilhas, não é nenhuma evolução especial, e pode ser encontrada como forma de sobrevivência ou defesa em muitos animais, não é propriamente uma invenção da inteligência humana... e se há novidade é em ser usado contra a própria espécie. Aliás, se há espécie empenhada em eliminar os seus próprios elementos, é a humana...
O jogo entre a percepção interna e a realidade externa foi estabelecido há muito na "natureza", e tem um sucesso limitado. Em última análise, serve para caçar alguns, durante algum tempo, até que se torne quase irrelevante pela sua previsibilidade, dada a melhoria de percepção dos sobreviventes, ou pela competição interna que anula os predadores.
No jogo entre a fabricação de realidades e a percepção desse fabrico, uns procuram distorcer a percepção, e os outros apuram a compreensão e identificação das distorções. Uns afastam-se da realidade procurando criar um mundo à sua medida, os outros vão, por força das circunstâncias, apurar a sua percepção para a distinção entre realidade e fabricações.

No limite, uns pretendem uma manipulação artística do universo, transformando-o num teatro dos seus modelos, e para isso vão parasitando tudo, inclusivé as descobertas alheias, dos que abnegadamente vão aumentando a percepção científica. A essoutros, resta a convicção profunda, ou fé, de que o universo não se poderá reduzir a uma manipulação teatral. Uns acreditam que o fabrico de uns tantos artífices terá engenho suficiente para submeter tudo e todos, outros acharão que essa pretensão megalómana é "ligeiramente" excessiva... dado o universo em questão. 

Porém, convirá perceber que se devemos diminuir o drama das hostilidades, algumas dificuldades, adversidades, não podem deixar de existir, sob pena de estagnação... afinal, "viver feliz para sempre" é apenas uma frase aplicável a vegetais, desprovidos de sistema nervoso.

The Cure - "Where the birds always sing" (*) 

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 19:01

Tinha arrumado o tópico "Arquitecturas", mas na sequência das pertinentes questões levantadas no comentário do Sid, acrescento mais algumas considerações.

Gillray: Britannia entre a Rocha Democrática e o Remoínho do Poder Absoluto.

O raciocínio humano entricheira-se entre Scila e Caribdis... de um lado forma conceitos que emergem da previsibilidade, por outro lado tende a submergir o que é previsível.
Num universo caótico não seria possível formar conceitos, edificar noções estáveis, e num universo demasiado previsível os conceitos mais complexos seriam desnecessários, a ponto de nem serem cogitados. Este ajustamento é mais do que uma simples "coincidência"...
Para dar um exemplo simples, basta pensar na condução... se a resposta do veículo fosse imprevisível face aos movimentos do volante, ninguém saberia conduzir (nem haveria nada para "saber"...), e por outro lado, após sabermos conduzir, o processo torna-se tão automático que fica submerso, relegado em gestos instintivos - o assunto já não merece reflexão.

Em sociedades de fácil sobrevivência, ao género de "paraísos tropicais", onde a fruta está à distância do braço, o engenho humano fica como acessório de vivência. Mas essa vivência pode transformar-se em problema de sobrevivência pelo engenho complexificador de relações sociais. Quando o mundo ficou sob domínio humano, os humanos passaram a temer o seu maior predador - os "outros".
Os "nossos" maiores inimigos são sempre os "outros"... nos "nossos" confiamos, dos "outros" desconfiamos. É claro que o engenho social conseguiu complexificar ainda mais, e a noção de "traição" deixa o indivíduo essencialmente isolado, face à imprevisibilidade de "todos os outros".
Pode caricaturar-se a situação: - na "lotaria dos animais" o Homem ganhou o paraíso, sem ler o aviso - "a incapacidade de partilha transforma paraísos em infernos".

Creio que já não há ministérios "da guerra", só "da defesa"... legitimando-se agora as guerras como "formas preventivas de defesa". E sempre assim foi... mesmo os mais empenhados conquistadores, em última análise procuravam eliminar ou neutralizar "inimigos", fosse por motivos externos ou internos. O medo dos "outros" é também "o medo dos outros", e auto-alimenta-se.

A "ascendência primata" do Homem parece ter relegado o Homem a um papel menos especial na "criação", libertando-se da visão antropocêntrica religiosa. Porém, não é apenas isso... ao contrário do que parece, legitima uma visão bem mais elitista. Afinal, se a diferença entre um homem e um outro primata for apenas resultado de uma evolução animal, também se pode pretender que a Eugenia possa levar a uma variação de raça, e até de espécie, ao ponto de se gerarem "super-homens". A visão do homem-macaco serve muito mais para justificar o tratamento animal que é dado a certos homens, do que para dar um tratamento humano aos animais... 
Há quem tenha cultivado a pureza na descendência, e não foram apenas os aristocratas de ascendência bárbara-goda, nem os nazis pela ideia de "raça ariana". Aproveito para agradecer aqui a oferta de um livro sobre "jewish eugenics", que me chegou há uns tempos pelo correio, sem que eu tenha percebido como obtiveram o meu endereço, ou qual foi o interesse em que o recebesse.

A falta de verdade, a necessidade de ludibriar, de esconder segredos, tudo isso resulta de uma falta de confiança, de fé nos "outros". Todas as quebras legitimarão ainda maiores desconfianças, e o cumprimento exemplar nunca afastará essa noção, escondida nos mais íntimos medos. Um sintoma típico da necessidade de confiança, sentida por algumas pessoas, acaba por se manifestar em animais de estimação, companheiros de onde não esperam especiais surpresas.
A confiança, a fé, sendo afastada dos outros, seus semelhantes, foi também relegada para um conceito externo, divino. As provações, os infortúnios, seriam compensados numa balança de justiça, repositora da verdade, para além da morte. Com alguma tentativa científica de desmistificação religiosa, e com uma expansão do pragmatismo moderno, a confiança humana passou depois a ter à "cabeça" - o capital. As instituições, os estados, vão perdendo a confiança depositada pelos cidadãos, e progressivamente aceita-se a "pena capital", como último depósito de garantias humanas.

Ao indivíduo que incorporou respostas a alguns porquês na sua infância, a ciência actual surge como estéril a esse tipo de perguntas. Formada pelo pragmatismo experimental, a ciência é essencialmente descritiva, e a sua máxima justificativa é a constatação ou "o acaso". À queda da pedra, acrescenta uma relação de aceleração, uma noção de gravidade, mas está longe de justificar, ou sequer de perguntar, por que razão tal força existe. Existe "porque sim", responde-se, como responde qualquer criança incomodada com uma pergunta. E nem é preciso ir à Física, cheia de "buracos negros", mesmo a Matemática pode estudar os números primos, estabelecer teoremas, mas não explica a razão da imprevisibilidade dessa sequência gerada afinal pela simples aritmética da multiplicação. Aliás, ainda é um problema em aberto saber se há uma infinidade de "primos gémeos"... o problema pode ser colocado a uma criança, mas a sua prova resiste há séculos, ou talvez há milénios, já que Euclides apresentou a prova da infinidade dos primos (simples) há mais de 2200 anos, e esses assuntos tinham a atenção dos gregos.

Acontece que, também por experiência, as coisas têm habitualmente algum nexo de causa, que nos permite uma compreensão do mundo que nos rodeia. É claro que este tipo de arquitectura faz suspeitar de um "desenho inteligente", a compasso da noção de um arquitecto divino. Ora, isso não acrescenta informação, apenas transfere o problema, porque essa mesma noção levanta outros problemas lógicos. Há uma outra resposta, que é parecida com o "porque sim", mas tem implícita uma informação muito maior - "é assim, porque não poderia ser doutra forma". E para se perceber um pouco dessa informação subjacente, volto à imagem de Scila e Caribdis... se não houvesse nenhum nexo, nada seria inteligível, e se o nexo fosse facilmente prescrutável, não seria necessária nenhuma inteligência complexa, porque a complexidade nem sequer existiria. Isto é mais ou menos óbvio, muita gente intui este "ter que ser assim", e ainda que seja entendido não é assumido, nem é reconfortante.
Há uma pretensão subjacente de compreensão absoluta, esquecendo a questão do aprofundamento no remoinho de Caribdis - caso tudo fosse explicado, entendido e corrigido, o que nos motivaria para o dia seguinte?

Também por constatação - algo muito científico - verificamos que as coisas ocorreram de uma maneira e não de outra. Isso levou à noção de determinismo, associada indelevelmente à noção de "destino". Talvez por receio de conotação religiosa, e para evitar a desresponsabilização humana, essa noção caiu em desuso no início do Séc. XX. A modelação humana iria ganhar supremacia face ao desenrolar do universo... ridículo, mas tido como "científico". As coisas eram colocadas desta forma: "a moeda tanto pode cair em cara ou coroa", uma constatação de modelação da possibilidade que escondia a impossibilidade de se saber se iria ser uma coisa ou outra. Não é errado pensar em probabilidades, mas é de um absurdo e arrogância considerar que a nossa incompreensão é que modela o universo. E, no entanto, hoje quase ninguém se atreve a dizer o contrário. Porque dizer o contrário é também assumir a impossibilidade do livre-arbítrio, e há que responsabilizar escolhas...
A noção de decisão surge da modelação interna que fazemos do que nos rodeia. O nosso modelo é obviamente impreciso, e por isso não conseguimos antecipar o resultado. Aliás se isso fosse possível, significaria que nos identificaríamos com o universo, e não haveria surpresas, nem tão pouco razão de ser. Ora, como a nossa modelação é imprecisa, pensamos em cenários, em diferentes possibilidades, e daí surge o conceito de que temos escolhas, e de que uma acção diferente levaria a outro resultado. Temos as mãos atadas ao volante, e seguimos o destino nos carris, sem distinguir se é o volante que vira por acção das nossas mãos, ou se são as nossas mãos que viram por acção do volante que segue os carris... e pensamos que poderíamos ter virado atrás noutra direcção, ou que teremos poder de decisão na próxima curva. Aí não seremos enganados, já vemos os carris, e viramos noutra direcção... seguindo os carris, porque os que víamos eram afinal parte do cenário onde contemplamos as diversas possibilidades.

O aumento da nossa compreensão não reduz necessariamente a nossa incompreensão, porque novos problemas se colocam. A melhor compreensão permite apenas que estejamos "mais sintonizados" com o que nos rodeia. A fabricação de logros, enganos, armadilhas, não é nenhuma evolução especial, e pode ser encontrada como forma de sobrevivência ou defesa em muitos animais, não é propriamente uma invenção da inteligência humana... e se há novidade é em ser usado contra a própria espécie. Aliás, se há espécie empenhada em eliminar os seus próprios elementos, é a humana...
O jogo entre a percepção interna e a realidade externa foi estabelecido há muito na "natureza", e tem um sucesso limitado. Em última análise, serve para caçar alguns, durante algum tempo, até que se torne quase irrelevante pela sua previsibilidade, dada a melhoria de percepção dos sobreviventes, ou pela competição interna que anula os predadores.
No jogo entre a fabricação de realidades e a percepção desse fabrico, uns procuram distorcer a percepção, e os outros apuram a compreensão e identificação das distorções. Uns afastam-se da realidade procurando criar um mundo à sua medida, os outros vão, por força das circunstâncias, apurar a sua percepção para a distinção entre realidade e fabricações.

No limite, uns pretendem uma manipulação artística do universo, transformando-o num teatro dos seus modelos, e para isso vão parasitando tudo, inclusivé as descobertas alheias, dos que abnegadamente vão aumentando a percepção científica. A essoutros, resta a convicção profunda, ou fé, de que o universo não se poderá reduzir a uma manipulação teatral. Uns acreditam que o fabrico de uns tantos artífices terá engenho suficiente para submeter tudo e todos, outros acharão que essa pretensão megalómana é "ligeiramente" excessiva... dado o universo em questão. 

Porém, convirá perceber que se devemos diminuir o drama das hostilidades, algumas dificuldades, adversidades, não podem deixar de existir, sob pena de estagnação... afinal, "viver feliz para sempre" é apenas uma frase aplicável a vegetais, desprovidos de sistema nervoso.

The Cure - "Where the birds always sing" (*) 

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 11:01

Ao fim de muito tempo, vi ontem, pela primeira vez em televisão, alguém referir-se à descoberta do Brasil em 1498 por Duarte Pacheco Pereira. Quem o fez foi Miguel Sousa Tavares, respondendo à pergunta final num programa da SIC-Notícias, chamado "Conversas Improváveis".

O incidente é isolado e nada tem de especial, para além de ir completamente contra a versão oficial, que atribui o relato de descoberta à viagem de Pedro Álvares Cabral em 1500.
A tese deveria ser largamente conhecida desde a publicação do Esmeraldo de Situ Orbis em 1892, por Raphael Basto, conservador da Torre do Tombo. Mais conhecida ainda quando Jorge Couto em 1995 sustentou a tese dessa descoberta anterior, com documentação adicional. Jorge Couto é uma figura reconhecida, tendo sido presidente do Instituto Camões e director da Biblioteca Nacional (2005-2011).
No entanto, apesar disso, que eu saiba, a tese de 1500 nunca foi beliscada em comunicações públicas, para uma larga plateia, por exemplo em televisão. Assim, a demonstração por Jorge Couto da viagem de Duarte Pacheco Pereira, em 1498, passa ao lado do folclore oficial, e de todo o comentário ou discussão, ao longo dos últimos 20 anos. Nada de estranhar, pois já teria passado ao lado da discussão do grande público durante todo o Séc. XX. Afinal, passam já 120 anos desde a publicação por Raphael Basto, que confrontou dois exemplares do Esmeraldo de Situ Orbis. Os exemplares estavam incompletos, sem nenhum dos 16 mapas (vistos na biblioteca dos Marqueses de Abrantes), e aparentemente em Setembro de 1844, para além da lei sobre funerais que originou depois a Revolta da Maria da Fonte, também houve uma portaria que retirou o livro da Biblioteca de Évora.
O detalhe da descoberta do Brasil em 1498, inscrito no livro, não passou obviamente despercebido, pois é referido pelo próprio inspector em 1891, na primeira página.

A afirmação que Duarte Pacheco Pereira dirige a D. Manuel é esta:
(...) alem do que dito é, a experiência que é madre das coisas nos desengana & de toda duvida nos tira & portanto bem aventurado Principe temos sabido & visto como no terceiro ano de vosso Reinado do ano de nosso senhor de mil quatrocentos noventa & oito donde nos vossa alteza mandou descobrir a parte ocidental passando alem a grandeza do mar oceano onde é achada & navegada uma tão grande terra firme com muitas & grandes ilhas adjacentes a ela que se estende a setenta graus de ladeza da linha equinocial contra o polo artico  & posto que seja assaz fora é grandemente pauorada, & do mesmo circulo equinocial toma outra vez & vai além em vinte & oito graus & meio de ladeza contra o polo antartico (...)

Fica completamente claro que Duarte Pacheco Pereira ao referir-se a uma extensão de terra firme que vai da latitude 70ºN (Gronelândia, Norte do Canadá) a 28ºS (Rio Grande do Sul, Brasil), dá logo no ano de 1506 uma informação demasiado detalhada sobre o que se conhecia da América. Aliás, dá informações precisas sobre a parte da América que estaria destinada dentro do Hemisfério português, de acordo com o Tratado de Tordesilhas. Isto praticamente mostra que o conhecimento do continente americano era completo, antes mesmo do nome América ter sido associado a Alberico Vespúcio. Dizer que 1498 é a data da primeira viagem ao Brasil apenas peca por ser tão escasso quanto tudo o que esconde essa afirmação e que Duarte Pacheco Pereira revela.

Quando falei do Esmeraldo de Situ Orbis, em 17 de Dezembro de 2009, no Knol da Google, escrevi o seguinte:

Duarte Pacheco Pereira não tem problema em atribuir navegações, para o contorno costeiro de África - aos gregos e fenícios... e até se atribuem navegações atlânticas aos fenícios!
Porquê?... porque isso não era nada, comparado com as navegações nacionais!
Duarte Pacheco Pereira, no seu "Esmeraldo de Situ Orbis", é bastante claro a esse respeito... mas também diz que teve o cuidado de preparar essa obra convenientemente, pois D. Manuel quereria "fiar-se" do que iria escrever... e, mesmo assim, a obra esteve perdida até ao Séc. XIX.
Tem um pequeno descuido, onde diz explicitamente que navegou para o Brasil, a mando de D. Manuel em 1498, mas isso é um detalhe sem qualquer importância, face a tudo o resto que nos consegue dizer - para quem o queira ler a sério!

Nessa altura procurei ligar a descrição da Costa de África à descrição da Costa Americana
Paralelismo África-América (Tese de Alvor-Silves, Dezembro 2009)

Vim na altura a saber (pelo José Manuel-CH) que a Duquesa de Medina-Sidonia, Luisa Alvarez de Toledo tinha argumentado no mesmo sentido no livro Africa versus America.

Provavelmente, caso fosse hoje, nem teria escrito nada acerca desse paralelismo... simplesmente porque é difícil sustentar a tese baseando-nos apenas na leitura de textos antigos, já que facilmente se poderá contra-argumentar que se tratam de coincidências interpretativas, sem usar outras provas.
Se usei aqui muitas interpretações, e fui avançando com diversas possibilidades, elas foram sendo sustentadas cada vez mais em citações literais, e factos documentais. Inicialmente não fazia ideia de que existisse tanta matéria "escondida com o rabo de fora", e por isso ainda procurava estabelecer relações fugazes, que pouco a pouco deixaram de ser fugazes... 

Quebrada a confiança com o conhecimento oficial, aquilo que escrevi sofre de toda a incerteza sobre as fontes e sobre a interpretação que fazemos delas. As diversas hipóteses que fui escrevendo resultam de tentativas parciais de encontrar nexo lógico, sem desacreditar tudo o que nos foi transmitido. O formato de blog tem a vantagem de não pretender ser mais do que uma interpretação escrita naquela data, em face da conjugação dos diversos dados acumulados, procurando focar mais no nexo lógico global do que no detalhes contraditórios.
Afinal, o que podemos saber resulta apenas do que nos é dado a saber... nada mais do que isso.
A maioria dos textos a que temos acesso é posterior à Idade Média, e muito tempo terá havido para definir o conhecimento que se divulgaria e o que iria ser ocultado. O povo nasce órfão de informação antiga... mal conhecemos os nomes dos trisavós, e poucas famílias passaram no seu seio histórias anteriores ao Séc. XIX. A partir daí fica só a confiança na cultura comum aprendida na escola formadora de mentes... Mesmo sobre monumentos/livros, devemos contar com reconstruções/ reedições, com a boa-fé dos criadores/autores, etc.
Quebrada a confiança, a grande certeza é a incerteza... e se dela não se livra o povo, órfão de antigos legados familiares, também não estarão muito mais seguros os depositários de conhecimento mais antigo. Afinal, têm que contar que a informação nunca foi alterada, coisa algo difícil de assumir mesmo em casas reais europeias, cujo legado teve múltiplas oscilações, e dificilmente chega ao Séc. X d.C. Indo mais longe, o registo perde-se nos legados religiosos. 
De qualquer forma, esquecendo o encobrimento nas descobertas arqueológicas, não há aparentemente um registo fiável para além das civilizações egípcias ou mesopotâmicas... como se os nossos anteriores antepassados nada nos tivessem querido deixar de importante. 
E, no entanto, em todos os povos parece ter havido a necessidade de transmitir um legado, não tanto uma história factual, mas antes uma tradição cultural religiosa, cujo significado primeiro se perdeu. A excepção parece ser a tradição hebraica, já que o Velho Testamento engloba também uma história do povo.
Vemos assim que o conhecimento que foi passando, não apagado entre gerações, foi uma mensagem religiosa autorizada. As histórias de heróis deveriam ser igualmente populares, mas retirando personagens divinos, poucas ficaram nos mitos, e talvez Hércules seja a excepção humana.
As novas gerações nasciam com conhecimento restrito, com pouco mais do que recebiam dos pais,  quase ignorando os avós. Quando isso acontece a evolução é normalmente pequena, e os jovens arriscam a fazer apenas uma repetição do percurso dos progenitores, sem acumular inovação no conhecimento. Isso seria tanto mais efectivo quanto as imposições religiosas visassem condicionar o progresso do conhecimento. A motivação poderia ser simplesmente manter o maior conhecimento na pequena elite reinante, para facilitar o controlo. No entanto, essa estagnação cultural funciona localmente, permite manter uma elite tribal, pelas condicionantes e proibições, mas não aguenta o embate com outra civilização em que o progresso de conhecimento seja mais valorizado e generalizado. Basta ver que em pouco mais de 200 anos de difusão de conhecimento, passámos de carruagens para aviões e foguetões....
Na tentativa de preservar a ordem, mantendo a habitual distância entre o conhecimento da elite e o conhecimento popular, compromete-se o progresso e a sociedade cairá no vício de estagnação, alimentado por sucessivas imposições e proibições, tal como nas primitivas sociedades tribais condicionadas pela religiosidade e tradição cultural fechada.

No santuário de Delfos haveria a inscrição "conhece-te a ti mesmo"... e sem dúvida que esse é o primeiro passo do homem, mas depois deve ser aplicado aos homens em conjunto, na sua unidade de conhecimento. 
Enquanto não percebermos o que fomos, o que nos condicionou e condiciona, dificilmente podemos definir o que devemos ser, funcionando como uma hidra insana... com múltiplas cabeças não coordenadas, competindo pelo controlo do mesmo corpo.
Temos até um exemplo interno... se os nossos hemisférios cerebrais direito e esquerdo funcionassem isoladamente e competitivamente, desconfiando um do outro, mentindo um ao outro... alguma vez teríamos tido sucesso enquanto organismo?

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publicado às 04:43

Ao fim de muito tempo, vi ontem, pela primeira vez em televisão, alguém referir-se à descoberta do Brasil em 1498 por Duarte Pacheco Pereira. Quem o fez foi Miguel Sousa Tavares, respondendo à pergunta final num programa da SIC-Notícias, chamado "Conversas Improváveis".

O incidente é isolado e nada tem de especial, para além de ir completamente contra a versão oficial, que atribui o relato de descoberta à viagem de Pedro Álvares Cabral em 1500.
A tese deveria ser largamente conhecida desde a publicação do Esmeraldo de Situ Orbis em 1892, por Raphael Basto, conservador da Torre do Tombo. Mais conhecida ainda quando Jorge Couto em 1995 sustentou a tese dessa descoberta anterior, com documentação adicional. Jorge Couto é uma figura reconhecida, tendo sido presidente do Instituto Camões e director da Biblioteca Nacional (2005-2011).
No entanto, apesar disso, que eu saiba, a tese de 1500 nunca foi beliscada em comunicações públicas, para uma larga plateia, por exemplo em televisão. Assim, a demonstração por Jorge Couto da viagem de Duarte Pacheco Pereira, em 1498, passa ao lado do folclore oficial, e de todo o comentário ou discussão, ao longo dos últimos 20 anos. Nada de estranhar, pois já teria passado ao lado da discussão do grande público durante todo o Séc. XX. Afinal, passam já 120 anos desde a publicação por Raphael Basto, que confrontou dois exemplares do Esmeraldo de Situ Orbis. Os exemplares estavam incompletos, sem nenhum dos 16 mapas (vistos na biblioteca dos Marqueses de Abrantes), e aparentemente em Setembro de 1844, para além da lei sobre funerais que originou depois a Revolta da Maria da Fonte, também houve uma portaria que retirou o livro da Biblioteca de Évora.
O detalhe da descoberta do Brasil em 1498, inscrito no livro, não passou obviamente despercebido, pois é referido pelo próprio inspector em 1891, na primeira página.

A afirmação que Duarte Pacheco Pereira dirige a D. Manuel é esta:
(...) alem do que dito é, a experiência que é madre das coisas nos desengana & de toda duvida nos tira & portanto bem aventurado Principe temos sabido & visto como no terceiro ano de vosso Reinado do ano de nosso senhor de mil quatrocentos noventa & oito donde nos vossa alteza mandou descobrir a parte ocidental passando alem a grandeza do mar oceano onde é achada & navegada uma tão grande terra firme com muitas & grandes ilhas adjacentes a ela que se estende a setenta graus de ladeza da linha equinocial contra o polo artico  & posto que seja assaz fora é grandemente pauorada, & do mesmo circulo equinocial toma outra vez & vai além em vinte & oito graus & meio de ladeza contra o polo antartico (...)

Fica completamente claro que Duarte Pacheco Pereira ao referir-se a uma extensão de terra firme que vai da latitude 70ºN (Gronelândia, Norte do Canadá) a 28ºS (Rio Grande do Sul, Brasil), dá logo no ano de 1506 uma informação demasiado detalhada sobre o que se conhecia da América. Aliás, dá informações precisas sobre a parte da América que estaria destinada dentro do Hemisfério português, de acordo com o Tratado de Tordesilhas. Isto praticamente mostra que o conhecimento do continente americano era completo, antes mesmo do nome América ter sido associado a Alberico Vespúcio. Dizer que 1498 é a data da primeira viagem ao Brasil apenas peca por ser tão escasso quanto tudo o que esconde essa afirmação e que Duarte Pacheco Pereira revela.

Quando falei do Esmeraldo de Situ Orbis, em 17 de Dezembro de 2009, no Knol da Google, escrevi o seguinte:

Duarte Pacheco Pereira não tem problema em atribuir navegações, para o contorno costeiro de África - aos gregos e fenícios... e até se atribuem navegações atlânticas aos fenícios!
Porquê?... porque isso não era nada, comparado com as navegações nacionais!
Duarte Pacheco Pereira, no seu "Esmeraldo de Situ Orbis", é bastante claro a esse respeito... mas também diz que teve o cuidado de preparar essa obra convenientemente, pois D. Manuel quereria "fiar-se" do que iria escrever... e, mesmo assim, a obra esteve perdida até ao Séc. XIX.
Tem um pequeno descuido, onde diz explicitamente que navegou para o Brasil, a mando de D. Manuel em 1498, mas isso é um detalhe sem qualquer importância, face a tudo o resto que nos consegue dizer - para quem o queira ler a sério!

Nessa altura procurei ligar a descrição da Costa de África à descrição da Costa Americana
Paralelismo África-América (Tese de Alvor-Silves, Dezembro 2009)

Vim na altura a saber (pelo José Manuel-CH) que a Duquesa de Medina-Sidonia, Luisa Alvarez de Toledo tinha argumentado no mesmo sentido no livro Africa versus America.

Provavelmente, caso fosse hoje, nem teria escrito nada acerca desse paralelismo... simplesmente porque é difícil sustentar a tese baseando-nos apenas na leitura de textos antigos, já que facilmente se poderá contra-argumentar que se tratam de coincidências interpretativas, sem usar outras provas.
Se usei aqui muitas interpretações, e fui avançando com diversas possibilidades, elas foram sendo sustentadas cada vez mais em citações literais, e factos documentais. Inicialmente não fazia ideia de que existisse tanta matéria "escondida com o rabo de fora", e por isso ainda procurava estabelecer relações fugazes, que pouco a pouco deixaram de ser fugazes... 

Quebrada a confiança com o conhecimento oficial, aquilo que escrevi sofre de toda a incerteza sobre as fontes e sobre a interpretação que fazemos delas. As diversas hipóteses que fui escrevendo resultam de tentativas parciais de encontrar nexo lógico, sem desacreditar tudo o que nos foi transmitido. O formato de blog tem a vantagem de não pretender ser mais do que uma interpretação escrita naquela data, em face da conjugação dos diversos dados acumulados, procurando focar mais no nexo lógico global do que no detalhes contraditórios.
Afinal, o que podemos saber resulta apenas do que nos é dado a saber... nada mais do que isso.
A maioria dos textos a que temos acesso é posterior à Idade Média, e muito tempo terá havido para definir o conhecimento que se divulgaria e o que iria ser ocultado. O povo nasce órfão de informação antiga... mal conhecemos os nomes dos trisavós, e poucas famílias passaram no seu seio histórias anteriores ao Séc. XIX. A partir daí fica só a confiança na cultura comum aprendida na escola formadora de mentes... Mesmo sobre monumentos/livros, devemos contar com reconstruções/ reedições, com a boa-fé dos criadores/autores, etc.
Quebrada a confiança, a grande certeza é a incerteza... e se dela não se livra o povo, órfão de antigos legados familiares, também não estarão muito mais seguros os depositários de conhecimento mais antigo. Afinal, têm que contar que a informação nunca foi alterada, coisa algo difícil de assumir mesmo em casas reais europeias, cujo legado teve múltiplas oscilações, e dificilmente chega ao Séc. X d.C. Indo mais longe, o registo perde-se nos legados religiosos. 
De qualquer forma, esquecendo o encobrimento nas descobertas arqueológicas, não há aparentemente um registo fiável para além das civilizações egípcias ou mesopotâmicas... como se os nossos anteriores antepassados nada nos tivessem querido deixar de importante. 
E, no entanto, em todos os povos parece ter havido a necessidade de transmitir um legado, não tanto uma história factual, mas antes uma tradição cultural religiosa, cujo significado primeiro se perdeu. A excepção parece ser a tradição hebraica, já que o Velho Testamento engloba também uma história do povo.
Vemos assim que o conhecimento que foi passando, não apagado entre gerações, foi uma mensagem religiosa autorizada. As histórias de heróis deveriam ser igualmente populares, mas retirando personagens divinos, poucas ficaram nos mitos, e talvez Hércules seja a excepção humana.
As novas gerações nasciam com conhecimento restrito, com pouco mais do que recebiam dos pais,  quase ignorando os avós. Quando isso acontece a evolução é normalmente pequena, e os jovens arriscam a fazer apenas uma repetição do percurso dos progenitores, sem acumular inovação no conhecimento. Isso seria tanto mais efectivo quanto as imposições religiosas visassem condicionar o progresso do conhecimento. A motivação poderia ser simplesmente manter o maior conhecimento na pequena elite reinante, para facilitar o controlo. No entanto, essa estagnação cultural funciona localmente, permite manter uma elite tribal, pelas condicionantes e proibições, mas não aguenta o embate com outra civilização em que o progresso de conhecimento seja mais valorizado e generalizado. Basta ver que em pouco mais de 200 anos de difusão de conhecimento, passámos de carruagens para aviões e foguetões....
Na tentativa de preservar a ordem, mantendo a habitual distância entre o conhecimento da elite e o conhecimento popular, compromete-se o progresso e a sociedade cairá no vício de estagnação, alimentado por sucessivas imposições e proibições, tal como nas primitivas sociedades tribais condicionadas pela religiosidade e tradição cultural fechada.

No santuário de Delfos haveria a inscrição "conhece-te a ti mesmo"... e sem dúvida que esse é o primeiro passo do homem, mas depois deve ser aplicado aos homens em conjunto, na sua unidade de conhecimento. 
Enquanto não percebermos o que fomos, o que nos condicionou e condiciona, dificilmente podemos definir o que devemos ser, funcionando como uma hidra insana... com múltiplas cabeças não coordenadas, competindo pelo controlo do mesmo corpo.
Temos até um exemplo interno... se os nossos hemisférios cerebrais direito e esquerdo funcionassem isoladamente e competitivamente, desconfiando um do outro, mentindo um ao outro... alguma vez teríamos tido sucesso enquanto organismo?

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publicado às 04:43

Ao fim de muito tempo, vi ontem, pela primeira vez em televisão, alguém referir-se à descoberta do Brasil em 1498 por Duarte Pacheco Pereira. Quem o fez foi Miguel Sousa Tavares, respondendo à pergunta final num programa da SIC-Notícias, chamado "Conversas Improváveis".

O incidente é isolado e nada tem de especial, para além de ir completamente contra a versão oficial, que atribui o relato de descoberta à viagem de Pedro Álvares Cabral em 1500.
A tese deveria ser largamente conhecida desde a publicação do Esmeraldo de Situ Orbis em 1892, por Raphael Basto, conservador da Torre do Tombo. Mais conhecida ainda quando Jorge Couto em 1995 sustentou a tese dessa descoberta anterior, com documentação adicional. Jorge Couto é uma figura reconhecida, tendo sido presidente do Instituto Camões e director da Biblioteca Nacional (2005-2011).
No entanto, apesar disso, que eu saiba, a tese de 1500 nunca foi beliscada em comunicações públicas, para uma larga plateia, por exemplo em televisão. Assim, a demonstração por Jorge Couto da viagem de Duarte Pacheco Pereira, em 1498, passa ao lado do folclore oficial, e de todo o comentário ou discussão, ao longo dos últimos 20 anos. Nada de estranhar, pois já teria passado ao lado da discussão do grande público durante todo o Séc. XX. Afinal, passam já 120 anos desde a publicação por Raphael Basto, que confrontou dois exemplares do Esmeraldo de Situ Orbis. Os exemplares estavam incompletos, sem nenhum dos 16 mapas (vistos na biblioteca dos Marqueses de Abrantes), e aparentemente em Setembro de 1844, para além da lei sobre funerais que originou depois a Revolta da Maria da Fonte, também houve uma portaria que retirou o livro da Biblioteca de Évora.
O detalhe da descoberta do Brasil em 1498, inscrito no livro, não passou obviamente despercebido, pois é referido pelo próprio inspector em 1891, na primeira página.

A afirmação que Duarte Pacheco Pereira dirige a D. Manuel é esta:
(...) alem do que dito é, a experiência que é madre das coisas nos desengana & de toda duvida nos tira & portanto bem aventurado Principe temos sabido & visto como no terceiro ano de vosso Reinado do ano de nosso senhor de mil quatrocentos noventa & oito donde nos vossa alteza mandou descobrir a parte ocidental passando alem a grandeza do mar oceano onde é achada & navegada uma tão grande terra firme com muitas & grandes ilhas adjacentes a ela que se estende a setenta graus de ladeza da linha equinocial contra o polo artico  & posto que seja assaz fora é grandemente pauorada, & do mesmo circulo equinocial toma outra vez & vai além em vinte & oito graus & meio de ladeza contra o polo antartico (...)

Fica completamente claro que Duarte Pacheco Pereira ao referir-se a uma extensão de terra firme que vai da latitude 70ºN (Gronelândia, Norte do Canadá) a 28ºS (Rio Grande do Sul, Brasil), dá logo no ano de 1506 uma informação demasiado detalhada sobre o que se conhecia da América. Aliás, dá informações precisas sobre a parte da América que estaria destinada dentro do Hemisfério português, de acordo com o Tratado de Tordesilhas. Isto praticamente mostra que o conhecimento do continente americano era completo, antes mesmo do nome América ter sido associado a Alberico Vespúcio. Dizer que 1498 é a data da primeira viagem ao Brasil apenas peca por ser tão escasso quanto tudo o que esconde essa afirmação e que Duarte Pacheco Pereira revela.

Quando falei do Esmeraldo de Situ Orbis, em 17 de Dezembro de 2009, no Knol da Google, escrevi o seguinte:

Duarte Pacheco Pereira não tem problema em atribuir navegações, para o contorno costeiro de África - aos gregos e fenícios... e até se atribuem navegações atlânticas aos fenícios!
Porquê?... porque isso não era nada, comparado com as navegações nacionais!
Duarte Pacheco Pereira, no seu "Esmeraldo de Situ Orbis", é bastante claro a esse respeito... mas também diz que teve o cuidado de preparar essa obra convenientemente, pois D. Manuel quereria "fiar-se" do que iria escrever... e, mesmo assim, a obra esteve perdida até ao Séc. XIX.
Tem um pequeno descuido, onde diz explicitamente que navegou para o Brasil, a mando de D. Manuel em 1498, mas isso é um detalhe sem qualquer importância, face a tudo o resto que nos consegue dizer - para quem o queira ler a sério!

Nessa altura procurei ligar a descrição da Costa de África à descrição da Costa Americana
Paralelismo África-América (Tese de Alvor-Silves, Dezembro 2009)

Vim na altura a saber (pelo José Manuel-CH) que a Duquesa de Medina-Sidonia, Luisa Alvarez de Toledo tinha argumentado no mesmo sentido no livro Africa versus America.

Provavelmente, caso fosse hoje, nem teria escrito nada acerca desse paralelismo... simplesmente porque é difícil sustentar a tese baseando-nos apenas na leitura de textos antigos, já que facilmente se poderá contra-argumentar que se tratam de coincidências interpretativas, sem usar outras provas.
Se usei aqui muitas interpretações, e fui avançando com diversas possibilidades, elas foram sendo sustentadas cada vez mais em citações literais, e factos documentais. Inicialmente não fazia ideia de que existisse tanta matéria "escondida com o rabo de fora", e por isso ainda procurava estabelecer relações fugazes, que pouco a pouco deixaram de ser fugazes... 

Quebrada a confiança com o conhecimento oficial, aquilo que escrevi sofre de toda a incerteza sobre as fontes e sobre a interpretação que fazemos delas. As diversas hipóteses que fui escrevendo resultam de tentativas parciais de encontrar nexo lógico, sem desacreditar tudo o que nos foi transmitido. O formato de blog tem a vantagem de não pretender ser mais do que uma interpretação escrita naquela data, em face da conjugação dos diversos dados acumulados, procurando focar mais no nexo lógico global do que no detalhes contraditórios.
Afinal, o que podemos saber resulta apenas do que nos é dado a saber... nada mais do que isso.
A maioria dos textos a que temos acesso é posterior à Idade Média, e muito tempo terá havido para definir o conhecimento que se divulgaria e o que iria ser ocultado. O povo nasce órfão de informação antiga... mal conhecemos os nomes dos trisavós, e poucas famílias passaram no seu seio histórias anteriores ao Séc. XIX. A partir daí fica só a confiança na cultura comum aprendida na escola formadora de mentes... Mesmo sobre monumentos/livros, devemos contar com reconstruções/ reedições, com a boa-fé dos criadores/autores, etc.
Quebrada a confiança, a grande certeza é a incerteza... e se dela não se livra o povo, órfão de antigos legados familiares, também não estarão muito mais seguros os depositários de conhecimento mais antigo. Afinal, têm que contar que a informação nunca foi alterada, coisa algo difícil de assumir mesmo em casas reais europeias, cujo legado teve múltiplas oscilações, e dificilmente chega ao Séc. X d.C. Indo mais longe, o registo perde-se nos legados religiosos. 
De qualquer forma, esquecendo o encobrimento nas descobertas arqueológicas, não há aparentemente um registo fiável para além das civilizações egípcias ou mesopotâmicas... como se os nossos anteriores antepassados nada nos tivessem querido deixar de importante. 
E, no entanto, em todos os povos parece ter havido a necessidade de transmitir um legado, não tanto uma história factual, mas antes uma tradição cultural religiosa, cujo significado primeiro se perdeu. A excepção parece ser a tradição hebraica, já que o Velho Testamento engloba também uma história do povo.
Vemos assim que o conhecimento que foi passando, não apagado entre gerações, foi uma mensagem religiosa autorizada. As histórias de heróis deveriam ser igualmente populares, mas retirando personagens divinos, poucas ficaram nos mitos, e talvez Hércules seja a excepção humana.
As novas gerações nasciam com conhecimento restrito, com pouco mais do que recebiam dos pais,  quase ignorando os avós. Quando isso acontece a evolução é normalmente pequena, e os jovens arriscam a fazer apenas uma repetição do percurso dos progenitores, sem acumular inovação no conhecimento. Isso seria tanto mais efectivo quanto as imposições religiosas visassem condicionar o progresso do conhecimento. A motivação poderia ser simplesmente manter o maior conhecimento na pequena elite reinante, para facilitar o controlo. No entanto, essa estagnação cultural funciona localmente, permite manter uma elite tribal, pelas condicionantes e proibições, mas não aguenta o embate com outra civilização em que o progresso de conhecimento seja mais valorizado e generalizado. Basta ver que em pouco mais de 200 anos de difusão de conhecimento, passámos de carruagens para aviões e foguetões....
Na tentativa de preservar a ordem, mantendo a habitual distância entre o conhecimento da elite e o conhecimento popular, compromete-se o progresso e a sociedade cairá no vício de estagnação, alimentado por sucessivas imposições e proibições, tal como nas primitivas sociedades tribais condicionadas pela religiosidade e tradição cultural fechada.

No santuário de Delfos haveria a inscrição "conhece-te a ti mesmo"... e sem dúvida que esse é o primeiro passo do homem, mas depois deve ser aplicado aos homens em conjunto, na sua unidade de conhecimento. 
Enquanto não percebermos o que fomos, o que nos condicionou e condiciona, dificilmente podemos definir o que devemos ser, funcionando como uma hidra insana... com múltiplas cabeças não coordenadas, competindo pelo controlo do mesmo corpo.
Temos até um exemplo interno... se os nossos hemisférios cerebrais direito e esquerdo funcionassem isoladamente e competitivamente, desconfiando um do outro, mentindo um ao outro... alguma vez teríamos tido sucesso enquanto organismo?

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