Como a sua obra é de grande importância, e não há praticamente edições recentes que facilitem a compreensão e leitura, decidimos pegar na edição de 1563, para fazer uma transcrição, ao mesmo tempo que revemos, e relemos, este texto, que foi dos primeiros que mereceu aqui um grande destaque.
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DESCOBRIMENTOS
em diversos anos & tempos,
& quem foram os primeiros que navegaram.
por António Galvão (1563)
Querendo ajuntar alguns descobrimentos antigos & modernos, que por mar & terra são feitos, com suas Eras & alturas (como são duas cousas tão difícultosas) achei-me tão confuso com os Autores deles, que determinei desistir do tal propósito.
Porque os Hebreos dizem que da Criação do Mundo ao Dilúvio houve 1656 annos. E os Setenta Intérpretes [Septuaginta] 2242. Santo Agostinho 2260 & tantos.
E assim nas alturas há muitas diferenças: porque nunca se ajuntaram em uma Armada de dez pilotos até cento, que uns não estivessem em uma altura, e outros em outra.
Mas por ter emendado de outros que o melhor entendam, me dispus a fazer isto ainda que alguns digam que o Mundo foi já descoberto, e possam alegar para isto, que assim como foi povoado, podia ser frequentado, e navegado. E mais sendo os homens daquela idade de vidas mais compridas, leis, linguagens, quasi todas umas. Outros têm dito o contrário, que dizem que não podia a terra ser toda sabida, e a gente, comunicada uma com a outra, porque quando fosse se perderia pela malícia, e sem justiça dos habitadores dela.
E porque os maiores descobrimentos & mais compridos foram por mar feitos, principalmente em nossos tempos, desejei saber quais foram os primeiros inventores disto depois do Dilúvio.
Uns escrevem que os Gregos, outros dizem que os Fenicios, outros querem que os Egípcios. Os Indios [Indianos, Chineses, etc...] não consentem nisso, dizendo que eles foram os primeiros, que navegaram, principalmente os Taybencos, a que agora chamamos Chins [chineses], e alegam para isto serem já senhores da Índia, até o Cabo de Boa Esperança, & a Ilha de Sam Lourenço [Madagáscar... ou Austrália], por ser povoada deles ao longo da praia & os Iaos [Java ou Austrália], Timores [Timor], Selebres, Macasares [Celebes], Malucos [ilhas Molucas], Burneos [Bornéu], Mindanaos, Luções [Filipinas], Lequios, Iapões, [Japão] & outras Ilhas, que ha aí muitas & as terras firmes dos Canchenchinas [Vietname], Laos, Siamis [Sião], Bremas, Pegus [Birmânia], Arracões, até Bengala & além disto a Nova Espanha, Perú, Brazil, Antilhas, & outras conjuntas a elas, como se parece nas feições dos homens, mulheres, e seus costumes, olhos pequenos, narizes rombos, & outras proporções que lhe vemos. E chamarem ainda agora a muitas destas Ilhas & terras Batochinas, Bocochinas, que querem dizer terras da China.
Além disto os nossos Escritores deixaram escrito que a Arca de Noé, se assentara da parte do Norte nos montes Darmenia [da Arménia], que está de XL [quarenta] graus para cima & que logo dali fora a Scithia [Cítia] povoada por ser terra alta, e primeiro das águas descoberta. E como a Provincia de Thaibencos, seja uma das principais da Tartária (se assim é como dizem) bem se mostra serem eles dos mais antigos povoadores, e navegadores, pois neles se acaba aquela terra da parte do Levante, & os mares são tão bons de navegar como os rios destas partes, por jazerem entre os Trópicos onde dias & noites, não fazem muita diferença, assim nas horas, como na quentura: por onde não há ventos tão destemperados que alevantem as águas, nem as façam soberbas, & por experiência o vemos nos pequenos barcos em que navegavam com um ramo por mastro & vela: & um remo na mão com que governam, correm muito mar, e Costa. E assim em uns paus a que chamam Catamarões [catamarãs], em que se escancham, ou assentam, e vão com outro remando. E querem ainda que estes Chins fossem senhores da maior parte da Scithia, e que navegassem toda sua Costa, que parece estar até setenta graus da parte do Norte.
Cornelio Nepote referido, assim no lo aprova, onde diz, que Metelo colega de Afranio, estando por Consul em França, El Rey de Suevia lhe mandara certos índios, que vieram em uma nau com mercadorias de sua terra pela parte do Norte, às praias de Alemanha: & segundo isto, devia ser da China, por estar de vinte, trinta, quarenta graus para cima, e têm naus fortes, e de pregadura que podiam sofrer mares, e terras tão frias, & destemperadas como aquelas: que as naus de Cambaya [império Mogol na Índia], que também dizem haver muitos annos que no mar andam, não parecem para isso por ser cozeitas de Cairo, & os homens de pouco trabalho & vestido.
Também os que escaparam do Diluvio ficaram tão assombrados que não ousaram descer aos baixos. Membroth [
Nimrod], depois dele cento & trinta anos fez a Torre de Babylonia, com intenção de se salvar nela vindo outra cheia. Pelo que parece que os que mais cedo ao mar chegaram, ora fossem os que iam ao Levante & Província da China, ora os que viessem ao Poente ao fim da Syria aqueles que primeiro ali povoassem seriam os que navegassem, o mais deixo aos Scyrios [
Sírios] & Egypcios, que tiveram grandes debates sobre isso: porque todos querem adquirir a si esta honra, e eu vir ao ponto do que os nossos antepassados deixaram escrito.
Aqueles que de antiguidades se prezaram, dizem que no ano de 143, depois do Dilúvio, viera Tubal por mar a Espanha: por onde parece que já naquele tempo se navegava a nossa Ethiopia. E estes mesmos contam, que depois disto não muito tempo a Rainha
Semiramis fora contra os índios: & naquele Rio de que eles tomaram o apelido [
rio Indo], dera batalha a El Rey Escorobatis, na qual ele perdera mil navios: por onde parece que naquelas partes havia muitos, & muitos anos que se navegavam.
No ano de 650, depois do Diluvio, houve um Rey em Espanha que se chamou Hispalo, em cujo tempo diz que foi descoberto até o Cabo Verde, e alguns querem dizer que a ilha de S. Thomé & Principe. E Gonçalo Fernandes de Oviedo que fez as crónicas das Antilhas: que neste tempo fossem Ilhas já descobertas, e do nome deste Rey se chamassem Hespéridas: & alega muitas razões para isto, e aqueles quarenta dias que navegavam do Cabo Verde a estas Ilhas.
Mas outros querem dizer que o mesmo se fazia deste Cabo à Ilha de S. Thomé & Principe, que estas são as Hespéridas: e não as Antilhas. E não se apartam da razão muito, pois naquele tempo, e depois muitos anos se navegou mais ao longo da terra, que pelo mar Oceano, nem havia altura, nem agulha, nem gente do mar podia ser tão esperta.
Segundo a opinião dos que escreveram não se pode negar que não houve muitas terras. Ilhas, Cabos, Istmos, Angras, Enseadas, que os tempos & as águas terão gastadas, & apartadas umas das outras, assim na Europa, como em Africa, Asia, & Nova Espanha, Perú, & outras que são descobertas, & estão ocultas pela continua diferença que tem a humidade da água, com a sequidão da terra.
Diz Platão em os Diálogos de Thymeo Eclisio, que houve antigamente no mar oceano Athlantico grandes ilhas & terras chamadas Athlantides [Atlântidas], maiores que Africa & Europa, e que os Reys daquela terra senhorearam muita parte desta nossa: & com grande tormenta se fundiu com tudo o que tinha, e ficou tanto lodo, e cascalho, que se não pôde por ali navegar muito tempo. E assim escreveram, que junto da Ilha de Calex [Cales], contra o estreito havia umas Ilhas que se chamavam Frodísias [Afrodísias], bem povoadas & frequentadas com muitos jardins, pomares, e hortas, de que já agora não temos outra memória se não o que representa a escritura.