O Latim teve uma particularidade invulgar... sendo a língua oficial do Império Romano, e depois mantendo-se como língua documental durante toda a Idade Média, é e foi mantida como língua morta durante dois milénios.
A questão da origem das línguas latinas com base no Latim foi colocada de forma acutilante pelo Cardeal Saraiva numa memória (
Vol.9-pg.165) enviada à Academia das Ciências (1837):
Em que se pretende mostrar, que a Lingua Portuguesa não he filha da Latina, nem esta foi em tempo algum a lingua vulgar dos Lusitanos.
Colocamos aqui a imagem que antecipa o texto:
O Cardeal Saraiva acaba por recorrer aos argumentos mais simples, e encontra forte suporte nalguns dados documentais. O opúsculo de quarenta páginas é de fácil leitura e compreensão, mas foi e será certamente polémico, pois como é óbvio esbarrava com toda a teoria oficial. Saraiva foi uma figura marcante do liberalismo e teve o apoio do Duque de Palmela (Pedro Holstein). Curiosamente, é imediatamente a seguir à sua morte que eclode, no seu Minho natal, a
revolta da Maria da Fonte. O seu nome marcante tem expressão num
jornal local.
Em poucas palavras, é óbvio que há semelhanças entre português, espanhol, italiano, francês... e romeno, mas isso não se justifica necessariamente pelo domínio romano. Como Saraiva argumenta, se tal fosse um requisito de ocupação, então toda a bacia mediterrânica não teria escapado a essa língua comum. Nada justificaria que os povos da península ibérica ou os gauleses abdicassem da sua língua anterior, a ponto de o basco ser a única excepção.
A tese de Saraiva leva a uma justificação mais simples, a influência do Latim nestas línguas foi recíproca.
Haveria uma cultura de origem linguística comum que se estenderia pela "zona celta". A excepção romena pode acomodar a justificação oficial (deportação da população, e colonização romana), ou pode ainda reflectir a conexão mítica entre as civilizações do Mar Negro com a península ibérica.
Os gregos não perderam a sua língua, e Saraiva cita as queixas de Cícero, dizendo que o grego era mais falado do que o latim, que reduzia a sua expressão à região natal do Lácio. Argumenta ainda que só uma pressão inusitada, ou um quase extermínio, poderia levar ao completo desaparecimento da língua. Dá o exemplo egípcio, que mantiveram a língua mesmo sob ocupação da dinastia Ptolomaica grega, e depois sob ocupação romana, tendo restado apenas a sua presença nos Coptas, após o longo domínio árabe.
É mais evidente que no caso ibérico, a resistência linguística foi muito para além da presença árabe. Não haveria razão aparente para manter a tradição linguística romana, quando em documentos romanos se reconhece a presença de línguas locais. Saraiva invoca ainda Cícero para notar que já nesse tempo havia uma língua basca, muito diferente... a ponto de Cícero dizer que era mais próxima a cultura e língua gaulesa com a da Hispânia, do que com o povo que habitava a zona basca.
Saraiva torna evidente que a situação linguística no tempo do Império Romano não seria muito diferente da que emergiu para os nossos dias. Mais, acrescenta que as tentativas de formalização linguística ocorridas durante o Renascimento, essas sim procuraram uma base rigorosa no Latim. Ou seja, a língua portuguesa (e as restantes) terão sofrido uma maior transformação voluntária posteriormente, no sentido de ganharem um corpo gramatical mais rigoroso.
De facto, notamos essa influência gramatical no alemão, que guardou mais regras gramaticais romanas do que o próprio italiano!
Se nos é difícil ler documentos medievais mais antigos, é porque estão mais próximos da língua original. A alteração de credibilização das línguas locais feita no Renascimento, ao beber no Latim, tornou as várias línguas mais próximas entre si e acentuou o uso de termos latinos. A influência da colonização não ocorreria nas línguas germânicas doutra forma. Saraiva acaba por aproximar do milhar o número de palavras latinas que não eram usadas na Idade Média, e que foram depois importadas do Latim (atribui a Camões mais de cem novas palavras).
Se na Grã-Bretanha encontramos uma tradição de língua gaélica, que permaneceu, parece difícil conceber que as línguas ibéricas tenham todas desaparecido, à excepção do basco... quando essa diferença já era notada por Cícero.
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