- "Não é uma questão de gosto, é uma questão de civilização..."
Na civilização Azteca a questão sacrificial estava tão embebida na cultura que podemos ficar surpreendidos com relatos em que as vítimas, por questão de honra, pediam para ser sacrificadas, ao invés de ficarem satisfeitas com a libertação:
The conquistadors Cortés and Alvarado found that some of the sacrificial victims they freed "indignantly rejected [the] offer of release and demanded to be sacrificed". [wikipedia - R. Townsend (1979) "State and Cosmos in the Art of Tenochtitlan"]
O que ocorreria hoje, se os espanhóis não tivessem levado a cabo um dos maiores genocídios humanos e culturais, como aquele que foi feito com as civilizações Azteca, Maia ou Inca?
- O que restou na América Latina foi essencialmente uma civilização espanholada, fortemente educada pelos padres espanhóis que se dedicaram a instruir a população pelo fogo e pela Bíblia, e assim os registos mais cruéis que subsistem ainda hoje estão associados a gangues ligados ao narcotráfico, num registo de necessidade de violência ou terror, como forma de poder.
- No entanto, noutras partes do globo não houve propriamente uma quebra cultural com um passado de tradições violentas, e o caso mais paradigmático é o da Arábia Saudita.
A Arábia Saudita parece assim protegida por um estado de graça a que se chama politicamente correcto, ou simplesmente, petrodólares... ao ponto de ter mesmo decidido arriscar o assassinato fora de portas, na Turquia, de
Jamal Khashoggi, crítico do regime exilado nos EUA em 2017, e que era jornalista associado ao Washington Post. Segundo o mesmo
Washington Post, a CIA terá confirmado ontem que a ordem partiu do príncipe herdeiro da Arábia Saudita. Na lógica de Trump, que elogiava os negócios bilionários que a Arábia Saudita fizera com os EUA, a relação entre civilização e cacau, começa a ficar complicada, e esta pequena "falta de respeito" deverá ter que ser reencenada, na lógica do politicamente correcto.
Dir-se-à que há 40 anos a França ainda guilhotinava pessoas, que os EUA mantêm a pena de morte na maioria dos seus estados, ou que a China chega a executar mais condenados do que o resto do mundo... mas há uma grande diferença, que é a ligação a uma tradição corânica, milenar.
Seria o mesmo que o México executar pessoas retirando o seu coração numa pirâmide, porque considerava correcta essa tradição religiosa azteca.
Se as pessoas estiverem suficientemente anestesiadas, para considerar que é uma honra ser protagonista num espectáculo de sacrifício humano, como estavam algumas das vítimas aztecas, então poderá dizer-se que é um problema seu... e que não nos diz respeito. Só que esse espectáculo não é privado, é público, e como tal, todos participamos no sentimento da lâmina a deslizar pelo pescoço... sendo ainda claro, como na Arábia Saudita, que em muitos casos os motivos são políticos e não criminais, não havendo propriamente qualquer compreensão dos condenados.
Questão de... natureza
Sabendo que executamos milhares de milhões de animais diariamente, parece algo caricato colocar um problema num espectáculo como a tourada, que em Portugal só em casos excepcionais tem associada alguma morte em palco.
Só que mais uma vez o que está em causa é a empatia.
Neste caso, a empatia com o animal, com o touro.
A sociedade actual tem ainda o lado ridículo de ter pessoas com mais empatia com animais, do que com outras pessoas... mas esqueçamos essa abnormalidade previsível.
A natureza teve uma evolução violenta a partir do momento em que definiu os animais, e implicou que a sobrevivência de uns só se pudesse dar pela morte de outros. No entanto, essa sobrevivência animal não era normalmente levada ao ponto da morte dentro da própria espécie, como passou a verificar-se com os hominídeos.
Já referimos que essa evolução foi determinante para o desenvolvimento cognitivo, no sentido em que tanto os predadores evoluíam na capacidade de capturar as presas, como as presas evoluíam no sentido de escapar aos predadores. Quem melhor conhecia o predador era a presa, e quem melhor conhecia a presa era o predador. Quando estas espécies eram diferentes, o conhecimento era separado, e só quando passámos a hominídeos, os predadores e presas passaram a ser o mesmo sujeito - os homens... mesmo que pela têmpera uns tivessem mais postura de presas e outros tivessem mais postura de predadores.
É lixado, mas se prezamos a nossa capacidade cognitiva, não podemos dissociar que ela foi só possível em termos evolutivos, pela competição violenta entre animais, e depois entre homens.
É perfeitamente natural que haja ainda quem pense que uma evolução cognitiva só será possível estimulando a competição humana, colocando uns como predadores e outros como presas. Há assim uma elite social que gosta de se ver como predadora, vendo toda a restante população como presa, como gado, do qual se "alimenta", ou o qual conduz como "rebanho", estando a esses guardado o papel de "pastores". Tem ainda como ideia condicionada que as maiores evoluções técnicas resultam de grandes guerras... ignorando que essas guerras apenas libertam um potencial técnico já existente, e escondido dos olhos da maioria.
Questão de... nova civilização
Ora, o que é claro é que a partir do momento em que o confronto foi colocado na própria espécie, só falta encontrar o último adversário. Só percebe quem chega ao topo da pirâmide que, tendo eliminado todos os restantes adversários, o último adversário que se opõe a si, é o próprio.
Se chegou a essa conclusão só depois de eliminar todos os adversários, pois é tarde demais... acabou por se encontrar num universo sózinho, do qual não tem saída.
Se chegar a essa conclusão antes disso... pergunta-se o que fazer daqueles que continuam a comportar-se como predadores, e daqueles que gostam de se armar em presas?... mas essa é a mesma questão que os humanos tiveram quando se depararam com predadores e presas de outras espécies.
O que fizeram?
Foram falar com o leão e tentaram convencê-lo a não os comer?
Claro que não, simplesmente evitaram-no enquanto puderam, e depois, quando pela arte e engenho suplantaram a ferocidade do bicho, circunscreveram-no à sua insignificância animal.
Portanto, quem entender o suficiente, sabe exactamente o que há a fazer.