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Poucos personagens tiveram uma influência tão marcante na História Mundial quanto Júlio César, a ponto do título máximo que se usou em nações germânicas (Kaiser) e eslavas (Czar ou Tsar) ser uma derivação directa e assumida do seu nome... para mais, usada em territórios externos ao domínio de Roma. 
A tentativa mais conhecida de imitar a designação imperial cesariana foi feita por Carlos Magno, mas o epíteto Carolus teve um sucesso reduzido, e apenas nalguns países eslavos (Kralj ou Krol como título de rei).

Júlio César chamava-se, tal como o pai e o avô, Gaius Julius Caesar, sendo que os Julius Caesar faziam assim parte da família patrícia Julia, a "gente Julia" ou "gens Julia". Esta gente Julia era latina do laço Lácio, que tinha a cidade de Alba Longa, conhecida pelo templo a Jupiter Latiaris (ou seja, Júpiter Latino). 
O prefixo "Ju" é comum a Júpiter (Ju-pater) e aos Jú-lia... 
Antes da completa identificação com os deuses gregos, o panteão principal romano tinha uma trindade arcaica - Jupiter, Marte e Quirino
Júpiter sendo deus dos céus, seria também um "deus da chuva", notando que Chove é foneticamente idêntico a Jove (nome alternativo de Jupiter).

Júlio César invocava ainda a sua ligação a Vénus, e no apogeu da sua fama acabou por se ver deificado na combinação de uma trindade a seu gosto - Venus Genetrix, Divus Iulius, e Clementia Caesaris, que o sucessor Octávio Augusto tratou de acomodar de forma interessante:
Divus Iulius, Divi filius, e Genius Augusti
... basicamente - "deus pai, deus filho, e geração augusta". Portanto, aproveitando o mito do pai adoptivo, manteve o "deus Júlio", acrescentou a noção de "deus filho" - que seria o próprio Octávio, e finalmente acrescentou uma terceira divindade dedicada à "gente Augusta", já que aqui o sentido de génio é ainda o da geração da gente, e não tanto o espiritual, da geração de ideias.

Factor decisivo para a consagração do estatuto divino de Júlio César foi o aparecimento de um dos cometas mais brilhantes da antiguidade, também denominado "Estrela de César", exactamente enquanto se procediam às exéquias após o seu assassinato em 44 a.C.
com Caesar Augusto, o filho, e o cometa, a estrela do pai, Divino Júlio.

O estatuto divino de Júlio César foi definitivamente consagrado quando em 40 a.C. Marco António se tornou flamen Divu Iulius, ou seja, primeiro sacerdote do culto a Júlio César. Por razões políticas, Octávio e Marco António procuravam ser protagonistas do mito de César, e alimentaram-no, apesar da rivalidade que terminaria com a morte de Marco António, Cleópatra e Cesarião (o seu filho com César).

O legado divino do par Júlio e Augusto acabou ainda por ficar inscrito nos meses que ainda hoje usamos - Julho e Agosto. Os restantes meses estão associados a outras divindades - Janeiro a Jano, Fevereiro a Febo, Março a Marte, Maio a Maia, Junho a Juno... e quanto a Abril foi considerado por Ovídio estar ligado a Vénus, na forma de Aphrodite, perdendo aqui o h, para um Aprilis. Há ainda a possibilidade funcional de significar um "Abrir do ano", já que 1 de Abril serviria esse propósito e a mudança é ainda hoje vista como o "dia da mentira".

De qualquer forma, ainda que Camões nos indique que os deuses "todos foram de fraca carne humana", apenas os casos de Júlio César e Augusto são os mais evidentes nesse processo. 
Por exemplo, os sete dias da semana eram associados aos 7 principais astros visíveis: 
- ao Sol (Sunday), à Lua (Monday, Lunes, Lundi), a Marte (Martes, Mardi), 
- a Mercúrio (Miercoles, Mercredi), a Jupiter-Jove... Thor (Jueves, Jeudi ... Thursday)
- a Vénus (Viernes), a Saturno (Saturday)

Na trindade de Augusto, a associação entre pai e filho é espiritual, já que Octávio era sobrinho-neto de Júlio César, e a afiliação foi feita por adopção para marcar o início da dinastia juliana, quebrando com a longa tradição republicana. 
À trindade acresce o aparecimento estelar do cometa, que foi considerado o mais brilhante da antiguidade, e que antecede em poucos anos o mito cristão da Estrela de Belém.

Há assim semelhanças que não são negligenciáveis, e acresce a persistência ibérica, e sobretudo portuguesa, em usar o calendário de Augusto, a Era Hispânica, ao invés do Anno Domini, algo que se manteve até 1422.

César e Octávio na Hispania
A Hispania parece ter insistido num calendário juliano de JC (Júlio César) ao invés de JC (Jesus Cristo), marcado por Augusto em declaração de 38 a.C. 
O estabelecimento oficial do Anno Domini foi promovido por Carlos Magno que marcou a sua sagração imperial para coincidir em 800 e apesar de ser depois considerado o nascimento de Cristo em 4 a.C., tal nunca afectou a data escolhida por Carlos Magno. 
Esta influência de Carlos Magno chegou tardiamente à Hispania porque os exércitos carolíngios tombaram em Roncesvalles, não concretizando a invasão.
Assim o anacronismo não foi desfeito pelas armas, mas sim por acordo posterior, que no caso português só chegou em 1422.

A influência de Júlio César na Hispania é conhecida em dois momentos, primeiro enquanto questor e pretor da República Romana, ainda antes das suas expedições na Gália, depois na perseguição aos filhos de Pompeu, que termina na Batalha de Munda. É reportada a ambição de César quando em Gades (Cadiz) comparou os seus pequenos feitos comparados com os de Alexandre Magno, ali celebrado.
A sua incursão pela Lusitania terá sido fulcral, tendo conseguido vitórias sobre os exércitos lusitanos que permitiram uma incursão romana até Lisboa e o estabelecimento de uma paz com as populações locais.
Assim aparecem três cidades portuguesas associadas a Júlio César:
- Pax Julia (Beja), Felicitas Julia (Lisboa), Liberalis Julia (Évora)
Isto indica que a sua progressão foi alcançada pela zona alentejana - onde a fortaleza de Juromenha também foi associada a Julio-mania. A partir dessa altura César aparece com uma riqueza surpreendente em ouro, que lhe permite conduzir legiões quase em nome pessoal... e tal pode ser entendido como fruto do Tagus Aureo.

Convém notar que a Hispania romana só incluiu toda a península ibérica com Augusto.
Mesmo após Viriato as regiões lusitanas e galegas continuaram fora do domínio romano. Seria apenas com Decimus Junius Brutus (avô do Brutus que também esfaqueou César), que haveria uma transposição do rio Lima, e uma entrada para além do esquecimento do Lethes. 
Mapa da evolução do estabelecimento romano na Ibéria, 
notando a última zona de resistência galaica.

Essa foi uma "entrada à Bruto", onde se reportaram suicídios colectivos em populações que evitavam a escravatura romana. As populações ibéricas resistiram sucessivamente contra a presença romana, aproveitando isso Sertório a ponto de unir o território contra Roma. 
Brutus (avô) foi denominado Calaicus porque a sua entrada além do Lima já era considerada em território Galaico. O termo Calaico viria de Cale, ou seja do Porto, conforme diz Annete Meakin no seu "Galicia, Switzerland of Spain":
Mela and others thought, on the other hand, that the term Calaicos was derived from the name of a town called Cale. Florez says that it is certain, from the writings of Sallust, that there once existed a town of the name of Cale to the north of the Duero, and that at the mouth of that river there was a Portus Cale, from which the name of Portugal is derived;
Algo muito diferente foi feito por Júlio César, que preservava os acordos de paz, a sua Pax Julia que depois passou a Pax Romana... aliás a escolha de Clementia Caesaris para divindade, estava relacionada com a postura de clemência que César pretendia ter perante os derrotados (não se parece aqui incluir o episódio do piratas que o raptaram e que ele depois mandou crucificar).
Nesse aspecto de apaziguamento é crucial a Lei Júlia de 90 a.C., introduzida por Lucius Julius Caesar, depois da Guerra Social que exigira um tratamento igual a todos os cidadãos da península italiana - algo que depois se iria estender a todo o Império Romano.
Assim, a estratégia de César na península foi integrar os novos territórios como iguais na pax romana, dando-lhes rapidamente o estatuto de municípios romanos. Em vez da confrontação há uma sedução, em vez de uma guerra constante com uma enorme potência militar, havia a hipótese de a integrar em igualdade com as restantes regiões... algo que acabou por reduzir a resistência.

A última resistência dos povos galaicos terminou com algumas vitórias locais em 39 a.C. de Octávio Augusto, que solidificou esse domínio a norte com algumas cidades agustinas que substituiriam a importância do porto Cale, nomeadamente Bracara Augusta, que foi sede de convento galaico, tal como Lugo e Astorga foram sedes de conventos. A Lusitania seria dominada por Emerita Augusta, que de "Emerita" passou simplesmente a "Mérida", tendo depois outros dois conventos (em Beja e Santarém).
Assim, a grande estratégia romana, que permitiu a uma única cidade, Roma, emergir num grande império estável acabou por ser a forma de integrar as suas conquistas numa política de igualdade com os restantes territórios, algo exigido na Guerra Social pelos aliados italianos de Roma, e que primeiro César e especialmente Augusto acabaram por implementar em larga escala, na sua Pax Augusta. Esse ideal de governação centralizado num poder quase divino do imperador que serve como garante de paz, acabou por ser modelo seguinte para os impérios de kaisers ou czares.
Foi sobre um Império Romano, pacificado por pai e filho adoptivo, que o cristianismo encontrou as vias de comunicação da sua expansão, sendo Roma e não Jerusalém o centro de onde continuaram a fluir as ordens divinas seguintes.

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publicado às 00:09


14 comentários

De Bartolomeu Lanca a 30.08.2014 às 13:17

Parabéns e obrigado Alvor Silves por tão preciosa narrativa. Saliento o rigor que aqui espelha, ao não indicar 'Império Romano' antes de César, como muitos erradamente se referem ao período da antiga Roma.

Fora deste tópico, deixo aqui uma nota, que talvez possa servir um dia para mais uma dedicada intervenção.
Julio César levou 7 anos a submeter a Gália aos seus exércitos. Na Lusitânia, Roma só conseguiu instalar o seu direito após 199 anos de guerra.
Os Lusitanos, não só deram 199 anos de batalha aos Romanos, foram sim durante muitos séculos desde Viriato, Sertório ou Púnico, o povo que provavelmente mais baixas causou a Roma. No Século V EC, Giserico Rei dos Vandalos (batizado em Lisboa, Cristão Ariano), depois de falhado o cerco de 10 anos para a conquista de Cartago, contratou uma Armada Lusitana para proteger o seu exército e deu-se uma batalha naval em Tunis, onde os Lusos defrontaram a maior Armada Romana alguma vez reunida, mais de 1000 navios em que aproximadamente 300.0000 soldados a compunham, os guerreiros Lusitanos usavam técnicas muitos avançadas de guerrilha e contra-guerrilha, como os lança-chamas e a vela latina (séculos antes dos Árabes) que lhes permitia virar o seus navios a 45º em apenas meio minuto enquanto um navio Romano levava meia hora para a mesma manobra, a batalha durou apenas um dia.
Neste episódio dos antigos, mais uma vez sobressai o 'disparate' do encontro de forças em números que sempre impressionam. Encontramos esta relação descrita em "Os Lusíadas" no canto oitavo: "Que os muitos, por ser poucos não temamos", que ipsis verbis está no listel da heráldica do grupo de Operações Não Convencionais do exército português, membro honorário da Ordem de Aviz, actualmente com sede em Lamego, conhecidos popularmente como 'Rangers'.

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