Há uns meses atrás, num
comentário amistoso,
cafc colocou aqui uma questão sobre a presença de Cristo na Índia. Os interessantes links que deixou:
reportavam eventuais pistas para uma presença de Cristo na Índia. Assumia-se no texto que essa presença seria posterior à crucificação.
Nestas coisas, uma ocasional releitura pode levar a outra atenção. Aconteceu com a Chronographia repertorio dos tempos, de Manoel de Figueiredo, de 1603, que já aqui mencionámos três vezes.
E estava ali, exactamente na mesma página 131, que já aqui tinhamos mencionado - a propósito da designação
Mérica para A Mérica. Antes do Capítulo XI "
da América", está o Capítulo X "
da Ásia" onde se lê isto:
Também a regam muitos rios caudalosos, Eufrates, Ganges, o mar Abachu. Nesta parte do mundo andou Christo nosso senhor, é mui fertil, & abundante de todo o género de cheiros, frutos, sementes (...)
Assim, despercebidamente, Figueiredo revela que Cristo "andou pela Ásia", e se isso pode ser entendido como uma referência à Palestina, enquanto parte da Ásia, era mais natural colocar-se "viveu" e não "andou"... especialmente quando se acaba de fazer referência ao Eufrates e ao Ganges. Quanto ao "mar Abachu" é uma designação perdida do Mar Tártaro, que aqui é estranhamente incluído no contexto de rios caudalosos. Talvez houvesse ainda aqui uma remniscência da
ligação do Cáspio ao Oceano Ártico. O mar Tártaro era colocado a leste do Oceano Hiperbórico, de Nova Zembla ao Japão, ou seja incluiria uma parte do que é hoje considerado o Oceano Ártico.
Ora, já no fim do Séc. XIX, um russo, Novovitch, vai levantar a hipótese de Cristo ter vivido na Índia, por ter aprendido num mosteiro de Ladakh (Tibete) sobre a vida do Santo Issa, onde
Isa em árabe corresponde a Jesus. Antes, em 1869, já um francês, Jacolliot, ligara o nome Cristo a Krishna, num livro: "
La Bible dans l'Inde, vie de Ieseus Christna".
[cf. wikipedia] O mosteiro de Hemis, Ladakh, onde Novovitch terá ouvido o relato de Issa.
Passados mais de 350 anos sobre a presença portuguesa na Índia, e a forte tentativa evangelizadora, parece natural que os missionários europeus tentassem eventuais semelhanças com Krishna, e que os hindus não tivessem especiais problemas em tolerar que Jesus pudesse ser uma outra encarnação de Krishna, para satisfação do invasor externo.
No entanto, como referi a
cafc, não deixa de ser curiosa a expressão: "
Ver para crer, como São Tomé", atendendo que foi
São Tomé o apóstolo responsável pela difusão da fé na Índia, e também aquele que presenciou a Ascenção de Nª Srª, indo de encontro à hipótese de uma fuga de Jesus para a Índia com a mãe, no sentido preconizado pelo site, de que Jesus teria sobrevivido à crucificação, com a ajuda de José de Arimateia, segundo
cafc, e isso estaria na origem do mito do Graal. Ora, eu diria ainda que o segredo do "cálice", será mais um simples "cale-se", como frisou
Chico Buarque.
Não deixa de ser curioso o texto de Manoel de Figueiredo, referindo que "Jesus andou pela Ásia", numa altura em que os portugueses saberiam em primeira mão o que os hindus lhes reportavam.
No Ganges encontrou Alexandre Magno os
Magos gimnosofistas (literalmente "sábios nús", em grego), os ascetas hindus, que lhe fizeram frente. Nesse sentido indiano, há pontos de ligação entre a doutrina asceta, o budismo, e a própria doutrina que Jesus introduzira na Judeia. A perspectiva solipsista de Jesus, que se assume como o todo e a parte, o pai e o filho, não é estranha à filosofia hindú que encara a realidade como um sonho do próprio. Os outros não passam de emanações de si mesmo, e assim é natural deverem ser tratados como irmãos.
Curiosamente esta filosofia cristã seria adaptada por J. P. Sartre, um ateu convicto, que numa linha mais zoroastrista-socialista invocava essa irmandade social, agora mais cientificamente, apenas como filhos humanos de uma mesma natureza.
Há ainda um ponto de contacto interessante entre as religiões. O budismo terá sido a primeira religião transnacional, que rompeu com o carácter religioso local. Até aí, as religiões manifestavam-se como um aspecto cultural distinto de cada povo, levando até à noção de "povo eleito" no caso judaico. Os primeiros missionários foram monges budistas, e o cristianismo, com S. Paulo, vai seguir essa linha unificadora, tal como depois acontecerá com o islamismo. Os romanos no seu império não objectavam aos deuses locais, apenas não queriam a rejeição dos seus. A ideia de religião universal, e da utilização de missionários começa por ser uma atitude budista. Essa atitude tem sucesso no Oriente, onde se difunde extensivamente, mas estranhamente não tem registos a Ocidente, e não terá sido só por falta de esforço.
No entanto, as semelhanças entre a doutrina budista e cristã não comportam o inicial carácter judaico da religião cristã, antes da sua extensão aos "gentios", promovida por S. Paulo. Por outro lado, não constam registos de perseguições romanas a monges budistas, como a que encetaram contra os cristãos, e assim, de forma singular, o budismo apenas aparecerá difundido e implantado a Oriente da Índia. Acresce que o cristianismo e islamismo serão implantados como religiões aglutinadoras, focos de intervenção directa no poder, e tal preponderância religiosa só terá semelhança no budismo implantado no Tibete, onde os monges definiam a estrutura do Estado.