Interessa-me pegar de novo no tema da "verdade", ao reler o texto anterior "Aletheia"... especialmente pela pequena frase que escrevi então:
- "
A ilusão tem autor, a verdade é de todos!"
A resposta à pergunta de Pilatos não foi respondida, porque se quisermos fazer uma análise objectiva ao conteúdo filosófico, veremos que os evangelhos não vão além do que seria o conhecimento da época. A pseudo-resposta identificará a "verdade" à própria pessoa divina, Jesus.
Como
cada pessoa tem a sua verdade, na Antiguidade o Rei era o ponto de referência na disputa entre as verdades individuais, enquanto último juiz. É assim que Jesus se apresenta, dizendo que o seu reino não era deste mundo, que "
nascera para dar testemunho da verdade, e que os que apoiavam a verdade ouviam-no".
Fica-nos o mero argumento de um solipsismo superlativo.
Pilatos porém, responde à questão, na sua decisão. Decide, como verdade, a inocência do réu.
Ali, era Pilatos que detinha a figura de Rei, último juiz, era ele afinal o "dono da verdade".
Assim, contra um cristianismo espiritual que clama por justiça de
outro mundo, o "pilatonismo" surge opostamente como a justiça pragmática
deste mundo, que Jesus sofrerá no corpo.
Sendo hoje, o réu seria enviado para tratamento psiquiátrico, já que frequentemente o solipsismo é mal confundido com esquizofrenia. Os evangelhos servem muito para assinalar a capacidade humana de persistir no erro, até no ponto em que Jesus opta por entrar em Jerusalém montado num asno (Lucas 19:30), para conformar com as escrituras judaicas acerca do Messias, e assim provocar a ira do sinédrio. Além disso, reportar sete pequenos
milagres, afinal insignificantes factos no contexto do Império Romano, para argumentar uma dualidade entre homem e divindade, terá sido uma escolha de relato que desfavoreceu a história do homem.
Normalmente, dados os preconceitos, evitaria escrever o anterior... mas interessa dissociar a verdade de uma entidade, divina ou não. Nem tão pouco interessa saber se algum evangelho tem alguma semelhança com o que se terá passado, se foram todos invenção posterior, ou não. A verdade comum é o terreno que nos une a todos em concórdia, e a maioria das ilusões individuais são o que nos afasta uns dos outros, em discórdia.
A verdade é uma experiência social, mas o problema principal é que a ilusão também pode ser.
A mentira é demasiadas vezes usada com sucesso, para ser negligenciada, ou pensarmos que a apanhamos sempre em contradição... até porque a mentira pode dar-se ao luxo de se arrogar despudoradamente como verdade.
Quando interessa sincronizar um grupo numa mesma mentira, há uma autoria nessa patranha, e os autores procuram apagar o rasto da verdade. Poderá haver a pretensão de que, convencendo todos, a mentira passe a verdade. Sim, isso seria assim, se não existissem regras... leis científicas. O rasto da verdade não está apenas na memória de cada um, muitas vezes falível, condicionada e incerta, mas está também na memória material, física.
Porém, se uma evolução técnica pode trazer mais verdade, também pode trazer mais mentira... tanto mais, quanto os indivíduos confiarem cegamente numa tecnologia que não controlam. Porque, ao invés de confiarem na tecnologia, que não dominam, estão simplesmente a confiar em quem a detém.
A grande diferença é que a verdade é uma experiência social com um árbitro imparcial, ou se quisermos pintar a história, com um árbitro parcial, que optou por não apagar o passado. Se o passado fosse indiferente para o futuro, uma infinidade de passados diferentes teriam-nos feito chegar a este mesmo ponto. Sendo moda considerar múltiplos universos como possíveis, o problema dos universos restantes é justamente não poderem ter futuro por ignorarem o passado.
A verdade é sinónimo de universo, no sentido de ser "uni", único. Como não antevemos o futuro sem possibilidades, deixamos espaço suficiente à incerteza para prosperar, para manter algum interesse num mundo algo caótico, que de outra forma seria enfadonhamente previsível. Mas, para manter algum equilíbrio entre as coisas, quando a balança pende demasiado para um lado, a natureza actua devastadoramente pelo outro. E isso não é uma incerteza, é a certeza da existência perene, doa a quem doer, ou melhor, dou-a a quem lhe doer.