A ideia de que o Norte de África é árabe e muçulmano tornou-se numa ideia implantada com a rápida invasão e assimilação cultural a que as antigas províncias romanas ficaram subjugadas, após a desagregação do império.
No entanto, se atendermos ao que se passava antes da invasão árabe, o Norte de África pouco deveria diferir do que se passara nas outras partes do Império Romano. Foi em
Hipona que Santo Agostinho escreveu, e foi aí que pereceu com o cerco e invasão de Genserico.
Os Vândalos, partindo da Ibéria, estabeleceram aí um curto reinado até que foram derrotados por Belisário, o general bizantino de Justiniano. O Norte de África esteve sob controlo bizantino até à chegada da invasão árabe.
Aliás com Belisário, os bizantinos tomaram uma parte andaluza da Ibéria visigótica, província denominada
Spania, que mantiveram (552-624 d.C.) até começarem a ser derrotados sucessivamente pelos árabes.
Os Visigodos não se desinteressaram pelo perigo crescente da invasão árabe, e por vezes auxiliaram as tropas bizantinas com grandes contigentes, mas não parece ter sido o caso na
conquista final de Cartago, ocorrida em 698, quando Vitiza enviou apenas 500 homens. Nessa altura Cartago, Tanger ou Ceuta eram praticamente cidades isoladas, resistindo aos invasores árabes que as cercavam por completo.
Em 710 restaria Ceuta, sob o comando do Conde Julião, um personagem algo lendário, podendo ser um bizantino, ou mais provavelmente visigodo que, de acordo com a lenda, ao ver a sua filha Florinda violada na corte do rei visigodo Rodrigo (ou "Roderico"), decidiu ajudar Tarique na invasão muçulmana da Ibéria.
Se a religião no Norte de África era cristã, à época de D. Afonso Henriques já não havia praticamente registos de qualquer celebração cristã entre os invadidos.
A ideia de recuperar o Norte de África da alçada árabe, começada com a conquista de Ceuta em 1415, não seria tão completamente insana, se houvesse entre a população do Norte de África alguma adesão à sua antiguidade romana. No entanto, muitos séculos haviam passado, e o que os cristãos encontraram no Norte de África foi sempre uma enorme resistência.
Se o desastre do ataque a Tanger levado a cabo pelo Infante D. Henrique em 1437 terminou com o sacrifício do Infante Santo, seu irmão, D. Afonso V levou o tio para a vitória em Alcácer Ceguer, em 1458. Já bem após a morte do tio, preparou o desembarque em Arzila, em 1471, tendo em vista a conquista de Tanger. A vitória de Arzila foi tão efectiva que Tanger foi simplesmente abandonada.
As Tapeçarias de Pastrana constituem um raro testemunho à época do evento.
Por elas podemos ver a dimensão da força empregue na conquista de Arzila.
As tapeçarias falam em 400 navios (quadrigentaru navium), que é estimado terem levado 28 mil homens (assim, em média, 70 homens por navio).
Nos bastidores vêem-se os mastros de aproximadamente 40 navios, um décimo da força empregue.
Encontram-se na wikipédia boas imagens das Tapeçarias, referindo os quatro eventos:
Os tapetes são atribuídos à oficina flamenga de
Pasquier Grenier, o que faz algum sentido porque a representação das cidades (Arzila ou Tanger) é feita com características típicas das cidades do norte da Europa.
Em cada tapete podemos ver uma representação real.
- No primeiro tapete, aquando do desembarque em Arzila, podemos ver [1] o rei, D. Afonso V, acompanhado do filho, [2] o príncipe D. João II, com 16 anos, acompanhados por [3] Duarte de Almeida, o Alferes Mor do reino (o porta-estandarte), conhecido como o "Decepado", por ter segurado a bandeira com os dentes, quando ficou com as mãos cortadas, 5 anos depois, na batalha de Toro. Os mesmos personagens aparecem em terra, em cima, já que a mesma tapeçaria ilustra os dois momentos. Dominam a paisagem o estandarte das quinas, o rodízio de Afonso V e algumas bandeiras de S. Jorge.
No segundo tapete, aquando do cerco, D. João II aparece sozinho na montada, pelo lado esquerdo, enquanto o pai segura a batuta de comando, pelo lado direito. Ambos os cavalos aparecem ricamente decorados. Há uma paliçada de madeira a cercar as tropas que fazem o cerco, para proteger ataques externos ao cerco. Nessa paliçada alternam os escudos de Portugal, de S. Jorge, e o rodízio de D. Afonso V. As bandeiras de S. Jorge estão em grande maioria no conjunto.
No terceiro tapete, é ilustrado o momento do ataque a Arzila, havendo um aspecto curioso. Vê-se o rei D. Afonso V liderando o ataque, erguendo a espada na mão direita, mas já é D. João II que fica com a batuta de comando das tropas. Tal como no caso anterior, as bandeiras de S. Jorge dominam no estandarte dos barcos, e abundam no campo de batalha, em conjunto com outras bandeiras mais florais, menos típicas e mais difíceis de identificar.
Finalmente no quarto tapete, é representada a entrada em Tanger, onde parece apenas aparecer o rei D. Afonso V. Estão pouco evidenciadas as bandeiras de S. Jorge, e os estandartes mais proeminentes são os padrões florais. A cidade fora abandonada (vêem-se os mouros a abandonar a cidade, no lado direito), e o estandarte das quinas apenas aparece a ser colocado num torreão, provavelmente por Duarte de Almeida.
Antes de referir o estandarte de D. Afonso V, convém notar os estandartes florais que abundam, sobretudo na última tapeçaria. Não há propriamente uma comparação com outras batalhas em tempo medieval, onde as pinturas são escassas ou inexistentes (aliás nem conheço algo semelhante depois). Parece uma demonstração de sofisticação, na exibição de belos padrões decorados, mais próprios dos vestidos da corte, do que da dureza do campo de batalha.
O rodízioAcerca do padrão do rodízio de D. Afonso V, José Manuel Oliveira já falou dele neste postal:
... e há de facto alguns dados que suportam a ideia de que representasse a roda de um
mecanismo de escape típico da relojoaria. No entanto, se o desenho tem todo o aspecto de sugerir isso, mostrando ainda a extensão do eixo anexa a uma pequena roda dentada, só surprenderia mais se a composição levasse a um
mecanismo pendular ou
não pendular, cuja invenção foi só reportada no Séc. XVIII.
Não há nada de objectivo que sugira isso.
Como parece existir a sugestão de gotas de água em torno do mecanismo, podemos ser levados a concluir que poderia tratar-se de um
mecanismo de escape para um relógio de água (ou mesmo de mercúrio).
Num aspecto mais simples, e mais prático, poderia representar apenas um processo de medir o fluxo de água. Anexado a um típico mecanismo relojoeiro, já existente à época, permitiria saber a distância percorrida pelos navios em mar, essencial para uma estimativa da longitude. Claro que não teria em conta as correntes, mas isso faria parte da derrota associada à rota.
Independente de especulação, onde se podem encontrar semelhanças com outros símbolos (desde a indiana e budista
Roda do dharma ao
Rotary club...), o símbolo de D. Afonso V é um símbolo que preza a técnica e nesse ponto afasta-se bastante de outros símbolos usados até então.
A esfera armilar que será adoptada depois, começando com D. João II, mas especialmente adoptada por D. Manuel, será mais um símbolo de conhecimento, da ciência astronómica.
É claro que a partir da dinastia de Bragança, especialmente após D. José, a esfera armilar foi perdendo o uso, e especialmente qualquer sentido, já que o país entrou num progressivo afastamento de quaisquer ideais técnicos ou científicos, e não foi o uso simbólico da esfera armilar pela República que alterou a situação.
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21.10.2018
- Art review: The Pastrana Tapestries at the National Gallery (Washington Post)
Nota 2: (24.10.2018) Conforme comentário de José Manuel Oliveira, são ainda informativos/alternativos os seguintes links: - Roue de Moulin dégouttante (o rodizio) - Une roue de moulin sur son axe, posée horizontalement et projetant de gouttes d’eau.Uma ideia de Humberto M. Oliveira que preconiza o rodízio como uma "roda de moinho".
- Cordelière à noeuds - Une cordelière fermée à trois nœuds