Nas últimas décadas, em que Fernando Pessoa foi elevado ao estrelato nacional, é de certa forma inconveniente um seu pequeno opúsculo de 31 páginas, escrito em 1928, onde defendia a implantação da Ditadura em Portugal:
Fernando Pessoa (1928)
Citamos uma parte do manuscrito que o mação Pessoa se viria a arrepender de ter escrito, ao mesmo tempo que à época não deixa manifestar orgulho nele - "Não há hoje quem, no nosso país ou em outro, tenha alma e mente, ainda que combinando-se, para compor um opúsculo como este. D'isto nos orgulhamos."; e se isto parece um excesso egocêntrico, é justificado, pois a sua análise é boa.
Talvez seja mesmo brilhante, mas quando o próprio exibe grande conta, dispensa mais superlativos. Deixo então um extracto (pág. 27)
Concentrados, dos Filipes ao liberalismo, numa estreita tradição familiar, provinciana e religiosa; animalizados, nas classes médias pela educação fradesca, e, nas classes baixas, bestializados pelo analfabetismo que se distingue nas nações católicas, onde não é mister conhecer a Bíblia para ser cristão; desenvolvemos, nas classes superiores, onde principalmente se forma a opinião de intuição, a violenta reacção correspondente a esta acção violenta.
Desnacionalizámos a nossa política, desnacionalizámos a nossa administração, desnacionalizámos a nossa cultura.
A desnacionalização explodiu no constitucionalismo, dádiva que, em reacção, recebemos da Igreja Católica.
Com o constitucionalismo deu-se a desnacionalização quase total das esferas superiores da Nação. Produziu-se a reacção contrária, e, do mesmo modo que na Russia de hoje, se bem que em menor grau, a opinião de hábito recuou para além da província, para além da religião, em muitos casos para além da família.
Surgiu a contra-reacção: veio a República e, com ela, o estrangeiramento completo. Tornou a haver o movimento contrário; estamos hoje sem vida provincial definida, com a religião convertida em superstição e em moda, com a família em plena dissolução. Se dermos mais um passo neste jogo de acções e reacções, estaremos no comunismo e em comer raízes - aliás o terminus natural deste sistema humanitário. É este o estado presente dos dois elementos componentes da opinião pública portuguesa.
Em poucas palavras, indo ao princípio físico newtoniano, da acção-reacção, Pessoa procura estabelecer o processo de repetição histórica entre uma visão local e global, como oscilação pendular. Ou seja, quando domina o estrangeirismo, é desestruturada a cultura provinciana, familiar, depois por reacção nacionalista, esses valores familiares, religiosos, são de novo elevados ao topo, e o país fecha-se a qualquer influência estrangeira. Segundo a visão de Pessoa, isto só teria sido diferente aquando da expansão marítima:
No caso notável do início dos nossos Descobrimentos, a opinião de hábito se opunha à novidade deles, a de intuição a promovia; porém uma e outra não pensavam fora do ideal de grandeza pátria, ou seja, no fundo, do ideal do império. Assim pôde o Império Português, quando por mal ou bem, veio a ser, ser informado por toda a alma de Portugal.
Porém, a ditadura que trazia alguma ordem ao caos republicano, não rumou no sentido de um grande império global, ao invés, conforme a reacção local prevista ao entrangeirismo republicano, voltou a fechar-se na cultura provinciana, tacanha, de dimensão local, ainda que espalhada pelo globo.
Coitadinho do tiraninho! Não bebe vinho; nem sequer sozinho…
Bebe a verdade; e a liberdade; e com tal agrado; que já começam a escassear no mercado.
Coitadinho do tiraninho!
O meu vizinho está na Guiné; e o meu padrinho no Limoeiro; aqui ao pé, e ninguém sabe porquê.
O rei reside em segredo; no governar da Nação;
Que é um realismo com medo; chama-se nação ao Rei; e tudo isto é Rei-nação.
A República pragmática; que hoje temos já não é a meretriz democrática;
como deixou de ser pública; agora é somente Ré.
Parece-me que a dimensão que Pessoa pretendia em Portugal, era simplesmente a detida pela Grã-Bretanha, e depois pretendida pela Alemanha, na sua pretensão imperial nazi. Mas ao contrário do que previa Pessoa, o comunismo não se resumiu "a comer raízes", e a disputa por um império de influência global, ocorreu no confronto entre EUA e URSS, ambas desprezando ou suprimindo os interesses locais.
A análise de Pessoa só é mais notável porque facilmente a encontramos plasmada de novo, no confronto entre os interesses nacionalistas locais, e a imposição de impérios de comércio global que destroem ou ignoram a dimensão local, as tradições culturais e a estrutura familiar, e com isso o bem estar individual é sacrificado face ao plano global.
O problema geral de Pessoa seria o mesmo que uma boa parte dos portugueses... nasceram educados nas grandezas passadas, para uma pequenez presente. Como costumo dizer, ou a mãezinha, ou o espírito santo de orelha, disse-lhes que tinham "grande queda", mas nunca encontraram sítio onde cair, onde exibir tão excelso dote. No caso de Pessoa, essa frustração pessoal encontrou maior âmbito como frustração de toda a nação portuguesa, cada vez mais reduzida na sua influência global.
O "Botas", a forma pejorativa como era identificado Salazar, misturando o seu problema nos pés, com uma sarcástica forma de gozo citadino contra o seu provincianismo, não era certamente o líder da ditadura que Pessoa vira como necessária na transição de regime. Por muito brilhante que tenha sido a condução política de Salazar a nível internacional, o país fechou-se, mantendo aberto um império que não acompanhava minimamente o progresso tecnológico internacional. Como se não bastasse o ridículo, por falta de indústria aeronáutica, e por boicote da NATO ao império colonial, os aviões eram sempre uma
segunda escolha.
Assim, se Salazar tinha a amizade e pretensões nacionalistas de Charles de Gaulle, ao contrário disponibilizava uma logística miserável ao exército, contando sempre com sacrifício total, como quando não aceitou a rendição de Goa perante o avanço das tropas de Nehru. E esse miserabilismo era razão suficiente para arrogar ao mesmo tempo uma grandeza da nação e uma conformação do povo à pequenez.
Porém, isto serve apenas como primeira parte da tragicomédia de Salazar, que terminará os seus dias com a ilusão de que ainda era Presidente do Conselho.
E a questão é muito simples... se Salazar tinha o poder nacional tão concentrado na sua pessoa, na figura de ditador único e intransmissível, quem então arriscou a decisão de o demitir?
Formalmente, foi o Presidente Américo Tomás, mas este "obviamente, demito-o" foi a perdição do seu concorrente, Humberto Delgado... portanto não seria uma decisão que Américo Tomás tomasse facilmente, e muito menos sozinho.
Ou seja, a questão é - quem detinha o poder que decidiu colocar Salazar numa casa de bonecas?
Procurei, e estranhamente não vi nenhuma resposta significativa a esta ligeira questão.