Retomo este tema porque encontrei material bibliográfico que não estava acessível na altura (ou pelo menos, eu não encontrei). Em particular, os seguintes textos:
- [A1] "A necrópole do Olival do Senhor dos Mártires (Alcácer do Sal). Novos elementos para o seu estudo." A. Cavaleiro Paixão, em Estudos Arqueológicos de Oeiras, 21, páginas 429-460, 2014. [reedição da tese apresentada em 1970]
- [A2] "A inscrição do escaravelho de Psamético I, da necrópole do Olival do Senhor dos Mártires. Novos elementos para a sua interpretação". I. Gamer-Wallert, A. Cavaleiro Paixão, em O Arqueólogo Português, Série IV, 1, páginas 267-272, 1983.
- [A3] "Los Escarabeos Fenicios de Portugal. Un Estado de la Cuestión.", de M. Almagro-Gorbea e M. Torres Ortiz, em Estudos Arqueológicos de Oeiras, 17, páginas 521-554, 2009.
É especialmente interessante o último título que remete o assunto para escaravelhos "fenícios", em vez de egípcios, mesmo que identifique a maioria como tendo sido fabricada no Egipto, e coloque apenas 3 em 18 com uma duvidosa proveniência de Cartago.
Do artigo [A3] retirei algumas imagens, relativas à distribuição geográfica (que estranhamente aparece restrita ao território português), e algumas imagens dos escaravelhos.
O escaravelho do faraó Psamético I (663 a.C - 609 a.C.), referido no comentário de Maria da Fonte, é o último e dele aparece apenas um desenho!
Localização dos 18 achados e um dos escaravelhos como rotativo em bracelete - imagens no artigo [A3].
Dois exemplos de escaravelhos encontrados, imagens no artigo [A3].
O da Fig. 5, segundo [A2], é relativo ao faraó Psamético I, representando um sol com asas,
a deusa Sokmit (leoa) ou Bastet (gata), aludindo ao faraó como: Hórus O-ib "grande de coração".
Os escaravelhos |
Escaravelhos sagrados empurrando uma esfera. |
A associação egípcia do ciclo solar aos escaravelhos, em particular ao
escaravelho sagrado negro, também dito "
rolabosta", tem sido frequente por uma associação do transporte de excrementos em forma esférica.
O
deus Khepri teria assim função semelhante, no rodar do Sol ao longo do dia, de Oriente para Ocidente. Ora, como o sítio mais Ocidental do mundo antigo era justamente a faixa costeira lusitana, não parecerá desapropriado encontrarem-se aqui alguns artefactos relacionados com o assunto... porque, no final de contas, era na paragem mais ocidental que o Sol se escondia para reaparecer no próximo dia.
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O deus egípcio Khepri - com cara definida pela carapaça do escaravelho. |
Tanto mais que o processo de reprodução do escaravelho coloca os ovos dentro da esfera de excremento, afinal nutrientes para as larvas, que eclodem depois, renovando a espécie, tal como Sol se renovava no ciclo diário.
Acontece que os Coleopteros, insectos onde se incluem os escaravelhos e besouros, ou ainda os percevejos (Heteropteros), têm uma particularidade notável de poderem reproduzir padrões variados, inclusive caras, na sua carapaça... palavra que pode significar "cara-passa", no sentido que "por cara passa".
A
etimologia da palavra escaravelho remete normalmente para o latim
scarabaeus, ou ainda ao grego
karabeos, mas não deixa de ser interessante decompor "escaravelho" como "es-cara-velho", o que nos remete de novo para
cara, neste caso
és cara velho, ou no latim parecendo mais
és cara feio. Mesmo a designação "
carocha" como uma variante de cara (como o é
careta), se aplica aos Coleopteros. Ou ainda, em "
percevejo" entendendo como "
per se vejo" obteremos o mesmo tipo de variante.
Alguns dos Coleopteros parecem mesmo pequenas jóias, dado o tom metálico das suas cores espampanantes, onde se incluem os besouros, e ainda aqui podemos ver uma variante de "bês ouros", num sentido em que brilhavam como ouro.
Incluem formas brilhantes quase como pequenas jóias, e nalguns casos sugerem caras humanas.
Nalgumas religiões era frequente procurar ou ver significados transcendentes em pequenas coisas... por exemplo, lembramos os augúrios gregos com os voos dos pássaros, ou com as entranhas. Não passaria despercebido encontrar alguns insectos deste tipo com inscrições a que dessem significado.
Mesmo o escaravelho sagrado, que era negro, tinha algumas inscrições ou alterações na carapaça, a que os egípcios davam importância e significado.
Escaravelhos gregos, persas e etruscos
Esta moda dos escaravelhos passou por várias culturas, e tal como os animais traziam associados padrões na sua carapaça, surgiu a moda dos "selos".
A ideia é praticamente a mesma - o que por cara passa, é o sê-lo.
Se a pessoa ali não era, com o selo passava a sê-lo. A cara passava pelo selo.
No reverso de uma pequena escultura de escaravelho, apareciam inscrições que já não seriam egípcias, eram adequadas a cada cultura.
Temos assim escaravelhos numa vertente
grega, noutra vertente
persa, ou ainda
etrusca.
Surgem assim exemplares notáveis, que certamente fazem a delícia dos leilões:
Escaravelhos fenícios (ou cartagineses)
A situação é razoavelmente diferente no
caso fenício, já que aparentemente os fenícios copiavam as inscrições egípcias, inclusive os hieróglifos (mesmo sem os entenderem), com o único propósito de servirem o comércio. Faziam assim concorrência a
Naucratis, a cidade egípcia que mais se dedicava a este tipo de manufactura.
A menção a estes escaravelhos alentejanos é quase sempre feita no contexto fenício/cartaginês, já que não é aceite, ou pelo menos não é "bem visto" que houvesse qualquer contacto ibérico directo com a civilização egípcia. Assim, parece que para evitar "problemas de convivência" com os dogmas que se vão estabelecendo na comunidade científica, os arqueólogos remetem o assunto com uma simples explicação de que cartagineses/fenícios traziam os objectos do Egipto e trocavam-nos com os indígenas ibéricos... neste caso, alentejanos. Os espanhóis tentam ainda remeter à cultura Tartéssica, como intermediária, já que essa teria maior ligação aos fenícios, por via de Cadiz, a antiga Gades, ou Tartasso.
De facto, pelo aspecto que a comercialização de escaravelhos foi assumida pelos fenícios, parece claro que usavam as peças com um simples intuito comercial, o que lhes era típico. Mesmo que a manufactura tenha sido a cidade egípcia de Naucratis, como parece ser atestado nalguns casos, parece aceitavelmente provável que os objectos possam ter chegado ao Alentejo por intermédio dos fenícios.
Parece afastada a hipótese de que os escaravelhos tivessem qualquer origem interna, até porque não fariam qualquer sentido as inscrições egípcias. Não estamos numa situação semelhante a gregos e etruscos, que foram influenciados pela moda, mas que optaram por decorá-los com temas seus.
No entanto, permanecem "pequenas" grandes dúvidas...
- O faraó
Tuntankhamon tinha haplogrupo R1-M269 (ou seja
R1b1a1a2), o que dá as maiores probabilidades daquela linhagem de faraós ter ancestrais tipicamente ibéricos.
- O primeiro
fenício a quem foi identificado o DNA, por azar, calhou logo a ter um mt-DNA também tipicamente ibérico. O seu
mt-haplogrupo era o U5b2c1, exactamente o mesmo que foi encontrado numa escavação arqueológica em La Breña, nas Astúrias.
Ou seja, e esta é a
pequena grande dúvida "Egitana" que mantenho:
- Será que os descendentes dos habitantes pré-históricos ibéricos, responsáveis por pinturas rupestres sem precedentes, não continuaram eles a influenciar o curso histórico na Antiguidade?
- Não poderiam ser eles a determinar a linhagem de faraós que veio a governar o Egipto?
... é que estes dados do DNA podem apontar nesse sentido, mas o registo material que nos chegou é tão escasso, ou pobre, que aponta num sentido completamente oposto.
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13.10.2018