As bestasDizia D. Duarte, no seu livro da "
Ensinança de bem cavalgar toda a sela", que:
Saiba corrigir si e sua besta para bem parecer, e se mostrar bem, encobrindo o contrário de si e dela.
Numa sociedade onde as palavras só em rara ocasião significam literalmente o que dizem, uma frase deste género pode ser interpretada para além do simples propósito de corrigir a figura do cavaleiro ou da sua cavalgadura, na arte da equitação.
Porém, lendo capítulos com títulos como:
- IX - de como se hão de ter nas coisas que as bestas fazem per que derrubam para diante;
- X - do que se deve fazer quando a besta faz para derrubar atrás;
não seria completamente claro que o espírito de D. Duarte estivesse a falar de outro tipo de bestas, senão daquelas que montava.
Mas no Capítulo XI, ousa referir que há um comparativo no seu propósito com as bestas:
Tal jeito, como este de andar direito na besta, me parece que devíamos ter nos mais de nossos feitos, para sermos no mundo bons cavalgadores, e nos termos forte de não cair para as malícias com que muitos derrubam por esta guisa se ver em coisas contrárias, de feito, dito, cuidado, ou lembrança em tal guisa, que sentimos seu derrubamento em sanha, mal querença, tristeza, fraqueza do coração (...)
D. Duarte, seguiu no impulso da besta, no primeiro salto em África, colocado em Ceuta pelo seu pai, D. João I, e pelo derrube para diante colocado pelo seu irmão Infante D. Henrique, na trágica expedição a Tanger, em 1437, onde o irmão mais novo, o Infante Santo, D. Fernando, foi sacrificado.
De facto, foi o permanecer direito na montada, que determinou o fim do irmão mais novo. Se houve geração em que o projecto do reino falou mais alto do que a família, este exemplo de abandonar o irmão, para não abandonar Ceuta, marcou definitivamente a importância dada à missão.
Todo o reino percebeu isso, e especialmente a partir do neto, D. João II, as cavalgaduras do reino estiveram prontas aos maiores sacrifícios, além mar, contanto que a realeza permanecesse direita nesse cavalgar, que ultrapassava o bem estar da própria família real e a corte. Claro que, nesta história, a casa de Bragança foi fazendo o papel das bestas que derrubam para trás. Conforme moto da própria casa de Bragança, um "depois de vós, nós"... deixava claro o ideal rasteiro de ocupar o poleiro, visando o final da dinastia de Avis. Enfim, a pequena grande diferença entre ter uma família ao serviço da nação, e querer uma nação ao serviço da família.
Assim, à excepção das bestas mais preocupadas com a crina do que com o porte, que foram formando a corte bragantina, as restantes montadas do reino tomaram a direcção marítima como ADN, e desde que essa direcção se perdeu no nevoeiro sebastianista, não mais deixaram de a desejar.
D. Duarte não terminou este livro, tendo morrido vítima da peste, em 1438, com 46 anos.
É interessante vermos como a linguagem de D. Duarte nos é mais estranha, o que significa que vai mudar consideravelmente no espaço de décadas, para não sofrer depois uma tão grande alteração até aos nossos dias.
Taxas e Rex
D. Duarte investiu bastante no melhoramento do Mosteiro da Batalha, com as capelas imperfeitas, e a sua divisa encontra-se marcada em diversas pedras desse mosteiro, como por exemplo aqui:
Na primeira figura parece-me clara a transliteração "taxas e rex", o que seria um moto bem drástico e pouco politicamente correcto para um rei, advogando "taxas e rei". Dada a segunda figura será de admitir que pudesse ser "tãyas erey" ou algo similar... se isso fizesse sentido, o que dificilmente faz, e as explicações são pouco convincentes.
Há assim um problema de interpretação no moto usado por D. Duarte, já que normalmente é considerado poder dizer "tã ya serey" ou "tayas serey", o que é curioso já que o "s" se encontra claramente separado do "erey". Encontramos um artigo que aborda este assunto:
... deixando clara a confusão instalada, e a pouca certeza nas especulações avançadas. Existe ainda outro moto, aí entendido como "leaute feray" ou "leau te staray", que é considerado como primeira parte do lema.
... neste caso a identificação visual é ainda mais difícil, e por esta imagem, eu não arriscaria nenhuma tentativa de transliteração.
Admitindo que é um "y" e não um "x", então um lema como "tã yas erey", poderia significar uma expressão como "tanto ias, irei", ainda que o "erey" mais facilmente se lê-se "errei" do que "irei".
Não estando identificado este "mistério" como coisa sonante ou importante, talvez porque D. Duarte acabou por ficar na sombra dos irmãos (o Infante D. Henrique e o Infante D. Pedro), não creio que tenha havido suficiente interesse dos ratos de biblioteca, digo, dos investigadores, em dar uma volta aos manuscritos antigos, para procurar o significado do lema.
Atendendo à
Lei Mental que D. Duarte publicou, no sentido de reverter ao rei anteriores doações feitas à nobreza (reversão na ausência de filhos varões), podemos entender isso como uma "taxa", e o moto "
taxas e rei" faria algum sentido prático, mas teria pouca "alma" para o espírito da época... digamos que seria um moto melhor para qualquer actual "empresário" de pacotilha.
Por isso, não creio ser essa a empresa que D. Duarte ali quisesse proclamar, e sem mais informação não vejo interesse em arriscar outra.
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Nota (17.11.2018):
Comentou o João Ribeiro acerca do moto completo, conforme avançado por Brito Rebello em 1905, que o interpretou como expressão francesa de "lealdade farei, enquanto serei", na forma:Leauté faray
tã ya serey
mais especificamente, citando Brito Rebello:«Neste caso as tais inscrições diriam – leauté ferai ou j’aurai – a que respondia o resto da divisa – tant que serai, isto é: serei leal ou guardarei lealdade enquanto existir.»
e esta interpretação tornou-se de tal forma aceite, que a podemos ouvir num dos programas de José Hermano Saraiva (ao minuto 14:00), sem qualquer menção às anteriores dúvidas. No entanto, olhando o escrito no mosteiro, não me parece assim tão convincente.
Convirá acrescentar que a disposição do símbolo é muito semelhante à que vemos no "talant de bien faire" do irmão, Infante D. Henrique, com uma diferença:– a separação ocidente-oriente é conduzida pelo moto "leauté-faray", – enquanto uma separação norte/sul é visada com o moto "tãyas/erey".
Assim, será de questionar se um mesmo jogo de letras, conforme avançado com o moto do irmão, poderia estar também aqui em jogo. Recordamos que nesse caso, relacionámos talant com atlant e faire com afric.Poderá ler-se algo semelhante neste moto de D. Duarte?Bom, com efeito não é inverosímil ver ainda as letras em leauté como atl..., ou em faray como afr... ou seja, não é de excluir uma interpretação semelhante à dualidade américa-áfrica no painel horizontal.Já é muito mais difícil entender algo na separação "tãyas" ou "tãxas" de "erey" ou "erex" (por vezes aparece "tãya" e "serey"). Não me lembro de nenhuma designação para norte e sul que se possa inferir dessas letras. Podemos talvez inferir um "ãtyas" como "antilhas", ou ainda "y satã" como para "ilhas satanazes", mas tudo isso é muito solto e não digno de ser sequer especulado.
Convirá finalmente notar que o nome de D. Duarte era Eduarte, e a sua assinatura era "E Rey", (ou "El Rey") conforme podemos ver no documento contemporâneo que assinou, isentando os pescadores de 1/5 do pescado:Documento com o nome "Eduarte" e com a assinatura do rei.
Com efeito o nome seria influência materna, já que o avô de Filipa de Lencastre seria Edward III, mais conhecido por ter iniciado a Guerra dos Cem Anos, e ter iniciado a Ordem da Jarreteira. O "Edward" foi inicialmente transcrito como "Eduarte", mas depois acabou por perder o "E" inicial, ficando "Duarte"... alternativamente começou a ser vulgar o nome "Eduardo" como tradução mais comum.