Estando instalado um certo "
estado de sítio" devido ao corona-vírus, convém lembrar algumas coisas.
1) Que este caso lembra uma das situações catastróficas previstas há muito.
Enquanto bicho de tamanho médio, o Homem acaba por ser vítima impotente de fenómenos muito grandes ou muito pequenos. De entre os fenómenos apocalípticos, a possibilidade de colisão com um grande corpo celeste, foi um medo alimentado, e a possibilidade de propagação descontrolada de uma doença letal, vinda da mais pequena bactéria ou vírus, era outro dos medos clássicos.
2) Medo clássico, porque existe desde o tempo em que a Peste Negra dizimou milhões de almas na Europa (ou na Eurásia). Questiona-se, aliás, se uma predisposição para o Renascimento não terá resultado de uma Europa em crise de valores cristãos, após as mortes ocorridas entre 1347-51, altura em que ocorreu o pico do número de mortes.
Excerto do quadro de Pieter Bruegel (~ 1562) "o triunfo da morte".
A questão principal é que nas últimas décadas ocorreu uma mudança de comportamento social, que até aqui não tinha encontrado pretexto para se afirmar, para se implantar.
Com efeito, com a rápida implantação da internet e do telemóvel como meios cruciais de informação e de actividade social, não seria difícil de antever que a sociedade se foi preparando para um caso de isolamento, ao ponto de este não ser visto como uma pena temível.
Uma boa parte das interacções ocorre através dessas "redes sociais", chegando ao ponto de termos pessoas reunidas prescindindo de comunicar entre si, no espaço físico, porque estão mais interessadas na comunicação no espaço virtual. Uma boa parte dos trabalhos terciários pode ser feita isoladamente num ambiente ligado à internet, já que existe ainda esse acesso a lojas virtuais. Mas para além de supermercados ou livrarias virtuais, a própria alimentação, que já conhecia a pizza motorizada, recentemente alargou-se o espectro, com a chamada "
uber eats".
Fez-se assim um mundo que estava praticamente pronto para um certo isolamento, não ao ponto de "
surrogates", mas já com algum grau de independência da necessidade de deslocamento.
Seria possível passar da sociedade do Séc. XX, que inventou o turismo de massas, e apresentou o transporte pessoal como forma comum de deslocamento, para uma nova sociedade em que o deslocamento é desnecessário?
Na prática, no final deste processo viral, ficará claro que as escolas podem ser substituídas por ensino à distância, que uma parte significativa da população poderá trabalhar em casa, que não é preciso que as pessoas se desloquem a centros comerciais, e que as compras podem ser trazidas até si, etc...
O que ficará claro é que numa situação de pandemia ainda mais perigosa, que se poderá colocar, seria melhor ter uma organização social mais localizada e menos alargada. O perigo de propagação não seria apenas de um qualquer vírus, mas tanto mais de uma qualquer ideia. Cidadãos mais circunscritos e limitados no seu raio de acção, são cidadãos cujas acções, mesmo descontroladas, podem ser contidas e tratadas no "foco da doença".
Ou seja, o que esta pandemia de gripe deixará claro é que o contacto cara a cara passará a acto perigoso face à mais saudável interacção no verso e reverso, coroa a coroa, com a distância assegurada pelos filtros sanitários adequados.