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Conde Atanazy Raczynski |
Os condes
Raczynski foram considerados uma das famílias mais influentes na Polónia, até pelas ligações que teriam aos Habsburgos, que dominavam o Império Austro-Húngaro. Como em toda a boa família aristocrata, um aspecto muito relevante é a sua capacidade serpentina, ou seja, a faculdade de se tornarem praticamente invertebrados, ou vertebrados altamente flexíveis, o que no caso significou colaborar com a ocupação prussiana da Polónia no Séc. XIX.
O conde
Atanásio Raczynski serviu o consulado do governo prussiano em Portugal, durante 1842-48, e aproveitou a sua estadia nestas paragens bárbaras para relatar (em francês) o "estado da arte" em Portugal, num conjunto de 29 cartas compiladas sob o título "
Les arts en Portugal".
O relato acaba por ser importante, porque só uns 20 anos antes é que
Cirilo Machado, em 1823, tinha compilado sistematicamente um registo de pintores, gravadores, escultores e arquitectos que tinham trabalhado em Portugal, com o título:
... sendo por isso considerado o primeiro historiador da arte portuguesa.
Aliás Cirilo Machado nem sequer teria publicado a obra, foi por iniciativa do seu editor (da Impressora de Victorino Rodrigues da Silva), que a obra saiu sob a forma de livro, e viu a luz do dia.
Como estas coisas tendem a apagar-se de novo, porque afinal as sombras vivem do ocultar da luz, estive entretido a colocar estas menções na Wikipedia em português, onde praticamente não havia qualquer referência ao assunto. Mas quero destacar especialmente as palavras do editor ao publicar a obra de Cirilo Machado:
"Julgamos fazer à Pátria, e à Glória Nacional algum serviço publicando estas Memórias, que seu Autor recolheu com sumo trabalho, e que a sua modéstia, e natural encolhimento não ousou publicar em sua vida. Ninguém poderá duvidar que são muito escassas, e até inéditas as notícias de todos aqueles Artistas, que enobreceram a Nação por meio de suas Obras, quando os Vasaris, Rafaeis Sopranes, Rossis, Leonardos da Vinci, e Palominos se ocuparam em deixarem à posterioridade um monumento precioso, tem havido entre nós o mais ingrato silêncio, não perpetuando a memória de muitos Portugueses nelas insignes."
No entanto, como seria de esperar, o impacto desta obra foi reduzido, e só tive conhecimento dela notando o nome de Cirilo Machado como título da 27ª carta de Raczynski. Mesmo o relato de Raczynski, apesar de extensamente divulgado à época, teve um impacto europeu reduzido, e a arte portuguesa continuou como uma pequena nota de rodapé europeia, escrita em francês.
No entanto, Atanásio Raczynski vai começar por apresentar uma tradução de um texto notável de
Francisco de Holanda, resultado da sua estadia em Roma, onde este teve a oportunidade de travar extensas conversas pessoais, acerca de pintura, com o famosíssimo
Miguel Ângelo. Um livro com esses diálogos está disponível em português:
de Francisco de Holanda (1546)
É sobre esses diálogos que me interessa fazer uma pequena consideração, porque Francisco de Holanda diz o seguinte no prólogo:
Mas de uma coisa é infamada Espanha e Portugal, e esta é que em Espanha, nem em Portugal, não conhecem a pintura, nem fazem boa pintura, nem tem sua honra a pintura; e vindo eu de Itália há pouco tempo trazendo os olhos cheios da altura do seu merecimento e os ouvidos dos seus louvores, conhecendo nesta minha pátria a grande diferença com que esta nobre ciência é tratada, determinei-me bem, e como fez César ao passar do rio Rubicão, o qual era muito vedado com armas aos romanos, assim eu (se me é licito comparar, sendo pequeno, com homem, tamanho senhor) me ponho como verdadeiro cavaleiro, e defensor da alta princesa pintura, oferecido a todo o risco por defender o seu nome, com minhas poucas armas e possibilidade.
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Isto é especialmente curioso, porque dificilmente vemos hoje que a Espanha tenha tido um problema de pintura (o mesmo não se passando em Portugal). Contudo, basta reparar que a sucessão de grandes vultos da pintura espanhola, de El Greco e Velasquez a Picasso, passando por Goya e tantos outros, toda essa sucessão é posterior ao reinado do imperador Carlos V, que aliás escolheu o italiano Ticiano como retratista.
À data em que escreve Francisco de Holanda (1546),
Doménikos Theotokópoulos estava numa Creta ocupada por Veneza, tinha 4 anos, e estava ainda muito longe de se tornar conhecido como "El Greco". Portanto, a frase justifica-se por não terem ainda aparecido os primeiros grandes vultos da pintura espanhola.
Mas a frase de Holanda ainda surpreende, por revelar que o impacto de Nuno Gonçalves, ou mesmo Grão Vasco, entretanto falecidos, se tinha havido algum, teria sido puramente nacional, e muito circunscrito. Com efeito, nem o trabalho de Grão Vasco, desenvolvido especialmente em Viseu, teria merecido a fama cortesã lisboeta. Quando D. Manuel tomou posse do reinado, os Painéis de S. Vicente teriam desaparecido do olhar público, e provavelmente só terão sido brevemente desenterrados durante a posterior "reinação" de D. Sebastião. Como essa obra, tantas outras, inconvenientes às mitologias manuelina e bragantina, terão sido varridas para debaixo do tapete.
Finalmente, com a descoberta das pinturas rupestres em Altamira, e em tantas outras cavernas e grutas espanholas, ficou bastante caricato ver-se escrito que, em Espanha, "
não conhecem a pintura, nem fazem boa pintura". É claro que tal conhecimento antigo, pré-histórico, estaria afastado de Francisco de Holanda, e do comum cidadão renascentista, mas não estaria fora do conhecimento de alguns círculos próximos do poder de Roma, não se resumindo aí a uma academia de jogos florais.
Para terminar, ainda com uma referência a Raczynski, Joaquim de Vasconcelos que, em 1896, edita a obra ("
Quatro diálogos da pintura antiga..."), diz o seguinte:
Finalmente, abonam a boa educação literária do Holanda, as precoces relações com André de Resende, uma celebridade peninsular, que tinha regressado em 1533 a Portugal com relações universais, europeias. A amizade entre os dois é anterior à saída do Holanda, que partiu aos 20 anos. Raczynski, que quasi nada sabia da história da Renascença literária em Portugal, e ainda menos da história dos humanistas portugueses, avaliou mal a posição do nosso pintor na corte e na sociedade do seu tempo, antes da viagem à Itália. Não percebeu como Holanda, educado nos paços de dois Infantes, e pensionista d’El-Rei, pôde entrar facilmente nas relações de Miguel Angelo, o qual sabia muito bem que atrás do Rei de Portugal estava seu omnipotente cunhado, o César [Carlos V]. Vittoria Colonna sabia-o igualmente; não ignorava que os Colonnas tinham parentes em Portugal, os Sás Colonnezes, uma numerosa e ilustre família. Não estava em Roma o Cardeal D. Miguel da Silva, amigo de Castiglione, e certamente da Marquesa, para lho lembrar?
............ 3/08/2017