A uma nação é imposta uma enorme dívida...
Durante o tempo do contrato, tem que financiar os credores de forma insuportável e aceitar as suas exigências, mesmo territoriais.
Paga a dívida, atingido o final do prazo, poderia descansar e seguir o seu curso na História?
Não!
O pagamento da dívida era o preço da paz.
Além disso, Cartago deve ser destruída!
Com esta frase adornava Catão, o Velho, o final de todos os seus discursos no Senado Romano.
À altura da morte de Catão, o jovem Cipião Emiliano partiria com o propósito de arrasar Cartago.
No final da 2ª Guerra Púnica, após a desastrosa derrota de Aníbal em Zama (por outro Cipião, seu tio), a uma Cartago (estimada em meio milhão de habitantes) foi imposto o pagamento de ~ 10 toneladas de prata, por ano, durante 50 anos.
Quando
Burro deixou a Sicília, depois de ter derrotado sucessivamente os Romanos, terá dito:
-
Que terreno de combate deixamos aqui para Romanos e Cartagineses.
No entanto, Burro é mais conhecido por outra frase:
-
Com mais outra vitória destas sobre os Romanos e ficaremos arruinados.Estas "vitórias de Burro" são conhecidas como "vitórias de Pirro", pois o seu nome latinizado foi abandonado (ainda que tenha sido usado por romanos, como
Sextus Afranius Burrus).
Apesar de Burro poder passar por burro, pela sua auto-crítica, terá sido bastante temido e considerado por Aníbal como um dos melhores generais em combate.
Roma estava em ascensão, e Pirro só conseguiu proteger as cidades gregas do sul de Itália por pouco tempo. A Sicília iria ser disputada na 1ª Guerra Púnica, e ao tempo que Pirro a deixou já os romanos tinham o controlo do sul de Itália.
Após Pirro, a Roma faltava assim a Sicília a sul, e a norte, a região dos celtas Boii, de Bolonha, e dos Venetos, de Veneza.
Quando Cartago perde a 1ª Guerra Púnica, Roma acaba por anexar as ilhas - Sicília, Córsega e Sardenha, bem como ocupar o norte - os Boii eram aliados de Cartago e os Venetos alinharam pelos romanos (eram tribos com correspondentes celtas na Gália, que tinham entrado em território antes Etrusco).
Assim Cartago fica imediatamente sujeita a reparações de guerra, nomeadamente em prata.
É também isso que levará os cartagineses a uma maior entrada no seu território da Hispania, para explorar as minas, e 30 anos depois Aníbal irá desencadear a 2ª Guerra Púnica ao cercar Sagunto e aniquilar praticamente toda a sua população hispânica, que pedira protecção romana.
A surpresa do ataque de Aníbal foi um trauma para os Romanos, quando
atravessou os Alpes com os seus elefantes, em direcção a Roma. "Aníbal às portas" passou a ser sinónimo de perigo, e só com a estratégia de guerrilha fabiana (de Fábio Máximo) foi possível evitar a queda de Roma perante a derrota em Cannae. O exemplo de Fábio, duas vezes chamado a ditador, mas regressando à sua vida de agricultor, foi considerado exemplar (p.ex. dá o nome à socialista Fabian Society, da rosa vermelha de Lancastre).
Liberta Itália, Fábio queria deixar espaço a Aníbal que regressara a Cartago, mas Cipião Africano seguiu-o até ao confronto em Zama, onde foi forçado a uma rendição quase incondicional, e a um tributo mais pesado, bem como à proibição de usar armas sem pedir autorização ao Senado de Roma.
Duas guerras púnicas contra Cartago, foram vistas à época como duas guerras mundiais contra a Alemanha, e sempre a Fénix cartaginesa parecia voltar a erguer-se e a desafiar Roma. O pânico que Aníbal causara às portas de Roma, terá sido semelhante à ameaça dos bombardeamentos de Hitler sobre Londres. Tal como Cartago, também no final da 2ª Guerra Mundial a Alemanha foi proibida de constituir exército autónomo.
O prazo dos 50 anos a receber 10 toneladas de prata acabara. Cartago poderia crescer sem encargos e a perspectiva um novo Aníbal ameaçaria de novo Roma. Por isso, a frase de Catão soava como profecia, e faltava apenas o pretexto.
A vizinha Numídia serviu esse pretexto, entrou dentro do reduzido território cartaginês, e os romanos, seus aliados, não autorizaram Cartago a recuperar as terras. Por isso, os cartagineses arriscaram, tomaram armas e atacaram os vizinhos.
Passados 3 anos, da população estimada em meio milhão de habitantes, restaram 50 mil capturados como escravos, enquanto viam Cartago arrasada e em chamas, pelo novo Cipião, Emiliano.
Políbio conta que Cipião terá ficado circunspecto na altura da destruição, perante a reflexão de ver Roma sofrer o mesmo fado. Curiosamente, os netos de Cipião e Catão iriam suicidar-se, perante a derrota sofrida contra Júlio César, na
batalha em Thapsus, às portas de Cartago, pela defesa da República Romana.
Se os romanos foram ajudados pelos hispânicos a rechaçar a presença cartaginesa, que avançara pelo seu território, tiveram depois que aguentar com as invasões romanas, especialmente depois da destruição de Cartago. Assim, os aliados romanos acabaram como províncias sob o domínio da águia imperial.
Importa este texto para ilustrar como não foi dada terceira chance a Cartago. Aliás tudo foi conjugado para que os cartagineses tivessem que pegar em armas para hostilizar os vizinhos, e isso servir de pretexto para o desfecho final. Seria como se no final de ter pago a sua dívida, uma Alemanha renascida acabasse tentada economicamente a hostilizar de novo os seus vizinhos europeus e isso desse razão a novo conflito...
Como catarse, a frase de Catão é intemporal.
Nem é difícil pensar que a frase ganhara vida própria na retórica... ao fim de uma meia-dúzia de vezes, mesmo se Catão se esquecesse alguém o lembraria de terminar assim.
Esse é outro ponto importante - quando o boneco público criado toma conta do criador. Ao fim de repetidas vezes, o prezar a coerência de funcionamento, pode tornar humanos em máquinas.
Bom, mas o motivo deste texto é simplesmente o começo de uma análise sobre a circunstância de uma eventual ligação entre Veneza, Sicília e Cartago, conforme sugerido pela Maria da Fonte.
A circunstância de se darem no mesmo local não é assim tão estranha - estrategicamente pode revelar-se conveniente em tempos distintos e tropas distintas. Talvez mais estranho é que, apesar da vitória bizantina, isso termina com a sua presença no Sul de Itália, a que sucede um longo período de ocupação Normanda.