O pequeno príncipe poderia ser o príncipe D. Afonso, mas não é isso que indica o Manuscrito do Rio. Resta pois a execução a propósito da morte de D. Afonso em 1491, altura em que D. Jorge tinha 10 anos, o que se ajusta perfeitamente à sua aparência.
(c) As datações usadas estão separadas por mais de 40 anos. A moda e a pintura sofreram algumas mudanças. Colocar uma obra destas até 1460 é esquecer o trajo típico com que nessa data era apresentado D. Afonso V:
Imagens de D. Afonso V em 1460 possivelmente do pintor Georg von Ehingen.
... ou seja, e por exemplo, ainda subsistia a moda de sapatos pontiaguados, inexistente no quadro (o rei usa botas de pele, redondas).
Depois, há um outro detalhe complicado... a menos que a obra tivesse sido executada no estrangeiro (onde e por quem?), a pintura portuguesa teria aqui um epifenómeno, que não influenciaria nada nem ninguém nas décadas seguintes. Os traços semelhantes, inclusive no pavimento, usados por Nuno Gonçalves noutras pinturas identificadas, podem indicar a sua autoria, mas nada impedia que fosse o tal Mota, talvez seu discípulo. É um detalhe secundário ou terciário, face a tudo o resto.
3º) A rede e o camaroeiro
Há quem goste de ver no 2º painel um pescador com uma rede.
Mas, por azar das coincidências, o corpo do príncipe D. Afonso foi trazido na rede de um pescador, e a mãe, a rainha D. Leonor, deu tal importância ao assunto, que colocou a rede do camaroeiro como seu símbolo, associando-o a si, e às vilas de seu domínio.
Essa rede inclui três personagens desse 2º painel... e se o intuito era simplesmente ilustrar pescadores (e que pescadores!), havia outras maneiras de colocar a "rede", sem ser a envolvê-los.
É este painel que é suposto ser aquele que tem uma iluminação discordante... o que seria ainda natural se o pintor quisesse focar que estavam guiados por uma luz discordante, na rede que os envolvia, ou apanhava.
4º) As barbas e o barbadão
O que descrevi até aqui é mais do que suficiente para datar o quadro, e o que trata.
Diria que são os factores principais, sem necessidade de grande interpretação ou conjectura.
Suspeito que dezenas de pessoas terão concluído o mesmo, ou algo similar.
Se eu trouxe alguma coisa de novo à discussão foi em ter reparado num outro detalhe concordante...
(...) e disse aos que na casa estavam: "Ahi vos fica o principe meu filho", sem poder dizer mays pallavra. E com ysto se levantou antre todos hum muyto grande, muyto triste e desaventurado pranto, dando todos em si muytas bofetadas, depenando muitas e muy honrradas barbas e cabellos, e as molheres desfazendo com suas unhas e mãos a fermosura de seus rostros que lhe corriam em sangue, cousa tam espantosa e triste que se nam vio nem cuydou.
(...) El-rey por tamanha perda, tamanho nojo e sentimento se trosquiou. E elle e a raynha se vestiram de muyto baixo pano negro. E a princesa trosquiou os seus prezados cabellos e se vestio toda d' almafegua e a cabeça cuberta de negro vaso. E na corte e en todo o reyno nam ficou senhor nem pessoa principal nem homem conhecido que se nam trosquiasse.
Acontece que nos painéis eram apenas três as figuras que não estavam "tosquiadas", mantendo larga barba e cabelo. Duas delas tinham as mãos juntas, e à outra não se viam as mãos. Lembrei-me dos túmulos, onde é frequente ver as pessoas de mãos juntas, e pensei que essa seria uma codificação para indicar quem figurava no quadro, mas já estava morto à data.
Ora, com essa simples sinalética fazia sentido a ver o Infante D. Henrique ali, já depois de morto.
Na altura, é claro, nem me passava pela cabeça a "
teoria da conspiração" que pretende estabelecer que nas Crónicas de Zurara o rosto do Infante D. Henrique foi substituído... Bom, mas isso é já um detalhe secundário, irrelevante para a datação.
Bom, e como há sempre mais um detalhe, note-se a rainha com a "
cabeça coberta de negro vaso"... tal como têm um "
vaso negro" na cabeça o pequeno príncipe, D. Jorge, ou o pai, D. João II. A
almafega era um burel branco de baixa qualidade, usado no luto da nobreza, mas aqui o tom foi negro, como indica Garcia de Resende. De alguma forma isso contrasta com os barretes coloridos do 4º painel, talvez porque não fossem pessoas directamente ligadas à família real.
Curiosamente, e ao contrário, ninguém fez barba ou cabelo, aquando da morte de D. João II:
E todo o reyno foy vestido de burel, almafega, e vaso, com tamanho nojo e tristeza, que ha cidade de Lisboa alem dos grandes e solemnes saymentos que polla sua alma fez, mandou apregoar que nenhum barbeiro fizesse barba nem cabello dahi a seis meses sob muy graves penas e assi se comprio muy inteiramente o que nunca se vio nem leo que por outro rey se fizesse.
E ainda como curiosidade, a questão relativa à "rede" liga-se nas barbas ao Barbadão, cognome do judeu sapateiro avô materno do primeiro Duque de Bragança.
5º) A descrição do príncipe D. Afonso
Já o tinha referido, mas coloco aqui em citação Garcia de Resende, sobre a opinião que havia do malogrado príncipe. Na boca do rei coloca a seguinte frase:
"Eu verdadeiramente per cima de tanta tristeza, tanto nojo, e desconsolaçam dou muitas graças a Deos pois elle foy servido de me assi levar meu filho, que elle soo sabe o que faz, e nós nam podemos saber nem alcançar seus secretos e escondidos juyzos. E vos certefico que de hũa cousa soo estou em algũa maneyra confortado, que he parecer-me que Nosso Senhor Jesu Christo se lembra da gente destes reynos, porque meu filho nam era pera ser rey deles."
Ora dizer que estava confortado porque "... Cristo se lembrava da gente destes reinos, porque o filho não era para ser rei deles", não seria propriamente algo que D. Leonor gostasse de ouvir. Mas Resende vai mais longe e explica logo de seguida:
E dizia el-rey ysto porque o principe era muyto cheo de branduras e prezava-se muito de sua gentileza; e vistia-se sempre de tabardos, e com martas ao pescoço forradas de cetim e guarnecidas d' ouro, cousa mais de molheres que de homens; (... e continua)
Ou seja, D. João II e próximos, achavam que o filho era fraco e efeminado, o que corrobora a opinião constante do Manuscrito do Rio de Janeiro.
Por isso, por muito que o Príncipe Perfeito, que encomenda os Painéis, colocasse a rede na casa de Bragança, a sua "grande boca" teria levado a Princesa Perfeitíssima a considerar outro autor, solícito a promover como sucessor o seu bastardo, D. Jorge. E no meio dessa tão grande perfeição surgiu logo de seguida a "peçonha" que vitimaria D. João II.
6º) Os personagens
Os descendentes do judeu sapateiro Barbadão, os Duques de Bragança, reinavam em Portugal aquando da descoberta dos painéis... e não estariam propriamente interessados em recordar aquele episódio (ou até em ouvir a Barca do Inferno de Gil Vicente). Já tinham arrumado com o ducado de Aveiro/Coimbra no processo dos Távoras e não queriam mais tormentos da sua bastardia.
A classificação dos personagens é secundária, definidos os principais do 3º painel, onde só falta acrescentar D. Beatriz de Viseu, a mãe da rainha, mulher poderosa, que intermediou as contendas entre D. João II e a rainha Isabel, a Católica, de Castela, sua sobrinha.
Quanto aos restantes, deixo aqui o que me pareceu possível e consistente, remetendo uma explicação mais detalhada para os 3 textos anteriores. Identificar um a um é tarefa algo impensável para um amador, e pouco interessa ir a esse detalhe.
Interessa apenas para exibir a consistência que encontrei.
Possível identificação dos principais personagens dos Painéis, conforme escrevi em 2013.
(a) Que o primeiro painel tenha os reis da Dinastia de Avis que antecederam D. João II, pois isso não é só uma tentativa de dar consistência aos painéis. Num quadro deste tipo não apareceriam frades ou bispos com posição de tanto destaque. Especialmente se já estivessem mortos, como parece indicar a regra das mãos juntas. Há ainda semelhanças de fisionomia que não descartei, é claro.
(b) O segundo painel tem os opositores a D. João II, pelo lado Bragança, começando com um provável D. Nuno Álvares Pereira, em posição de mendigo penitente. O seu aparecimento ao lado de D. João I parece indicar isso, e a fisionomia conhecida também. É sogro de Afonso de Bragança, e daí terão chegado ao genro os diversos condados com que foi granjeado. Há um espaço para o sucessor, aparecendo directamente Isabel de Barcelos, sua neta, como principal artífice da rede bragantina. Era mãe de D. Beatriz de Viseu, avó da Rainha Isabel de Castela, e há quatro razões para ali ser colocada... não as repito aqui.
(c) O terceiro e principal painel tem a família real, conforme já indiquei. Na altura, assumi que seria o Infante D. Henrique, com as mãos juntas, e o chapéu borgonhês. Devo dizer agora que se fosse D. Fernando, marido de D. Beatriz, e pai de D. Leonor, era melhor para a consistência do painel, mas tudo isso é de facto irrelevante. Creio ser o Infante D. Henrique pela posição em que está D. Jorge... ou seja, D. Jorge seria também o sucessor da casa de Viseu no projecto das navegações. Mais acima optei por trazer dois Bragança para o painel principal, mas em lugar secundário... e remeto as explicações para os textos anteriores, notando apenas que a situação de Afonso de Bragança era semelhante à de D. Jorge, já que ambos eram bastardos reais.
(d) Qual dos santos seria o príncipe D. Afonso? Sendo apenas um deles, quem seria o outro?
Santa Joana Princesa, foi regente do reino, quando o pai (D. Afonso V) e o irmão (D. João II) partiram para a conquista de Arzila... numa aventura da realeza que poderia ter dado problemas de sucessão, tal como acontecera quando D. João I levou os filhos à conquista de Ceuta. Toda a gente parece esquecer isso, quando critica a aventura irresponsável de D. Sebastião.
Santa Joana estava num pedestal para D. João II, pela admiração que lhe tinha. Ora, ela morreu em 1490, pouco antes do sobrinho, e não seria de estranhar que D. João II achasse que lhe devia tanta ou maior homenagem, enquanto dono da obra.
Por isso, e pelas razões supra acerca do filho, coloquei o príncipe D. Afonso no 4º painel.
Ora, o 4º painel afigura-se o mais difícil para encontrar personagens, já que temos ali armaduras que não são simplesmente decorativas. Entendi isso como uma elevação dos principais do reino na navegação, o grande orgulho pátrio, e facilmente D. João II consideraria que aquela era a verdadeira nobreza nacional, pelos actos realizados.
Aliás o 4º painel encontra-se quase em simetria perfeita na oposição dos elementos principais do 3º painel.
Daí ter a dualidade entre D. Diogo (morto) e o irmão D. Manuel (futuro rei) na oposição a D. Jorge.
Depois há toda uma dialética de orientação dos personagens a Ocidente ou a Oriente, que remeteria para uma difícil escolha na navegação - rumar a Ocidente e à América, ou rumar a Oriente e à Ásia.
É isso que leva a escolher Paulo da Gama versus Diogo Cão.
Diogo Cão é conhecido pela descoberta do Congo, mas a revelação de Fernão de Magalhães - de que seguiria um mapa de Martin Behaim, faz suspeitar que o alemão acompanhou Diogo Cão a outras paragens... ao sul da América. Do outro lado, poderia colocar Bartolomeu Dias, mas interessava mais a D. João II a navegação pela América. Suspeito que os Gamas estivessem encarregues de explorar a passagem pelo norte do Canadá (devido aos nomes aí encontrados). Findo esse projecto pelo Tratado de Tordesilhas, consta que D. João II tinha planeado dar a Paulo da Gama a chefia da expedição à Índia, que depois foi concretizada pelo irmão - Vasco da Gama.
De qualquer forma, nesse painel, para além de D. Diogo que parece ali estar por razão de simetria, os outros 4 parecem-me ser apenas navegadores.
A escolha do rei, que estava voltado para o Ocidente, acabou por ser pelo Oriente, e a razão ali colocada parece ser a morte do filho - é ele que indica o escolhido - Paulo da Gama.
(e) O quinto painel começa com o Infante D. Pedro, e ali colocaria D. Pedro, D. Henrique, D. João e D. Fernando, os infantes da ínclita geração. Mas não me pareceu ser tão fácil, trocar o Infante D. Henrique com D. Fernando de Viseu, seu sucessor no ducado de Viseu. Primeiro, porque não vejo muito sentido na "teoria da conspiração" que alteraria o códice (neste caso seria D. Manuel a colocar o retrato do pai em vez do tio-avô). Segundo, porque D. Manuel teria que aparecer nos Painéis, não sendo misturável com o destino funesto do irmão D. Diogo - por muito que o rei o quisesse avisar.
Haverá ainda a hipótese de D. Manuel estar no lugar que atribuí a Paulo da Gama, no sentido de oposição ao rei, sendo-lhe dada a sucessão de lei pelo Santo, o príncipe D. Afonso. Esta hipótese que faz bastante sentido, pelo menos parcialmente, não a considerei. Talvez porque estragasse um pouco a lógica do conjunto, não encontrando elemento lógico no personagem em oposição.
Acresce que nem me interessa falar de outras coincidências:
- como o nome de Bartolomeu Dias dar Dia S. Bartolomeu (aliás o dia do funeral de Afonso), um dia importante, por outras razões que escrevi.
- ou como o nome de Diogo Cão aparece nas navegações exactamente no ano em que D. João II mata o primo e cunhado, D. Diogo.

Deixo as outras considerações, nomeadamente sobre o Infante D. Pedro para os textos anteriores. Insisto que entre as suas mãos poderia estar não uma espada, mas sim uma espiga...
tra la man et la spica, ou relembrando Camões 7§77:
(77)...
De um velho branco, aspecto venerando
Cujo nome não pode ser defunto
Enquanto houver no mundo trato humano:
No trajo a Grega usança está perfeita,
Um ramo por insígnia na direita.
(78)
Um ramo na mão tinha... Mas, ó cego!
Eu, que cometo insano e temerário,
Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego,
Por caminho tão árduo, longo e vário!
Vosso favor invoco, que navego
Por alto mar, com vento tão contrário,
Que, se não me ajudais, hei grande medo
Que o meu fraco batel se alague cedo.
(f) Finalmente, o sexto painel, tornou natural a escolha de Mestre Rodrigo de Lucena, e Mestre José Vizinho, pela proximidade ao rei. Já o velho poderia ser simplesmente o pescador que encontrou o corpo.
O médico exibirá a relíquia do santo, neste caso o príncipe defunto, ou como escrevi ainda em 2009: A relíquia, o osso craniano, pode ser uma alusão ao defunto Afonso, indicando a fractura da futura cabeça do reino.
Este era no fundo todo o problema dos Painéis. Definir quem seria a cabeça sucessória no reino.
O rei claramente favorecia D. Jorge, a rainha favorecia D. Manuel, que foi o legítimo herdeiro.
Esta seria uma obra encomendada pelo rei, talvez para dar à rainha, que terá sobrevivido enquanto homenagem única ao príncipe falecido, mas que depois teria os seus dias contados... Ao tempo do manuscrito do Rio pareciam restar apenas dois painéis (os centrais), até a obra ser reencontrada por olhos de ver, no fim do Séc. XIX.
Conforme disse, o resto pode ser encontrado nos links que deixei inicialmente.
Que eu saiba esta tese foi apenas comentada em 2011 por Luís Duarte no seu blog - "
A rês pública".
Não acho isso minimamente anormal.
Apenas reflecte o conceito de normalidade vigente, isto é, não vi gente!
____________
Observações (21.08.2018):
(*) - Num comentário incluso, Clemente Baeta fez notar que os painéis devem também ser considerados numa referência de Fernando Pestana Pereira de 1531 (ver "Painéis de S. Vicente de Fora. Novos Documentos. Novas Revelações" , pág. 139) , entre outras, quando pede a D. João III que no dia de S. Vicente vá à Sé ver os "famosos reis", "armados tão formosos" e "gentis-homens", que "estariam no Paraíso", sugerindo estar mais que dois painéis à vista. Aliás, a observação de que estariam "famosos reis", no plural, concorda com colocar nos painéis os diversos reis da Dinastia de Avis...
(**) - Um pequeno detalhe - mudei a referência "infante D. Afonso" por "príncipe D. Afonso", já que o infante mais velho, ou o herdeiro da coroa, passou a ter o título de príncipe, o que foi primeiro usado com D. Afonso V.
(***) - Um maior detalhe é que Clemente Baeta apontou uma imagem mais nítida dos painéis em:que é significativamente melhor que a que está na Wikipedia. Em particular, a imagem da Wikipedia omite partes do quadro, e tem as cores bastante mais escurecidas (pode interessar saber o que pode ou não surgir de restauro). ____________
Aditamento (22.08.2018):
Acerca do restauro podemos torcer o nariz, se repararmos na face da imagem da rainha conforme retirei do livro "Iconografia e Simbólica dos Painéis de S. Vicente", na página 343: