Foi notícia, há coisa de mês e tal, a tentativa gorada da ESA em cavalgar um cometa com a
Rosetta.
A ESA agora procurava imitar a congénere americana na espectáculo hollywoodesco, em que se colocam uns tantos fulanos, pretensos cientistas, a bater palmas e a exultar um ânimo exagerado, para definir o sucesso de uma missão espacial.
Estas missões são "espaciais" porque ganham "espaço" na imaginação popular. Essencialmente é esse o espaço que procuram captar - uma pequena janela aberta para além da prisão terrena.
Este episódio teria ainda algo de místico relacionado com a época natalícia, passados dois mil anos, se um cometa, estrela anunciadora do nascimento cristão, fosse cavalgada pelo engenho humano.
Conforme é ilustrado na wikipedia, o
cometa 67P manifestava logo os problemas fotográficos que têm caracterizado o espaço destas missões.
Ou seja, e sem perder demasiado tempo com estas historietas, o suposto cometa, que até era visto com cauda a cores no grande telescópio do Atacama, revelava-se um pedregulho a preto-e-branco nas câmaras da Rosetta, sem cauda nem coisíssima nenhuma que o distinguisse de um vulgar asteróide.
A sonda espacial, nomeada com o nome icónico da suposta pedra decifradora dos hieróglifos, apresentava-nos assim um grande calhau.
Depois, os detalhes do fracasso da missão de "alunagem" ou "acometagem", com o resultado final sendo uma "câmara escura", acabam por ser
relatados no site da ESA... onde destaco a resposta a um jornalista intrigado com o facto das imagens mostrarem o cometa como um calhau sólido, e o fracasso da missão ser justificado pela "superfície esponjosa". A resposta elucidativa da ciência actual foi simples - tais interrogações eram pois muito pertinentes, pouco ainda se sabia, e para se saber mais, conviria enterrar mais dinheiro no projecto.
É perfeitamente plausível querer-se manter uma janela aberta para a imaginação da criançada e da populaça, mas agora, quando a ESA a gora de forma bacoca, fica cada vez mais difícil acreditar nestes calhaus vestidos a preto-e-branco.
Essa é agora a situação com pouco espaço de imaginação.
Eça é agora, tal como antes, um bom registo natalício.
Basta então ver uma pobre criança, pasmada diante da vitrine de uma loja, e com os olhos em lágrimas para uma boneca de pataco, que ela nunca poderá apertar nos seus miseráveis braços - para que se chegue à fácil conclusão que isto é um mundo abominável.
D'este sentimento nascem algumas caridades de Natal; mas, findas as consoadas, o egoísmo parte à desfilada, ninguém torna a pensar mais nos pobres, a não ser alguns revolucionários endurecidos, dignos do cárcere - e a miséria continua a gemer ao seu canto!
Pode parecer um retrato cinzento da pobreza arrastada pelo capitalismo devorador, mas ali estavam as cores de uma época de grande progresso científico e industrial. Eça aterrou na luz brilhante daquele cometa britânico e tirou imagens coloridas do que se cometia.
Os philosophos afirmam que isto há-de ser sempre assim: o mais nobre de entre eles, Jesus, cujo nascimento estamos exactamente celebrando, ameaçou-n'os, n'uma palavra imortal, que teríamos sempre pobres entre nós. Tem-se procurado com revoluções sucessivas fazer falhar esta sinistra profecia - mas as revoluções passam e os pobres ficam.
N'este momento, por exemplo, na Irlanda, os trabalhadores, ou antes os servos do ducado de Leicester estão morrendo de fome, e o duque de Leicester está retirando anualmente, do trabalho duro que eles fazem, quatrocentos contos de reis de renda! É verdade que a Irlanda está em revolta; é verdade que, se o duque de Leicester se arriscava a visitar o seu ducado da Irlanda, receberia, sem tardar, quatro lindas balas no crânio. E o resultado? D'aqui a vinte anos os trabalhadores de Leicester estarão de novo a sofrer a fome e o frio—e o filho do duque de Leicester, duque ele mesmo então, voltará a arrecadar os seus quatrocentos contos por ano.
Não é possivel mudar. O esforço humano consegue, quando muito, converter um proletariado faminto n'uma burguesia farta; mas surge logo das entranhas da sociedade um proletariado pior. Jesus tinha razão: haverá sempre pobres entre nós. D'onde se prova que esta humanidade é o maior erro que jamais Deus cometeu.
Bom, e logo que a burguesia é tocada pela superioridade aristocrata, mais se incomoda com a ociosidade e deficiência proletária, justificando assim em contraponto de falsete as virtudes do sucesso burguês.
Os escravos romanos, passados a servos medievais, passados a trabalhadores industriais, e agora a colaboradores de empresas, numa sucessão de eufemismos sarcásticos, não poderiam esperar mais dos burgueses, habitantes dos novos burgos, do que antes esperavam os aldeões dos habitantes das velhas vilas, ou seja, dos então chamados vilões.
Entre vários, oferece ao cosmos ser especialmente digno de nota este parágrafo de Eça
Aqui estamos sobre este globo há doze mil anos a girar fastidiosamente em torno do Sol e sem adiantar um metro na famosa estrada do progresso e da perfectibilidade: porque só algum ingénuo de província é que ainda considera progresso a invenção ociosa d'esses bonecos pueris que se chamam máquinas, engenhos, locomotivas, etc., e essas prosas laboriosas e difusas que se denominam sistemas sociais.
Nos dois ou três primeiros mil anos de existência trepámos a uma certa altura de civilização; mas depois temos vindo rolando para baixo n'uma cambalhota secular.
Certamente que Eça não refere estes 12 000 anos de humanidade descuidadamente, e como pessoa informada das mais recentes conclusões científicas, no final do Séc. XIX remete um início humano para aquilo a que se identifica hoje como sendo a "época glaciar".
Mas é ainda mais misterioso, e arruma um grande progresso inicial nos primeiros milénios, sendo certo que nenhuma grande civilização era publicamente reportada entre 10 000 e 7 000 a.C.
Portanto, a que outra civilização ocultada se estaria ele a referir?
Ao jeito da época, a sua referência ariana seguinte vai fazer escola - "O tipo secular e doméstico de uma aldeia Arya do Himalaia, tal como uma vetusta tradição o tem trazido até nos, é infinitamente mais perfeito que o nosso organismo domestico e social."
Encontramos aqui um certo deslumbre romântico por uma cultura indo-europeia, imaginada a um expoente superior, especialmente pelo movimento nazi alemão, que se quis herdeiro de tal manifestação, se não real na História, pelo menos de influência real nas histórias que alimentaram a mitologia nazi.
Assim, numa certa ilusão de ordem que se propõe para superar o caos, mas que a ele é impotente, Eça manifesta um profundo descontentamento pela espécie humana:
(...) o servo, o escravo, essa miséria da Antiguidade, não era mais desgraçado que o proletário moderno.
De facto, pode-se dizer que o homem nem sequer é superior ao seu venerável pai - o macaco: excepto em duas coisas temerosas - o sofrimento moral e o sofrimento social.
Deus tem só uma medida a tomar com esta humanidade inútil: afogal-a n'um diluvio. Mas afogal-a toda, sem repetir a fatal indulgencia que o levou a poupar Noé; se não fosse o egoísmo senil d'esse patriarca borracho, que queria continuar a viver, para continuar a beber, nós hoje gozaríamos a felicidade inefável de não sermos...
E talvez o Natal acabe por ser uma época muito propícia a esse descontentamento social.
Toda a parte positiva é vista, na sua ausência, como uma parte negativa.
A tradição que celebra o aconchego familiar torna-se dolorosa para os desprovidos ou isolados.
Sempre que a sociedade exulta demasiado certas virtudes, tende a esquecer que penaliza implicitamente um desvirtuosismo pela sua ausência. A instabilidade social nunca se manifesta pela diferença, manifesta-se pela acumulação exagerada da diferença. Pior, não é o estabelecimento da diferença que fere, é a ideia de que é o indivíduo que faz a diferença, é a ideia de culpabilizar o indivíduo pela impotência de mudar o seu fado que é mais perversa. No entanto, apesar de ser educado no sentido contrário, o indivíduo tem uma forma simples de lidar com a sua impotência - assumi-la. Pretender iludir potência, em especial sobre coisas onde há manifesta impotência, é uma simples roleta... as águas que não se controlam tão depressa podem fazer emergir em euforias, como submergir em depressões. A luz do cometa é vista por todos, mas só alguns têm a pretensão de que o podem cavalgar sem se queimar.