O padre jesuíta Raphael Bluteau (1638-1734), de ascendência francesa, viveu quase sempre em Portugal, e independentemente doutras considerações, tem uma obra notável:
que é talvez uma das primeiras enciclopédias, e claramente anterior à celebrada obra de Diderot e d'Alembert.
[Só alguns volumes estão disponíveis online: encontrei para as letras: A; B,C; O,P; T,U,V,X,Z]
Acerca da palavra Briga diz o seguinte:
BRIGA. Palavra gótica, que significava ajuntamento de gente, porque os Godos se ajuntavam em certos lugares, para consultarem sobre o modo de se defender sobre os que quisessem agravar. E daqui veio o verbo "Abrigar-se". Cresceram depois estas Brigas e vieram a compor cidades, conservando este mesmo nome, como Meróbriga, Flaviobriga, etc. E por quanto estes ajuntamentos ou Brigas se faziam sem cabeça, e sem pessoa de maior autoridade, à qual se obedecesse, havia nelas confusões (e pendências), que depois foram chamadas Brigas, não só em Hespanha, mas também em Itália, França, Inglaterra, etc. como se pode ver em papéis antigos, com que alega Ch. du Fresne no seu Glossário, explicando a palavra Briga. Diz o P. Fr. Bernardo de Britto, Tom. I da Monarchia Lusitana (fol. 14) que alega com Beroso, e outros antigos autores, que todas as cidades de Portugal e outras de Espanha, cujos nomes acabavam em Briga, como Lacobriga, no Algarve junto donde está agora a Vila de Lagos, Cetobriga, perto de Setuval, Medrobriga, junto a Portalegre, etc., adquiriram este nome em memória de Brigo, filho d'el Rey Jubalda, o qual sucedeu no Reino a seu pai, foi Senhor de Hespanha, e teve particular amor aos Lusitanos. Hoje entre nós Briga vem a ser o mesmo que Peleja. Pugna, Fem. Cic. Concertatio,onis. Fem. Terent. Houve uma grande briga: Magna pugna faita est. (...) Briga de palavras: Rixa (...)
Esta descrição de Bluteau é particularmente interessante. Para além da variada informação, que chega a ser curiosa nos conceitos "briga", "rixa", "abrigar", mostra já a concepção jesuíta francesa de
du Fresne que confrontava a versão portuguesa de
Bernardo de Brito na sua monumental:
Bluteau não subtrai a informação de Brito, como acontecerá posteriormente. Nesta fase, início do Séc. XVIII, há ainda lugar às duas informações, mas nota-se já que o processo de "Revolução Cultural" está em curso... e passado pouco mais de um século, Alexandre Herculano terminará a tarefa, ignorando por completo qualquer informação baseada nos antigos cronistas.
Vejamos ainda como a tese de Du Fresne tem falhas óbvias... se o sufixo "briga" tivesse a sua origem nos Godos, então não se compreenderia a sua presença no nome de cidades na Hispânia, nomes adoptados pelos romanos, muito antes da chegada dos Godos. Poderia haver uma mistura entre as noções de Celtas e Godos sob uma mesma designação, mas Bluteau identifica distintamente os Celtas, colocando-os na Gália, também no Alentejo e Andaluzia, e dizendo que os Romanos lhes chamavam simplesmente Gallos.
Conclui-se assim que, por altura de Luis XIV, foi iniciada uma tentativa de história alternativa, identificada nesta passagem. Não muito sólida inicialmente, como constatamos nesta simples incoerência, mas que foi progressivamente corrigida, substituindo as versões anteriores.
Centocellas (perto de Belmonte)
Raphael Bluteau fala ainda de Centum Cellas.
CENTOCELLAS. Lugar da Lusitânia, tão antigo que dele faz menção Luitprando (c. 960) nos fragmentos (num. 255). Segunda a imemorial tradição este lugar é do Bispado da Guarda, junto ao rio Zêzere, perto de Belmonte, onde permanece a antiquissima Ermida de S. Cornélio, vizinha a uma Torre Quadrada de obra Romana, rasgada em muitas janelas, e acompanhada de várias e antigas ruínas, célebres vestígios de uma grande povoação. A cujo sítio chamam ainda hoje os vizinhos Centocellas, e afirmam, que este foi o lugar do desterro de São Cornélio (c. 250), e aquela Torre é aonde esteve preso, em cuja memória se erigiu a Ermida de seu nome. Vide Mon. Lusit. tom. 2. fol. 116. De facto, Bernardo de Brito diz basicamente isso, no segundo volume (
pág. 159) constante na Torre do Tombo:
... No Bispado da Guarda, junto ao Rio Zêzere, está uma Ermida antiga deste Santo, e junto dela uma torre de obra Romana, cercada de muitas janelas, onde há pedras de grandeza considerável, e havia outras que dali têm levado para várias partes, a qual obra se chama até hoje Centocellas, e querem afirmar os moradores daquela terra, que de tradição imemorial de seus antepassados, lhe ficou, ser aquela torre a própria em que S. Cornélio esteve desterrado e preso. Refiro o que há, que afirmar isto com certeza não mo consente a pouca evidência da História.
Para aqueles que denegriram sempre a fundamentação de Bernardo de Brito, a última frase é bastante elucidativa do trabalho cuidadoso e sustentado que levou a cabo. Nos excertos que li nota-se o cuidado em citar, nas margens laterais das folhas, as obras anteriores que usava, algo notável para o Séc. XVI.
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