Durante algum tempo fiz algum esforço de procurar material histórico que me permitisse compreender o problema que levou a tão pesada ocultação e ao persistente condicionamento educacional, até aos dias de hoje. Já deixei de fazer isso, pois a justificação que aqui fui deixando, e elaborando, está basicamente concluída.
Penso ainda colocar aqui alguns documentos relevantes, uns que acabei por esquecer, outros que encontro acidentalmente, como será esta posta de Camilo Castelo Branco e a sua resposta.
Para o que interessa em termos de conclusões, releva o encobrimento dos descobrimentos. Essa é a parte mais extensa, iniciada com aquilo a que denominei a "Tese de Alvor-Silves", há dois anos e meio. Podem haver mais detalhes, mas o importante são as óbvias contradições históricas, mesmo sem abandonar o "registo oficial". Às contradições históricas acrescentam-se as contradições lógicas, e de bom senso.
Interessa ainda o material adicional, etiquetado como "Questão Gaia", que mostra que o encobrimento histórico foi algo mais profundo, tendo raízes na Antiguidade... ou seja, desde que há "História". O mundo antigo ocidental ficou com fronteiras condicionadas à periferia do Mar Mediterrâneo, e isolado das restantes civilizações, sem que haja razão objectiva que justifique isso, excepto um condicionamento imposto.
Ilustrando como é irrelevante adicionar demasiados detalhes, é bom mencionar o apontamento que Camilo Castelo Branco introduz no
nº1 nas suas "Noites de insomnia", num texto denominado "Problema Histórico a Prémio". Criticando o livro de Miguel Dantas (*) que enumera os "falsos D. Sebastião", aparece com três documentos de três papas (Clemente VIII, Paulo V e Urbano VIII).
(*) Também aparece como Miguel d'Antas. A este Dantas seguir-se-à outro Dantas,
Júlio Dantas, contra quem Almada Negreiros será bastante virulento.
Abreviando, citamos a missiva de Urbano VIII, que menciona as anteriores:
«Urbano VIII por Divina Providencia Bispo de Roma, Servo dos Servos de Deus. A todos os Arcebispos e Bispos e pessoas constituidas com dignidade que vivem debaixo do amparo da Igreja Catholica, em especial aos do Reyno de Portugal e suas conquistas, saude e paz em Jesus Christo nosso Salvador que de todos é verdadeiro remedio e salvaçaõ: Fazemos saber que por parte do nosso filho D. Sebastião Rey de Portugal nos foi aprezentado pessoalmente no Castello de Sancto Angelo duas sentenças de Clemente Outavo e Paulo Quinto nossos antecessores, ambas encorporadas, em que constava estar justificado largamente ser o proprio Rey e nesta conformidade estava sentenciado para lh'o largar Felipe 3.o Rey de Hespanha, ao que não quiz nunca satisfazer; pedindo-nos agora tornassemos de novo a examinar os processos, e constando ser o proprio o mandassemos com effeito investir da posse do Reyno, pois tinha filhos e mulher, e não podia perder seus direitos, que prejudicava a seus herdeiros, o que mandamos brevemente e por extenso vêr como convinha em cazo de tanta importancia; e considerando como nos convem julgar e detreminar a cauza dos Principes christãos, mandando dar vista a Felipe Quarto que hoje vive, cometendo a cauza ao Imperador, e a ElRey de Inglaterra e a ElRey de França, com o que se passou e se resolveu que lhe desse posse do Reyno de Portugal; e hora por parte do dito Rey D. Sebastião nos foi pedido pozessemos o cumpra-se na sentença, e mandassemos passar nosso Breve Appostolico com excommunhão rezervada a nós para que nenhum fiel christaõ lhe impida sua posse, nem tome armas offensivas contra elle e seus soldados e Ministros; e vendo nós com os nossos Cardiaes do nosso Conselho sua justiça, com maduro conselho lh'o concedemos: pelo que vos mandamos que depois da notificação desta a nove mezes primeiros seguintes que assignamos pelas trez canonicas admoestaçoens, dando repartidamente trez mezes por cada canonica admoestaçaõ, termo peremptorio, tanto que vos for apresentado e da minha parte mandado, façaes por vossos religiosos assim Seculares como Regulares publicar-se nos pulpitos das egrejas e praças publicas que ...[parte ilegível pela humidade do original]. Dada em esta Curia Romana sob o signal do Pescador aos 20 de outubro de 1630.»
Deixamos as outras duas missivas papais em comentário a esta posta, assim como a resposta de um leitor, publicada no número seguinte. Essa resposta anónima é bastante irónica, podendo até conjecturar-se uma autoria do próprio Camilo. Citamos uma parte elucidativa do tom:
Os documentos pontificios que vossê apresentou resistiriam á critica de João Pedro Ribeiro e Theophilo Braga. Este sabio e vossê são os dous homens que n'este seculo tem achado as melhores peças historicas. Vossê achou as sentenças a favor do Encoberto; o doutor Theophilo achou a carta de Ayres Barbosa a André de Rezende. Eu achei a vossês, os dous, dous odres de sciencia em que espero exercitar o meu intellecto como os touros exercitam a força nos ôdres de vento. Creio que está dada a solução do problema historico. Mande-me o premio pelo portador.
Independentemente dos mimos, que o correspondente estende não apenas a Camilo e a Teófilo Braga, mas também a Guerra Junqueiro, Eça e Ortigão, "conferencistas de Casino" e "demais socialistas"... as referidas missivas papais foram entretanto "desacreditadas".
A propósito do falso D. Sebastião de Veneza, que Miguel D'Antas dá como tendo sido enforcado em 1603, Camilo possuía uma "sentença" de vários Papas que viram este falso rei e emite a hipótese de um 5º falso D. Sebastião.
É a transcrição dos três "Breves" fictícios de Clemente VIII (1598), Paulo V (1617), e Urbano VII (1630), já desmascarados como sendo talvez obras dos Jesuítas a favor de D. João IV.
A intervenção pombalina foi particularmente bem sucedida em desacreditar a documentação dos Jesuítas, e facilmente se desenvolveram apreciações automáticas. No caso em concreto, parece-me "demasiada fruta" a existência de 3 breves papais, com conteúdo tão sucinto e contundente. Apesar de não descurar a hipótese da sobrevivência de D. Sebastião, e um nefasto tratamento subsequente, não apostaria na validade destas missivas papais, e creio que Camilo Castelo Branco também não fez questão disso... procurou mais revelar a sua existência, negligenciada no livro de Dantas. Por vezes é pior caminho negligenciar a documentação do que revelar razões plausíveis para a sua implausibilidade. Aqui o favorecimento a D. João IV é razoavelmente dúbio, já que o monarca se viu obrigado a condicionar a sua legitimidade a um eventual reaparecimento de D. Sebastião. Estas "provas de vida" de D. Sebastião condicionariam essa mesma legitimidade de D. João IV, caso se apresentasse algum herdeiro legítimo...
No entanto, e como há sempre algo mal explicado, relembramos a gravura constante na Biblioteca Nacional (
ref. 669807) que tem como título:
"
Morte del Re di Portogalli condanatta dall'Inquisizione l'anno 1628"
Conforme dizia Camilo: "Não podia ser o rei da Ericeira, nem o rei de Penamacor, nem o pasteleiro do Escurial, nem Marco Tullio Catizone. Os quatros impostores eram já mortos. Então quem era?".
De facto, em 1628, não poderia ser nenhum destes, de acordo com o apurado...
Mas então em 1630, a breve do Papa Urbano VIII não faz sentido, estando este "D. Sebastião" morto em 1628, por julgamento da Inquisição, conforme ilustrava a gravura da época. Não há nenhum registo de impostor tão verosímel (ao ponto de merecer gravura como "Rei de Portugal"), condenado apenas em 1628...
Ora, há uma história fácil de contar, que engloba estes dados. Admitindo a sobrevivência de D. Sebastião, e o empenho de alguns fiéis patriotas, houve diligências junto dos papas para estas missivas. Tanto Clemente VIII, como Paulo V, podem ter acedido a estas "breves" diligências, perante alguma incomodidade de pressões na Igreja, se o caso fosse de clara legitimidade do defensor da fé, D. Sebastião.
Convém lembrar que a clara oposição de Filipe III ao papa Leão XI (sucessor de Clemente VIII) talvez não se possa desligar dos seus curtos 26 dias de papado.
E se o sucessor, Paulo V envia a missiva em 1617, também devemos perceber que no ano seguinte se inicia a Guerra dos Trinta Anos, e não seria tempo de cisões no lado católico, face à "ameaça protestante".
A situação no final do pontificado de Paulo V, depois com Gregório XV, e especialmente com Urbano VIII já é completamente diferente... ou seja, a ligação entre os Habsburgo e Urbano VIII era de clara cumplicidade. Por isso, não seria tanto de estranhar que Urbano VIII terminasse em 1628 com o incómodo "D. Sebastião" num julgamento inquisitório, e ao mesmo tempo enviasse uma missiva, em tom semelhante às dos seus predecessores, atestando a presença, de um fantasma, em 1630. Consta haver um provérbio romano sobre Urbano VIII (
Mafeo Barberini): "
o que os bárbaros não fizeram, fez Barberini", relativamente a grandes destruições ocorridas em Roma no seu pontificado, que ocultaram o legado romano. Por isso, dada a índole, não seria propriamente surpreendente que o próprio Barberini decidisse enviar uma missiva de despiste, relativamente à sua actuação na condenação de 1628.
Enquanto episódio no contexto global, não é demasiado relevante saber se D. Sebastião morreu em
Laracha ou se foi vítima de posteriores larachas inquisitórias. Serve apenas como episódio de dúvida adicional no secretismo de que se alimentam os poderes fugazes. Podem até vir a ser encontrados outros documentos, num sentido ou noutro... mas, sem vontade de verdade, o erro será tentar impor argumentos a quem criou automatismos para os rejeitar.
Pelas suas contradições evidentes e mal explicadas, a História não passa de uma história, escrita por contadores de contos, e propalada pelos bardos de serviço que a cantam oficialmente às criancinhas. Não vale a pena discutir os factos de uma história quando ela mistura a ficção com a realidade... é apenas uma criação artística, de qualidade e bom gosto muito discutíveis.