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O relato de Estrabão sobre a Ibéria dá quase para um mês de textos... tal como no caso de Roma e Pavia, não pretendemos fazer isto num dia!
Vamos por partes, e começamos com a questão da orientação, com a rotação de 45º que já tínhamos observado em Plínio (note-se que Estrabão é bastante anterior a Plínio, é contemporâneo de Augusto):

Iremos ver que a descrição de Estrabão (ou Estrabo, Strabo) também nos deixa estrábicos... o olho antigo aponta norte, enquanto o olho moderno aponta para noroeste. Os problemas de visão não começaram com os caolhos.

Sobre os Pirinéus é dito:
(...) particularly in the vicinity of the Pyrenees, which form the eastern side. 
This chain of mountains stretches without interruption from north to south
 and divides Keltica from Iberia.

O tradutor vê-se pois forçado a comentar: "The Pyrenees, on the contrary, range from east to west, with a slight inclination towards the north. This error gives occasion to several of the mistakes made by Strabo respecting the course of certain of the rivers in France."
Quando os relatos não coincidem com o que queremos ver, é fácil argumentar o erro alheio... o assunto fica arrumado, mesmo que estejam em causa logo dois da meia-dúzia de geógrafos, usados como referência na antiguidade. Será natural errar norte-sul com oeste-leste num geógrafo de referência? 

Com a rotação que fizemos no mapa em cima, percebemos do que fala Estrabão, e podemos ver as montanhas de norte a sul, dividindo a Céltica (Gália) da Ibéria...
Diz depois que a parte mais estreita está próxima dos Pirinéus, enquadrada pelos Golfos Céltico e Galático, que o tradutor associa (quanto a nós correctamente) ao Golfo da Gasconha/Biscaia e ao Golfo de Lyon. Só que Estrabão adianta...  
and they render the [Keltic] Isthmus narrower than that of Iberia.
... ou seja, haveria na Gália Céltica uma parte mais estreita do que os Pirinéus, o que também pode ser confirmado na figura que colocámos em cima! O tradutor vai buscar uma medição de precisão de Gosselin, mas a explicação é ainda mais simples neste caso... e tem um nome - Aquitânia.
Aquitânia significa literalmente "terra de água", o que ilustraria que os terrenos da Aquitânia contíguos aos Pirinéus estavam basicamente inundados, ou sujeitos a inundações... Por isso, a Aquitânia foi sendo formada progressivamente, e ainda hoje é possível ver que se trata de uma região quase ao nível do mar, não fora as diversas dunas. Estas dunas terão ajudado na consolidação da paisagem, e os campos inundados deram lugar à Aquitânia.
De forma semelhante, e seguindo a figura, podemos ver os montes alentejanos como o resultado de uma consolidação progressiva de dunas, em que a acção prolongada dos agentes biológicos transformou areia em terra. 

Estrabão define então o sul da Ibéria como a parte que vai dos Pirinéus às Colunas de Hércules, e portanto não se trata de um erro ocasional, já que isso é consistente com a figura em cima, rodada de 45º. Sobre a parte ocidental e norte é menos explícito que Plínio, mas diz que essa parte ocidental seria quase paralela aos Pirinéus, coisa só compreensível no mapa que colocamos em cima. Ao contrário de Plínio não coloca o fim da parte ocidental no Promontório Magno, mas sim no Nerium (que tal como Céltico, pretende ser outro nome para a Finisterra).

Sobre o Promontório Sacrum (Cabo S. Vicente) diz ser não apenas a parte mais ocidental da Europa, mas de toda a terra habitável... algo complicado de aceitar. Relativamente à Europa de hoje, esse ponto seria claramente o Promontório Magno (Cabo da Roca), mas se fizermos a rotação, a afirmação de Estrabão fica correcta, conforme se pode ver no mapa. O que é mesmo complicado de aceitar, e que o mapa está mais longe de explicar é a referência a "toda a terra habitável"... aliás o mapa piora essa concepção se retirarmos o "habitável", já que a África é muito mais ocidental. O tradutor faz referência a isso mesmo, dizendo que Estrabão não conheceria essa parte, porém é mais provável que o termo "habitável" esteja para ser levado a sério - as terras africanas após as Colunas de Hércules não eram habitáveis... não tanto por razões naturais, mas mais provavelmente por restrições "divinas"!
Ele refere que essas partes ocidentais são habitadas pelos iberos na Europa, e pelos "maurusianos" na Líbia (entendida como África, ou Norte de África)... ou seja, pelos "mauros" ou "mouros" da Mauritânia, entendida com a zona de Marrocos próximo de Tanger.

Sobre a região do Promontório Sacrum, diz chamar-se Cuneum por significar uma "cunha" (o tradutor aproveita por fazer referência aos Cónios já mencionados por Heródoto como Cunésios ou Cunetes), e diz que o promotório se projecta no mar como um barco, segundo relato de Artemidoro que dava conta de três pequenas ilhas que lhe davam essa forma, e que ao contrário do que afirmara Éforo não se encontrava aí nenhum templo de Hércules! 
Aquilo que parece poder-se concluir é que o Templo de Hércules existiu em Sagres, e terá sido destruído entre a visita de Éforo de Cime (séc. IV a.C.) e a de Artemidoro de Efeso (séc. II a.C.).

Ainda relativamente às orientações geográficas, ao falar sobre os rios, diz que o Tejo corre para oeste, e que o mesmo acontece inicialmente com o Guadiana, que depois vira a sul. Se estas designações são demasiado genéricas para percursos irregulares, que podem ter mudado, não permitem uma boa conclusão. O mesmo não se pode dizer do Ebro, que tem o seu vale bem definido e onde Estrabão é mais conclusivo - corre para Sul!
                                           The Ebro takes its source amongst the Cantabrians; it flows through an extended plain towards the south, running parallel with the Pyrenees.

Tal afirmação só se pode entender com a rotação que se evidencia no mapa que apresentamos.

Como dissemos, a descrição ibérica de Estrabão contém bastante matéria para explorar. 
Para já interessava consolidar mais um testemunho para uma diferente orientação da Terra no passado, de que começámos a falar a propósito do alinhamento piramidal.

Observação: Para quem conhece a medição de Eratóstenes da circunferência da Terra, poderá argumentar-se que ele teria seguido o Nilo de Alexandria até Assuão(!), estava a percorrer o meridiano, colocando o Nilo na orientação sul-norte e não sudoeste-nordeste... Porém, o nome que constava era Syene e não Assuão, logo a identificação de cidades é posterior, aliás sendo Eratóstenes originário de Cyrene, seria mais fácil a deturpação do nome de Cyrene em Syene. A medição não tinha que ocorrer em locais à mesma longitude, até porque esse cálculo de longitude poderia ser feito pela observação de eclipses... era bastante mais importante ter uma medida correcta da distância entre cidades.

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publicado às 05:56


3 comentários

De João Ribeiro a 05.05.2016 às 14:58

Muito bom, bastava rodar o mapa! Confesso que quando li Estrabão não me questionei com os pormenores cartográficos. Gosto em especial da Geografia de Estrabão pois é ele que nos informa daquilo que é uma verdade que muita gente quer menosprezar ou diminuir, a união histórica Galiza-Portugal. Nesse tempo a Lusitânia englobava a Gallécia. Esta terá sido apenas uma província criada pelos romanos com o intuito de dividir e enfraquecer os Lusitanos.

De João Ribeiro a 05.05.2016 às 14:59

Traduzida em Português

http://www.bdalentejo.net/BDAObra/BDADigital/Obra.aspx?ID=500

De da Maia a 09.05.2016 às 09:03

Obrigado pelo link!
É raro encontrarmos traduções em português online.

Quanto ao assunto, já nem me lembrava deste tópico, e é bastante estranha alguma confusão de orientação nestas descrições antigas... devido a isso, e a outras informações nesse sentido, durante algum tempo tive que considerar a hipótese de ter havido alguma mudança "algo catastrófica" da orientação do eixo da Terra na Antiguidade, e mais especificamente ao tempo de Jesus Cristo. Mas, ao fim de todo este tempo, se estou convicto da alteração do nível das águas na Antiguidade, sobre este caso de mudança de orientação do eixo da Terra, parece-me haver pouca matéria de facto conclusiva.
O que há de mais estranho são as declarações de Plínio:
http://alvor-silves.blogspot.pt/2011/06/sesamo-e-monte-citoro.html

que apontava uma mudança no "curso dos céus" como justificação para o Solarium de Augusto ter deixado de funcionar.

Depois, há uma possibilidade de simples mudança de significado para as palavras "nascente" e "poente", já que a posição do nascimento e ocaso solar é diferente consoante as estações e só bate exactamente no leste e oeste na altura dos equinócios.
É um assunto dúbio, tem matéria de facto para sustentar dúvidas, mas não me parece suficiente para sustentar uma tese além dessa dúvida.

Abç

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