Sendo um assunto de cocheiras, e como o meu avô tinha uma, sei bem do ambiente infestado de bostas, moscas e varejeiras, que felizmente o meu pai soube cimentar e converter em garagem. Este postal resultou inicialmente dos comentários de João Ribeiro em "Coxos de Coches", que levou a um texto que deixo no final (para que se possam fazer as devidas comparações). Esse texto levou a novos comentários aqui, de João Ribeiro e David Jorge, que permitem dar uma nova luz à questão, corrigindo-a de informações prestadas pelo Museu Nacional dos Coches. Perante a pergunta pertinente de João Ribeiro, cito a resposta relevante do Museu:
Referenciando igualmente as justas notas do tradutor de uma das últimas reedições desta mesma obra do príncipe polaco Felix Lichnowsky, Portugal: Recordações do anno de 1842, desta vez editada em Maio de 2005 pela editora Frenesi, Daniel Augusto da Silva (o tradutor) justifica bem esta questão no trecho da página 282 que lhe envio, em foto anexa. Reiterando esta ideia, o veiculo hipomóvel mais antigo da coleção do MNCoche é de facto o Coche de Filipe II.
O que diz essa nota (nº15) na página 282 é o seguinte:
15 É visível que nesta descrição que se faz dos coches da casa real houve uma crisma singularmente anacrónica: o Autor aceitou, decerto sem o mínimo reparo, a informação ignorante de algum empregado ínfimo nas cocheiras do paço. A invenção e uso das carruagens não é de muito antiga data na Europa. A primeira viatura desta espécie, que talvez apareceu em Paris, foi o carro que em 1457 ofereceu à rainha de França o embaixador de Ladislau V, rei de Boémia e Hungria - país que parece ter sido o berço daquela descoberta sumptuária. Até à época da invasão espanhola, os nossos monarcas não usavam coches, mas sim espécies de liteiras, que se denominavam andas. D. Filipe II foi o primeiro que os trouxe a Portugal, e desde então ficou o uso deles estabelecida na nossa corte.
Acontece que o assunto está cheio de pequenas armadilhas burocráticas, próprias de quem quer embaralhar a questão, se alguma vez fosse levantada em público. Entendendo que a informação do Museu era correcta, fiz o postal assumindo que teria havido um tradutor de 2005, e que se chamaria Daniel Augusto da Silva. Porém, conforme observou David Jorge, tratava-se do matemático português do Séc. XIX, cujo irmão foi ministro do governo entre 1857 e 1877. A sua facilidade com a língua alemã, seria devida à necessidade de se manter actualizado com os trabalhos alemães. Só que há aqui um detalhe... as notas não foram colocadas por si, mas foram sim colocadas noutra edição da obra, já muito posterior, por Castelo Branco Chaves. Assim sendo, a versão anterior do postal seria profundamente injusta para o nome de Daniel Augusto da Silva, que terá sido o tradutor apenas do texto publicado em 1844. A obra com notas pessoais de Castelo Branco Chaves foi doada pelo filho em 2005, e daí talvez se justifique o ano da reimpressão pela Editora Frenesi. Fui encontrar no OLX, à venda, o exemplar com o prefácio e notas deste autor, editado pela Ática em 1946:
Príncipe Felix Lichnowsky. Portugal: Recordações do Ano de 1842
Prefácio e Notas por Castelo Branco Chaves. Edições Ática.
De facto, o único cuidado que haveria a ter, devido à má informação do Museu, seria mudar o nome de Sr. Silva para Sr. Chaves... que decidiu colocar chaves no assunto, enublando o texto com notas suas, sem qualquer justificação objectiva. Mantêm-se pois as observações feitas, agora actualizadas. (i) Antes das notas do Sr. Chaves, houve a tradução de Daniel Augusto Silva:
O propósito de juntar notas parece claro, já que tinham desaparecido os tais coches antigos de D. Afonso Henriques, D. Dinis, e D. Manuel. (ii) Nessa edição de 1844 da Imprensa Nacional o tradutor não quis pôr o nome (sabemos agora ser Daniel Augusto Silva), mas não deixou de começar com uma "Advertência do Traductor". Deixo essas três páginas, onde o tradutor da Imprensa Nacional, para além de elogiar a obra e o autor, só acha de maior significado eventuais incorrecções sobre: a estátua de D. José, o teatro S. Carlos, e sobre o desenvolvimento dos estudos científicos na Universidade de Coimbra.
(iii) Quebrando o propósito de não comentar a obra, aparecem aqui e ali, notas de rodapé informativas nessa edição da Imprensa Nacional em 1844. Curiosamente, e justamente na página 84, onde se falam dos tais coches, aparece uma nota de rodapé (a) sobre o "príncipe do Brasil":
(iv) Portanto, vejamos... o tradutor (D. A. Silva) preocupa-se em instruir o leitor mais inculto, avisando-o de que antes o herdeiro da coroa era príncipe do Brasil, mas deixa passar a questão da descrição dos coches, comendo por boa a "ignorância" de um ínfimo empregado da cocheira... aqui citando literalmente a opinião avulsa do Sr. Chaves, não sei se contaminada ou não pela sua causa monárquica.
(v) Parece pois que o Museu dos Coches tomará por boa a informação de que as notas são do tradutor original, porque a Editora Frenesi em 2005 terá escrito "conforme edição portuguesa de 1845" (deveria ser 1844). Nem sequer reparando que algumas notas referem anos posteriores (por exemplo, a nota nº44, página 275, cita uma obra de 1938). Quanto ao Sr. Chaves, parece desconhecer, ou descartar como "ignorante", o tradutor da Imprensa Nacional (D. A. Silva). Seria o tradutor da Imprensa Nacional, o tal cocheiro ignorante que acompanhou o príncipe Lichnowsky? (vi) Porque se não era, alinhou com ele na mesma ignorância, e além disso fez passar por ignorantes todos os seus colegas, amigos, conhecidos e leitores da Imprensa Nacional em 1844, e anos seguintes, que não tiveram acesso às preciosas informações que tinha o Sr. Chaves em 1946. A saber... nada. Nada, porque o argumento do Sr. Chaves é o mesmo do que não dizer coisa nenhuma. Acresce que sendo o tradutor Daniel Augusto da Silva, foi irmão de um ministro do governo, e portanto não lhe deveriam faltar amigos bem informados sobre o assunto em causa. (vii) Como prova adicional da ignorância passada, só esclarecida pela luz que nos traz o Sr. Chaves, cito o trecho do cronista-mor António Brandão:
O Arcebispo D. Rodrigo não afirma tal coisa, antes dá por razão de El Rey D. Afonso Henriques andar de coche, não poder subir a cavalo, pelo mau tratamento da perna.
Tal e qual um cocheiro ignorante, também o nosso cronista-mor alinhava na ideia absurda de que D. Afonso Henriques andava de coche, não sabendo certamente, como só saberão eruditos como o Sr. Chaves, que os coches foram inventados lá pela Hungria no Séc. XV, e que quando António Brandão nasceu "nem sequer haveriam coches em Portugal". Pior, remetendo António Brandão a afirmação a um "autor antigo" (o Arcebispo D. Rodrigo), terá transcrito mal o termo "coche", pois segundo o Sr. Chaves, o termo usado antes seriam "andas". (viii) A este propósito junto ainda a informação trazida por João Ribeiro, que cita a "Crónica de 1419", que também corrobora a existência de coche ou carro de D. Afonso Henriques:
"Entom se tornou el-rey de Portugal a seu reyno e foy bem sam da perna e nunqua despois quis cavalgar em besta por não aver azo nem rezom de tornar à menagem que avia feyta, mes andou sempre em caro, como soyom andar os reys amtiguamente, e algumas vezes em andas e em colos d.omens."
(ix) Ainda João Ribeiro, fez o favor de indicar o programa de J. Hermano Saraiva (A Alma e a Gente III, nº31):
Este coche mais antigo que José Hermano Saraiva apresenta, e que passa por ser de Filipe III de Espanha, diz ele poder ter sido de D. Sebastião (afirmando haver documentação de dois coches seus, um dos quais perdido em Alcácer Quibir). Acrescenta haver perto de 80 coches guardados em Vila Viçosa. (x) Esta história não ficaria completa sem o lado romano (ver Romae Vitam). Haveria diversos tipos de carruagens na época romana, sendo alguns destinados ao transporte dos mais abastados, que eram chamados "carpentum" (ou carrucas).
Porque razão se terá perdido a tradição romana de transporte? Pois, isso é uma questão mais complicada, que já foi aqui tratada, e resume-se numa expressão - "a reinvenção da roda". Curiosamente esta expressão parece ser recente, com menos de 50 anos, mas é muito ajustada ao reaparecimento dos coches no Séc. XVI. (xi)Há um detalhe importante que José Hermano Saraiva refere, relativamente ao coche mais antigo... é que a sua suspensão não parece ser a dos supostos coches húngaros. O habitáculo estava suspenso por fortes correias de cabedal, o que justificaria melhor o uso do termo "suspensão".
Conclusão: Devo uma visita ao Museu dos Coches (incluindo Vila Viçosa). Poderemos pensar que os coches anteriores ao Séc. XVII se encontram escondidos, nalguma colecção privada, nalguma cave do Vinho do Porto, numa cave em Vila Viçosa, fora do país, etc... Mas também não descarto uma outra possibilidade... que seria a de que o coche mais antigo do museu fosse mais antigo, ou mesmo o coche de D. Afonso Henriques. A descrição do Príncipe Lichnowsky não me parece suficiente para afastar essa hipótese, ainda que os vidros não pareçam conjugar a descrição. Se as coisas fossem fáceis, perceber-se-ia pelos brazões a que data reportam (mas esses brazões podem ter sido pintados por cima). Se se quisesse fazer algum estudo mais profundo, haveria forma de datar a madeira, etc, e faltará muita vontade de o fazer.
Terá havido a necessidade de fazer acreditar que não haviam coches antes do Séc. XVI, mesmo que haja descrições de António Brandão e da Crónica de 1419. Essa necessidade só parece ter acontecido no Séc. XX, já que antes disso, em 1844, não houve problemas em publicar a tradução sem nenhum reparo. Portanto, essa censura terá sido decidida já no Séc. XX, ou poucos anos antes.
Na sequência de comentários sobre o tema "Coxos de Coches", teve o João Ribeiro a paciência (que já não tenho), e o cuidado educado, de inquirir o Museu Nacional dos Coches sobre a existência dos coches de D. Afonso Henriques, D. Dinis, e D. Manuel, conforme descritos na obra do príncipe polaco Felix Lichnowsky.
Houve uma rápida resposta do museu, por via técnica, remetendo o assunto para a nota de tradução da obra de Lichnowsky, feita em 2005, por um certo D. A. Silva, que despacha o assunto da seguinte forma (p. 282, Ed. Frenesi):
15É visível que nesta descrição que se faz dos coches da casa real houve uma crisma singularmente anacrónica: o Autor aceitou, decerto sem o mínimo reparo, a informação ignorante de algum empregado ínfimo nas cocheiras do paço. A invenção e uso das carruagens não é de muito antiga data na Europa. A primeira viatura desta espécie, que talvez apareceu em Paris, foi o carro que em 1457 ofereceu à rainha de França o embaixador de Ladislau V, rei de Boémia e Hungria - país que parece ter sido o berço daquela descoberta sumptuária. Até à época da invasão espanhola, os nossos monarcas não usavam coches, mas sim espécies de liteiras, que se denominavam andas. D. Filipe II foi o primeiro que os trouxe a Portugal, e desde então ficou o uso deles estabelecida na nossa corte.
Este despacho é admirável. Repare-se no uso cuidado das palavras: - "a crisma" e "algum empregado ínfimo". Traduz-se na novilíngua como: "o sacramento de confirmação" e "algum colaborador ínfimo". Acresce a isto a designação de "veículo hipomóvel" usada pelo museu, para florear o "coche", e usar de forma ligeira o prefixo "hipo" que tanto dá para "cavalo" como para "baixo nível". Não vale a pena, mas já agora deixo uma coisa rara, a que se chamam factos, algo que a intelectualidade vigente abomina, fugindo deles como o diabo da cruz. (i) Antes da Editora Frenesi e do senhor Silva, em 2005, houve uma tradução da obra:
Portugal: Recordações do anno de 1842.
(Traduzido do allemão)
Imprensa Nacional 1844
Aliás a edição a que tive acesso, foi esta de 1844, que está online (clicar no link). Portanto, nem quero saber qual foi o propósito de uma nova tradução do que já existia. (ii) Nessa edição da "ínfima" Imprensa Nacional o tradutor não quis pôr o nome, mas não deixou de começar com uma "Advertência do Traductor". Deixo essas três páginas, onde o tradutor da Imprensa Nacional, para além de elogiar a obra e o autor, só acha de maior significado eventuais incorrecções sobre: a estátua de D. José, o teatro S. Carlos, e sobre o desenvolvimento dos estudos científicos na Universidade de Coimbra.
Portugal: Recordações do anno de 1842. A advertência do tradutor em 1844. (clicar p/aumentar)
(iii) Quebrando o propósito de não comentar a obra, aparecem aqui e ali, notas de rodapé informativas nessa edição da Imprensa Nacional em 1844. Curiosamente, e justamente na página 84, onde se falam dos tais coches, aparece uma nota de rodapé (a) sobre o "príncipe do Brasil":
(iv) Portanto, vejamos... o tradutor preocupa-se em instruir o leitor mais inculto, avisando-o de que antes o herdeiro da coroa era chamado príncipe do Brasil, mas deixa passar a questão da descrição dos coches, comendo por boa a "ignorância" de um ínfimo empregado da cocheira... aqui citando literalmente a opinião avulsa do Sr. Silva. (v) Parece pois que o Museu dos Coches toma por boa a opinião do tradutor da Editora Frenesi em 2005, e parece desconhecer, ou descartar como "ignorante", o tradutor da Imprensa Nacional em 1844. Seria o tradutor da Imprensa Nacional, conhecedor de alemão, o tal cocheiro ignorante que acompanhou o príncipe Lichnowsky? (vi) Porque se não era, alinhou com ele na mesma ignorância, e além disso fez passar por ignorantes todos os seus colegas, amigos, conhecidos e leitores da Imprensa Nacional em 1844, e anos seguintes, que não tiveram acesso às preciosas informações que tinha o Sr. Silva em 2005. A saber... nada. Nada, porque o argumento do Sr. Silva é o mesmo do que não dizer coisa nenhuma, é o corropio dos chamados "factos assentes", ou seja, os dogmas duma nova igreja, que estabelece como fé a ignorância dos fiéis. (vii) Para não me alongar mais, deixo como prova adicional da ignorância passada, só esclarecida pela luz que nos traz o Sr. Silva, o trecho do cronista-mor António Brandão, que dizia o seguinte:
O Arcebispo D. Rodrigo não afirma tal coisa, antes dá por razão de El Rey D. Afonso Henriques andar de coche, não poder subir a cavalo, pelo mau tratamento da perna.
Tal e qual um cocheiro ignorante, também o nosso cronista-mor alinhava na ideia absurda de que D. Afonso Henriques andava de coche, não sabendo certamente, como só saberão eruditos como o Sr. Silva, que os coches foram inventados lá pela Hungria no Séc. XV, e que quando António Brandão nasceu nem sequer haveriam coches em Portugal. Pior, remetendo António Brandão a um "autor antigo", o Arcebispo D. Rodrigo, a tal afirmação, terá transcrito mal o termo "coche", pois segundo o Sr. Silva, o termo usado antes seriam "andas". O que fazer? Nada. Na minha opinião, não vale a pena fazer coisa nenhuma. Desisti da liga das bananas, deixo-a para os macacos. Uns seguem a via do engano e os seus frutos fáceis... outros não.
Curiosamente o termo "karros", para carro, é dito ser celta:
https://en.wiktionary.org/wiki/carrus
e imagino que a intelectualidade vigente assuma que dizemos "carros" porque vem do latim. Aliás, "carro" e "corro" é suposto terem a mesma origem indo-europeia, que é como quem diz, origem num português mais antigo.
Como parece mostrar o carrinho de Trundholm (com 6 rodas, o que para burocratas é tripla invenção), quem gostava mesmo de carros eram os celtas. Celtas, que como sabemos, são emigrados padeiros da Azambuja, que andavam de costas... para depois nas pegadas históricas parecer que tinham sido imigrantes e não emigrantes.
Bom, isto apenas para complementar a ligação dos carpinteiros à construção de carros. Se César tinha, é natural, já que vemos os carpentum até nos filmes, por exemplo:
Eu gostaria de acreditar naquela perspectiva mais engraçada, a de que foi tudo guardado congelado, lá para a Antárctida. Mas na prática, mesmo que não seja verdade, pode ser feito verdade. Porquê, porque a técnica de falsificar antiguidades é sempre mais evoluída do que a demora a perceber que essa antiguidade é falsificada. Assim, espero que quando desenterrarem um carpentum, ao menos que o disfarcem bem, para parecer mesmo antigo. É como aquela situação, em que sabemos não haver amor, mas ao menos que se sejamos enganados com alguma classe e estilo.