Sempre que nos propomos a fazer algo, temos que ter consciência do erro associado.
Ou incorporamos esse erro como matéria presente na estrutura que apresentamos, ou estamos a entrar numa ilusão. É possível disfarçar o erro, fazendo passá-lo por propositado... Quanto menos literal, ou menos objectivo, for um texto que escrevemos, mais fácil será iludir erros como propósitos. Acresce que, de forma algo surpreendente, os erros tendem a acomodar-se numa complexificação, podendo levar outros a pensar que não é erro, é conhecimento mais profundo que não alcançam! Muito depende do crédito acumulado, e da disposição para alimentar farsas convenientes, coisa frequente na retórica política.
Num texto com mais de 5 anos, denominado
Magos, apresentei uma imagem que disse ser do "
Livro dos 3 Místicos"... e não o referi como "
Livro 3 dos Místicos". Ora, há uma diferença entre uma coisa e outra! O texto tinha ali o propósito de ler "3 místicos" como 3 reis magos, e portanto para um conhecedor poderia ser uma barbaridade confundir isso com o terceiro livro de "místicos"... palavra que no contexto significaria terceiro livro de "miscelâneas" ou "misto"!
Nada mais simples do que dizer que "sabia disso", e que a associação era propositada para forçar a ligação aos três reis magos. Porque, ainda que a palavra "místico" tenha ali o significado de "miscelânea", também não perde o significado de misticismo, ilustrado pelas iluminuras.
Nada mais simples, mas longe da verdade, porque desconhecia esse significado da palavra "místico" para se associar a uma mistura... e nem encontro tal raiz num dicionário etimológico - nem pela via de
místico (mysticus), nem de misto,
mistura (mixtus, miscere) ou
miscelânea (miscella, miscere), ou mesmo em
mistério (mysterium). Depois, faz sentido... a mistura é confusão, que nos traz muito do que é misticismo. A raiz comum na palavra não aparenta sair do latim, e este duplo significado associando mistério a misto, parece ser exclusividade nacional de origem primeva.
Quanto ao
Livro 3 de Místicos, parece assim ter muito pouco de místico, e ser muito mais de misto, numa mistura de registos de doações feitas a D. Afonso de Bragança. Portanto, foi claramente um erro da minha parte ao forçar uma eventual associação a magos, ou a três reis magos. De qualquer forma, esse erro de título em nada afectou o texto... que por virtude de falar na Fortaleza dos Reis Magos na cidade brasileira de Natal, se tornou no texto mais visitado (provavelmente por culpa duma má indexação da pesquisa Google à época). A designação oficial para este livro é:
Terceiro dos místicos. Leitura del Rey Dom Eduarte e del Rey Dom Afonso o Quinto e del Rey Dom Joham segundo.Há 6 livros de "Místicos", aparentemente pouco interessantes, e que fazem parte duma compilação maior, denominada "Leitura Nova", que foi feita à época de D. Manuel e depois D. João III. Uma boa parte desses livros têm iluminuras muito interessantes, e pouco conhecidas.
SPES MEA IN UNO
Essa inscrição em latim é pouco frequente, quando comparada com outra muitíssimo semelhante:
"Spes mea in Deo est",
que consta como
divisa do 32º grau da maçonaria, significando "
a minha esperança está em Deus".
Aqui, a referência "
Spes mea in uno" poderá significar "
a minha esperança no uno...", referindo-se talvez à unidade da Santíssima Trindade.
Entretanto, encontrei um interessante livro de 1822:
que servirá num próximo texto para mostrar uma certa ligação entre lemas já existentes, e lemas depois adoptados pela maçonaria, quando esta foi formalizada como tal.
Aditamento (06/12/2015):
Por lapso, esqueci-me de incluir o principal propósito deste texto que seria comentar a menção no
Livro 2 dos Místicos sobre uma doação ao Infante D. Fernando, irmão de D. Afonso V, tio de D. João II, e pai de D. Manuel. Logo no início pode ler-se
Ao Infante Dom Fernando, doação das doze Ilhas S(sul) da Ilha de Santiago,
e da outra de São Filipe e da Ilha das Mayas e outras...
A única questão a este propósito tem a ver com o número e o nome das ilhas.
A referência a 12 ilhas a sul da ilha de Santiago, é no mínimo "
mística"...
Se quisermos alinhar numa versão politicamente correcta desta doação, as ilhas mencionadas seriam as do arquipélago de Cabo Verde - a de Santiago, a do Maio, e a do Fogo, entendendo que
Mayas se referia à do Maio, e que a de São Filipe seria a do Fogo. Mas, a observação é que o arquipélago de Cabo Verde tem na conta 10 ilhas, e a de Santiago é uma das que está mais a sul... não fazendo por isso nenhum sentido falar em 12 ilhas a sul, muito menos numa transcrição feita em 1511.
Portanto, o que temos aqui é um registo anacrónico, correspondente a outras paragens.
A
ilha das Maias era uma das
ilhas míticas que apareciam nos mapas, associada a paragens das Antilhas, ou Caraíbas, junto a paragens mexicanas dos Maias. Até porque o nome "ilha do Fogo" estava presente desde o mapa de Reinel de 1485, e não fazia chamar-lhe "São Filipe"... e ainda nesse contexto, o nome de "ilha de Santiago" seria colocado em paragens não caboverdianas.
O registo no livro 2 dos Místicos continua com atribuição ao Infante D. Fernando (pela parte de D. Afonso V, certamente), de uma ilha que "
Gonçalo Fernandes houve vista vindo das pescarias do Rio do Ouro", bem como das ilhas de Jesus Cristo e da Graciosa, normalmente ligadas aos Açores (a ilha de Jesus Cristo seria a ilha Terceira).
Portanto, o que vemos aqui é uma das várias ocasiões onde podemos encontrar manifestas inconsistências com o registo oficializado dos descobrimentos.
Convém dizer que há pouca documentação interna que fale dos descobrimentos.
A passagem de D. João II para D. Manuel foi uma ocasião de desaparecimento completo de documentação, só ao nível do que depois seria o desaparecimento por ocasião do abalo de 1755. Os cronistas como João de Barros ou Damião de Góis queixavam-se do desaparecimento ainda no seu tempo.
Assim, quando se fala em "
Leitura Nova" para esta documentação de D. Manuel, estamos ao nível de uma "revolução cultural" que eliminou vestígios do passado nacional (uma das coisas notadas é que o registo de doações ignora as iniciais feitas no Brasil).
Portanto, o que ocorre aqui parece ser um acto singular, porque tendo que suprimir viagens a paragens americanas, anteriores ao Tratado de Tordesilhas, o rei D. Manuel não quis apagar do registo as doações que tinham sido feitas a seu pai, ao infante D. Fernando, e foi este registo que parece que ficou, disfarçado com mudanças de nomes em ilhas caboverdianas. Ou seja, o que parece claro é que D. Afonso V tinha já feito doações ao seu irmão, em paragens americanas, ou pelo menos incertas...