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Conforme referi no texto anterior, transcrevo a cópia da carta escrita por D. Sebastião a João de Mendonça, em 1576, onde explica claramente a sua preocupação com a presença turca no Reino de Fez (Marrocos), e o que essa ameaça poderia significar primeiro para as fortalezas portuguesas, e depois, através de Ceuta, como porta de entrada turca na Península Ibérica, considerando ainda que em Portugal e Espanha residia (... à época) "a maior e a melhor" potência da Cristandade.

Claro que mesmo tudo isto não justificaria a deslocação pessoal do Rei à "mouraria", e nota-se aqui a junção de mais um pretexto de cavaleiro para encontrar a batalha. Enquanto do lado do seu tio Filipe II, vemos os pretextos de diplomata para a evitar.
No entanto, essa tinha sido a tradição da dinastia de Avis, começada em Ceuta. 

No romance do vencedores, não houve censura à aventura de Ceuta, do Rei D. João I, levando os seus três filhos primogénitos. Afinal, foi vitoriosa.
Mesmo terminando mal o episódio de Tanger, com a morte em cativeiro do Infante D. Fernando, a decisão do Infante D. Henrique, de trocar o seu lugar de prisioneiro com o seu irmão, não manchou a sua imagem. Para escusar de si a condenação fraterna, o irmão passou a mártir da fé, a Infante Santo. Afinal, Henrique estava do lado vencedor do romance histórico. 
Esse romance para os seus fins não olha a meios e esquece os princípios. 
Da mesma forma, Afonso V nas suas aventuras africanas, acompanhando-se nelas do único príncipe sucessor, D. João II, não vemos ninguém criticar o perigo de sucessão. Afonso V foi vencedor.
Com D. Manuel já foi diferente e ninguém viu o "César Manuel" em nenhuma batalha. Em seu nome teve Francisco de Almeida, Afonso de Albuquerque, etc. Igual atitude prudente tomou D. João III, que aliás perdeu algumas das praças marroquinas, como seja a emblemática Arzila.

Por isso, D. Sebastião, indo pessoalmente à Jornada de África, sem cuidar dos sucessores, estava a terminar a aventura africana de forma semelhante como D. João I tinha feito, e especialmente D. Afonso V. Não igualou o Infante D. Henrique na expedição a Tanger, que se salvou condenando o irmão. Poderá ter sido esse "espírito vitorioso", de troca de vencidos por vencedores, que determinou quem contou a história. Ficar mal contada... foi um detalhe que se resolveu depois, e fora disso ficaram-nos as Larachas (cidade), os Loucos (rio), e os Malucos (Mulei).

_________________________________________________

Cópia da carta original d'el Rey D. Sebastião 
a João de Mendonça sobre a Jornada de África.

João de Mendonça amigo.
Por cartas de D. Duarte de Menezes, meu capitão em Tanger soube como Muley Moluc tio do Xarife entrara em Fez e com 8 ou 9 mil turcos (que de Argel trouxera consigo por ordem e mandado turco), e com muitos mouros que com ele se juntaram, desbarataram o Xarife, o qual se retirara a Marrocos. E Muley Moluc fora pacificamente recebido por Rey e Senhor de Fez.
E por estas novas serem da qualidade e importância que vedes e podeis considerar, me pareceu fazer-vos-las logo a saber. Confiando de vós e de vossa prudência, fareis nelas aqueles discursos que convém, assim para o que eu devo acerca disto ao presente mandar fazer, como já me prevenir, e ordenar, para o que ao diante pode suceder. E que é razão e sigo que se cuide, e espere de inimigos tão vizinhos aos meus lugares, e tão poderosos e de tanta indústria, e experiência nas coisas de guerra, como são os Turcos, mormente considerando da vinda deles a Fez. Não é somente para dar a posse daquele Reino ao tio do Xarife, mas principalmente com o fundamento de o fazerem tributário e vassalo do Turco, e o Turco se fazer Senhor de toda África, e de todos os portos de mar dela, tendo em cada uma delas muitas galés que lhes será fácil de pôr em efeito. Assim, pela natureza da mesma terra, como por seu grande poder, que quando assim acontecesse, o que Deus não permita, visto é quantos males sem remédio 

poderiam recrescer a toda espanha, que da Cristandade se pode dizer que é hoje a melhor e maior parte, e com este intento queria que não somente cuidareis nesta matéria e a discorrereis para me nela dardes parecer e conselho no que farei e devo fazer, nas novas e acidentes presentes, mas ainda naquele que em tão propícia potência estarão de poder ao diante acontecer. E também quero que saibais o que agora ordenei de logo, que é mandar prosseguir a fortificação naqueles meus lugares, e provê-los de mantimentos e munições, e reforçar, e apressar minhas armadas, e aperceber gente em algumas comarcas do Reino.
Mas tudo isto não descansa, nem deve tirar, nem aliviar este cuidado, que obriga a começar a aperceber de logo para tudo o que pode suceder. E eu espero na misericórdia de Nº Srº, que receberemos dele, quando assim de nossa parte nos dispusermos, tamanhas e tão grande vitórias, que receba de nós os serviços, que lhe eu muito desejo fazer, não somente na defesa de sua fé, mas também da ampliação dela. E muito vos encomendo que me respondais logo a esta carta, e por certo tenho que será tal a resposta como de vós espero e confio, e do mais que suceder terei lembrança de vos avisar. 

Escrita em Setuval, a 24 de Abril de 1576
Rey

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 06:59

Conforme referi no texto anterior, transcrevo a cópia da carta escrita por D. Sebastião a João de Mendonça, em 1576, onde explica claramente a sua preocupação com a presença turca no Reino de Fez (Marrocos), e o que essa ameaça poderia significar primeiro para as fortalezas portuguesas, e depois, através de Ceuta, como porta de entrada turca na Península Ibérica, considerando ainda que em Portugal e Espanha residia (... à época) "a maior e a melhor" potência da Cristandade.

Claro que mesmo tudo isto não justificaria a deslocação pessoal do Rei à "mouraria", e nota-se aqui a junção de mais um pretexto de cavaleiro para encontrar a batalha. Enquanto do lado do seu tio Filipe II, vemos os pretextos de diplomata para a evitar.
No entanto, essa tinha sido a tradição da dinastia de Avis, começada em Ceuta. 

No romance do vencedores, não houve censura à aventura de Ceuta, do Rei D. João I, levando os seus três filhos primogénitos. Afinal, foi vitoriosa.
Mesmo terminando mal o episódio de Tanger, com a morte em cativeiro do Infante D. Fernando, a decisão do Infante D. Henrique, de trocar o seu lugar de prisioneiro com o seu irmão, não manchou a sua imagem. Para escusar de si a condenação fraterna, o irmão passou a mártir da fé, a Infante Santo. Afinal, Henrique estava do lado vencedor do romance histórico. 
Esse romance para os seus fins não olha a meios e esquece os princípios. 
Da mesma forma, Afonso V nas suas aventuras africanas, acompanhando-se nelas do único príncipe sucessor, D. João II, não vemos ninguém criticar o perigo de sucessão. Afonso V foi vencedor.
Com D. Manuel já foi diferente e ninguém viu o "César Manuel" em nenhuma batalha. Em seu nome teve Francisco de Almeida, Afonso de Albuquerque, etc. Igual atitude prudente tomou D. João III, que aliás perdeu algumas das praças marroquinas, como seja a emblemática Arzila.

Por isso, D. Sebastião, indo pessoalmente à Jornada de África, sem cuidar dos sucessores, estava a terminar a aventura africana de forma semelhante como D. João I tinha feito, e especialmente D. Afonso V. Não igualou o Infante D. Henrique na expedição a Tanger, que se salvou condenando o irmão. Poderá ter sido esse "espírito vitorioso", de troca de vencidos por vencedores, que determinou quem contou a história. Ficar mal contada... foi um detalhe que se resolveu depois, e fora disso ficaram-nos as Larachas (cidade), os Loucos (rio), e os Malucos (Mulei).

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Cópia da carta original d'el Rey D. Sebastião 
a João de Mendonça sobre a Jornada de África.

João de Mendonça amigo.
Por cartas de D. Duarte de Menezes, meu capitão em Tanger soube como Muley Moluc tio do Xarife entrara em Fez e com 8 ou 9 mil turcos (que de Argel trouxera consigo por ordem e mandado turco), e com muitos mouros que com ele se juntaram, desbarataram o Xarife, o qual se retirara a Marrocos. E Muley Moluc fora pacificamente recebido por Rey e Senhor de Fez.
E por estas novas serem da qualidade e importância que vedes e podeis considerar, me pareceu fazer-vos-las logo a saber. Confiando de vós e de vossa prudência, fareis nelas aqueles discursos que convém, assim para o que eu devo acerca disto ao presente mandar fazer, como já me prevenir, e ordenar, para o que ao diante pode suceder. E que é razão e sigo que se cuide, e espere de inimigos tão vizinhos aos meus lugares, e tão poderosos e de tanta indústria, e experiência nas coisas de guerra, como são os Turcos, mormente considerando da vinda deles a Fez. Não é somente para dar a posse daquele Reino ao tio do Xarife, mas principalmente com o fundamento de o fazerem tributário e vassalo do Turco, e o Turco se fazer Senhor de toda África, e de todos os portos de mar dela, tendo em cada uma delas muitas galés que lhes será fácil de pôr em efeito. Assim, pela natureza da mesma terra, como por seu grande poder, que quando assim acontecesse, o que Deus não permita, visto é quantos males sem remédio 

poderiam recrescer a toda espanha, que da Cristandade se pode dizer que é hoje a melhor e maior parte, e com este intento queria que não somente cuidareis nesta matéria e a discorrereis para me nela dardes parecer e conselho no que farei e devo fazer, nas novas e acidentes presentes, mas ainda naquele que em tão propícia potência estarão de poder ao diante acontecer. E também quero que saibais o que agora ordenei de logo, que é mandar prosseguir a fortificação naqueles meus lugares, e provê-los de mantimentos e munições, e reforçar, e apressar minhas armadas, e aperceber gente em algumas comarcas do Reino.
Mas tudo isto não descansa, nem deve tirar, nem aliviar este cuidado, que obriga a começar a aperceber de logo para tudo o que pode suceder. E eu espero na misericórdia de Nº Srº, que receberemos dele, quando assim de nossa parte nos dispusermos, tamanhas e tão grande vitórias, que receba de nós os serviços, que lhe eu muito desejo fazer, não somente na defesa de sua fé, mas também da ampliação dela. E muito vos encomendo que me respondais logo a esta carta, e por certo tenho que será tal a resposta como de vós espero e confio, e do mais que suceder terei lembrança de vos avisar. 

Escrita em Setuval, a 24 de Abril de 1576
Rey

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publicado às 06:59

Se Ceuta foi Seta, ou lança, de entrada em África, a Laracha foi "Tiro de saída".

Tendo visto a compilação dos manuscritos sobre D. Sebastião, que indiquei antes, prossigo com algumas transcrições interessantes, aí encontradas. Embora agora não sejam "Pela mão de Sebastião", seguem o espírito.

De diversos textos que fui escrevendo sobre D. Sebastião, o que me parece mais completo será o Peça por Peça, ainda que não se inclua aí larachas ou bulas de pretendentes, mas o caso do Maluco, depois escrito Moluco, está presente desde o início. E essa brincadeira de nomes já teve o seu preço.

Bom, e há sempre "coisas estranhas" a juntar ao rol.
Encontram-se duas relações da batalha, escritas quase uma em cima da outra, e de certa forma pretendendo a relação marginal ser um complemento à principal.

Interessa-me aqui a parte final do relato principal:
Neste tempo vendo El Rey que estava na vanguarda o seu campo desbaratado, se veio recolhendo pela banda do Duque de Aveiro, e o seguiu alguma gente de cavalo e a pé, cuidando que ia fazendo uma ponta para volver sobre os mouros, viu o campo já tão desbaratado que se retirou. Durou a batalha quatro horas sem se declarar a vitória.
relato que assim termina, apresentando-se apenas depois a disposição do exército de D. Sebastião:

Disposição do exército de D. Sebastião, na Batalha de Alcácer Quibir.
(nota: "SV mouros" - podem ser 5 mil ou 8 mil mouros)
A frente de batalha é para a direita, e a disposição é explicada no relato.
Nota: O relato não menciona as carruagens de religiosos, mas menciona os "bisonhos" que não seriam gente de combate. O desenho é feito por quem transcreve, e certamente a logística própria do tempo implicaria carruagens e religiosos... que certamente aumentariam a confusão. 
Tudescos é outro nome para alemães, e os Aventureiros eram soldados experimentados em batalhas no Oriente.

Ora, a questão é - por que razão o relato do "cativo" acaba assim:
"... a batalha terminou sem se declarar a vitória"?

O outro relato marginal também não fala de nenhuma "derrota" ou vitória alheia... e apenas termina com a notícia da morte do Maluco.

Transcrevo os documentos integralmente. É claro que dada a caligrafia e ortografia da época podem ocorrer algumas falhas, mas não me parece que sejam muitas, ou muito significativas. É claro que isto não deveria ser feito por mim, mas à falta de outros... é quem fica para o fazer.

Dificilmente se encontrará melhor relato "imparcial" do que sucedeu... do que não sucedeu, isso temos variados ou avariados, uns mais pintados que outros.
É claro que o relato não explica o que se passou depois da batalha terminar sem vitória para nenhum lado. Nem explica como o "cativo que fala" ficou afinal cativo... ou como tanta gente ficou cativa, e depois regressou, pagando bom preço pelo seu retorno. Explica os mortos, mas não os vivos.

Percebe-se sim que Maluco esperava o confronto num ponto estratégico, na travessia do Rio Loucos que iria dar à Laracha. Pior, nota-se que os portugueses ignoravam o poder de artilharia de Maluco, e que sendo isso normalmente o factor decisivo para a vitória das tropas europeias, foi ali invertido. Maluco tinha o apoio directo dos Turcos, e essa foi a única razão para intervenção de D. Sebastião em África.
Trarei outra carta que explica isso "pela sua mão".
Quis assim parar a ameaça de invasão turca que avançara já por Argel, Tunis e Tripoli, faltando só apoderar-se dos reinos de Marrocos, e consequentemente das lanças nacionais em África, terminando em Ceuta.
Daí prosseguiria o Grão Turco com a ameaça de invasão ibérica, reeditando a invasão de 711. Para isso contava com todos os Andaluzes desterrados em África, prontos para regressar e refazer o reino ibérico de Granada dos seus avós, perdido então há menos de cem anos.
Portanto, toda a intervenção de D. Sebastião naquele momento tem um nexo, tem o nexo de querer evitar que hoje falássemos árabe. Tanto mais que, se Marrocos acabou por não sofrer invasão turca, o deveu muito à Batalha de Alcácer Quibir. Do outro lado da Europa, os turcos já tinham cercado Viena, e portanto estes eram os dois focos de pressão na expansão turca em direcção à Europa... conforme se pode ver pelo mapa:

Entender que o projecto de D. Sebastião era "maluco", foi pintura posterior, porque não havia apenas o acordo nacional aprovado em Cortes, havia o apoio de tropas germânicas, que sentiam a ameaça turca, a descoberto pelo lado de Viena. Quanto aos espanhóis e italianos, comparativamente menos, tinham o mesmo problema. A vitória de Lepanto só "aparara a barba ao Paxá"...
A única coisa de estranhar seria mesmo a falta de empenho de Filipe II, talvez lembrado pelo pai Carlos V, que em Tunis tinha apanhado com tiros de canhão franceses pelo lado turco.

Há um número de "80 mil cavaleiros" que me parece claro exagero ou simples erro de transcrição, mas é claro que a expedição em terreno hostil tinha tudo para correr mal, não fosse a experiência portuguesa nas praças marroquinas. Por isso a escolha de D. Duarte de Menezes, de Tanger, para liderar o campo... mas conforme é descrito, o campo esteve tão desorganizado que de "Mestre de Campo" só teria o nome. Esse mesmo sobreviveria à batalha e seria depois Vice-Rei da Índia, nomeado por Filipe II.

Segue o texto...
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Relação da Batalha de Alcácer 
que mandou um cativo ao Dr. Paulo Afonso


Relação da Batalha de Alcácer que mandou um cativo ao Dr. Paulo Afonso.
E em nota marginal "Relação de Simão da Cunha" (pdf - pág. 144)
Novas da guerra, nem de nossas desventuras não tenho por que me "entremeter" nisso, porque creio que V. aí terá lá sabido melhor todos os sucessos de cá. O que direi só é que a gente de infantaria que El Rey trazia seriam até 16 mil, destes seriam até 10 mil piqueiros pelos quais se pode dizer que morreram mártires, dos 6 mil arcabunzeiros, os 3 mil eram bisonhos, só assim 3 mil arcabunzeiros souberam pelejar. Da gente a cavalo seriam até 1600, dos quais poderiam ficar limpos para pelejar até 900.

Esta gente de cavalo repartiu El Rey segunda-feira que foi a 4 de Agosto, que foi o dia da batalha, de 78. Ao Duque de Aveiro deu 300 de cavalo, e lhe deu a mão direita da batalha, El Rey se pôs da esquerda, por ficar encontrado com o inimigo, que vinha da parte direita. Deu a D. Duarte de Menezes, que trazia nome de Mestre do Campo, os cavaleiros de Tanger, que seriam 300, e o mandou à mão direita na dianteira do Duque de Aveiro. 
O Xarife [aliado] se pôs com obra de 250 lanças suas, muito boa gente, à mão direita do Duque de Aveiro, afastado dos Nossos, e chegado aos inimigos com obra de 200 arcabunzeiros, gente de guerra, porque pelejaram muito valorosamente.
Os Aventureiros, que seriam 2300, deu a Cristovão de Távora, que ia ora vanguarda, por lhe parecer com boas disposições, e armas lustrosas bastavam ao inimigo. Da mão direita estavam os Tudescos, da esquerda os espanhóis e italianos. A nossa artilharia plantaram diante no meio da Vanguarda, diante dos arcabunzeiros. Detrás dos espanhóis puseram no corpo da batalha o Terço de 

Vasco da Silveira, da mão direita, da mão esquerda o de Lopo de Sequeira, e na retaguarda da mão direita estava o Terço de Francisco de Távora, e na esquerda o de Miguel de Noronha. Na boca desta retaguarda estavam dois esquadrões de mosqueteiros para não nos entrar o inimigo. Tinhamos por uma parte e outra as Carretas, e quatro ou cinco arcabunzeiros em cada uma.
Ao domingo nos alojámos meia légua donde demos a batalha, tivemos este dia escaramuça com os Mouros, e se no domingo não pegaram connosco para dar batalha, foi porque nos tinham certos, e sabiam que à segunda-feira, havíamos de ir buscar o passo que era o Rio, que estava perto de Alcácer, onde estava o Maluco com sua artilharia de campo prantada e todo entrincheirado, ali tinha toda a força da batalha, e como sabia que forçado havíamos de demandar este passo, trincheirou-se e fortificou-se devagar. O irmão que agora é Rei, nos correu domingo com 8 ou 10 mil lanças, dos quais à segunda-feira se passaram da nossa parte 500, que nos depois foram todos traidores.
À segunda-feira pela manhã abalamos o campo nesta ordem sem parecer que podíamos pelejar, e sobretudo mortos de fome e haver 5 dias que se não bebia vinho, e afirmo a V. aí que ao Domingo ficou o nosso arraial triste, porque vimos muita forma de Mouros que nos rodeavam de todas as partes.
Segunda-feira pela manhã começámos a marchar todos nesta ordem, mas como digo todos enfadados e tristes, porque sabíamos de certeza que estava ali o Maluco com grossa gente para nos dar batalha, que assim afirmo então a V. aí que tão bisonho estava o nosso campo que não sabíamos parte do Maluco nem da batalha. Na segunda-feira às 7 horas se abalou o campo e começámos de marchar.
Neste tempo soube El Rey que estava o Maluco dali meia légua no passo por onde havíamos de passar. Dizem que lhe mandou um recado, e que ele lhe mandara dizer que ali o estava esperando onde o fomos buscar, e antes que chegássemos a tiro de bombarda, ficámos todos cercados de Mouros, e assim fomos marchando até chegar ao Maluco, tanto espaço como do Corpo Santo até à Cruz de Cata que farás, donde o Maluco começou a disparar sua artilharia que era muita, e muito mais esforçada que a nossa que nos fez pouco uso porque a mais dela foi por alto, e nós passamos


Em nota marginal - "Oito ou nove mil Andaluzes vendo 
como a coisa ia em favor nosso, estiveram quase 
determinados para se lançarem da nossa parte."
e começou a jogar à nossa, donde um pelouro dos nossos lhe deu na sua pólvora, e lha queimou toda, e logo serraram dos Mouros connosco 80 mil de cavalo, e 6 mil de pé em que os mais eram Elches e Andaluzes, segundo os Mouros dizem, afora a gente de pé que não tem conta.
E começando agora bateria sua, e nossa, aí pelouro dos nossos na prenunciada deu no Maluco que vinha dentro em um coche e o matou, de que os Mouros ficaram amedrontados, e se retiraram ali. Tanto mais dizem que no mesmo coche trazia dois arrenegados consigo que o fizeram sempre vivo para animar os seus, deitando-lhe muito dinheiro em nome do Maluco, e os Mouros posto que não desapegaram da batalha de todo, tornaram a pegar de novo mais rijo.

Neste tempo correram os Tudescos com o seu Terço e chegaram junto da artilharia dos Mouros, donde foram logo cercados deles por não marchar toda a infantaria, que se o fizeram ganhávamos toda a artilharia, e sem dúvida os desbaratávamos. Mas como se os Tudescos se viram sós, e com o seu Coronel e Capitão mortos ficaram logo perdidos, por não haver quem os socorresse. Porque os Aventureiros, que com eles estavam juntos não os socorreram, por não terem arcanbuzeria nenhuma, senão só duas companhias de escopeteiros de Tanger que todos valorosamente pelejaram, até os matarem a todos, e aos Aventureiros, que morreram mártires pelos não deixarem marchar como queriam. Os Mouros tanto que viram a desordem cortaram o terço dos Tudescos, e Aventureiros, e foram nos ganhar nossa artilharia que não tirou mais que a primeira vez.
Neste tempo estando a batalha indeterminada de ambas as partes, desbarataram-nos muita gente de cavalo. Deu El Rey pela sua parte Santiago de quatro ou cinco mil de cavalo, onde pelejou muito valorosamente, mas mais cavaleiro do que capitão. E o Duque de Aveiro por outra parte, com D. Duarte de Menezes que ia na dianteira dele, com a gente de Tanger, deu nos Mouros onde os puseram em fugida, e a gente de Tanger chegou à artilharia do Maluco, e lhe tomaram uma bandeira de cima da artilharia, e como a nossa cavalaria era pouca, a cortaram logo, pelo que conveio retirar-se ao nosso esquadrão, mas com muita gente perdida, que com a escopetaria matavam, e fazendo só três voltas com os Mouros (de que lhe matámos 

muita gente) não se pôde mais sortir a nossa cavalaria por ser tão pouca, e se meteu no esquadrão, que estavam já neste tempo desbaratados, e a artilharia perdida. O Xarife com a sua gente pelejou muito valorosamente, mas como éramos todos poucos, não nos pudemos sustentar.

Neste tempo vendo El Rey que estava na vanguarda o seu campo desbaratado, se veio recolhendo pela banda do Duque de Aveiro, e o seguiu alguma gente de cavalo e a pé, cuidando que ia fazendo uma ponta para volver sobre os mouros, viu o campo já tão desbaratado que se retirou. Durou a batalha quatro horas sem se declarar a vitória.



















O outro relato "por relação de Simão da Cunha", escrito na margem, diz assim:
Havendo el Rey passado o rio e todo o exército, veio ter com ele D. Duarte de Menezes e lhe disse que todo o exército havia passado o rio, pelo que mandasse Sua Alteza o que se havia de fazer. Peguntou-lhe El Rey o que lhe parecia, disse-lhe D. Duarte que o seu parecer e de todos e dos Elches (um dos quais era o Alcaide Raposo) era que caminhasse Sua Alteza ao longo do rio para Larache. Mandou El Rey chamar o Raposo e os outros seus companheiros, que lhe disseram o mesmo. E que fazendo assim, Sua Alteza ganharia a mais preciosa vitória sem sangue que se podia desejar, porque o Maluco estava morrendo e não escaparia daquele ou do outro dia. E estando El Rey quasi determinado a seguir este conselho, chegou a ele Fernão da Silva, o clérigo, armado, e do que lhe disse que ninguém ouviu (estando Simão da Cunha que ia no esquadrão dos aventureiros presente), voltou El Rey para D. Duarte e lhe disse que marchasse o campo adiante assim como ia, contra o do Maluco, o qual se o esperasse lhe daria batalha, e se fugisse que fosse com todos os diabos. 
Quando os nossos ouviram a artilharia dos inimigos e o estrago que neles fazia ficaram maravilhados e cretados do medo, porque a quasi todos parecia que os mouros não haviam artilharia; tão pouca notícia havia de tudo, sendo tão necessária. 
Quando o esquadrão de aventureiros arremeteu, e chegou à artilharia dos inimigos, e os mouros se retiraram, andava o Maluco [Mulei Moluco] a cavalo e vendo ou entendendo que os seus fugiam, levou do Alfange para os deter, e com a cólera e enfermidade não acabou de arrancar o alfange e caiu do cavalo. Meteram-no logo nas andas e logo expirou.
______________________________________

Conforme disse, esta história por este lado dos manuscritos acaba assim, sem final para D. Sebastião. Quem quiser pode agora contentar-se ou não com um final habitual que nos é conhecido:
"Depois de quatro horas de luta, terminara a batalha. Apenas D. Sebastião e um pequeno grupo de fidalgos seguiam combatendo. Nem a bandeira, nem o guião real, chamavam já a atenção dos mouros sobre o monarca ; e talvez a esta circunstância devesse não ter sido ainda morto. Mas era um fim previsto. Cristóvão de Távora suplica-lhe que se renda. D. João de Portugal acrescenta : "Que pode haver aqui que fazer, senão morrermos todos?" Respondeu D. Sebastião: "Morrer, sim, mas devagar". D. Nuno Mascarenhas chegou a arvorar um lenço, na ponta da lança ou da espada. D. Sebastião, porém, não se rendeu; e travando-se combate, foram mortos o conde de Vimioso, Cristóvão de Távora e alguns fronteiros de Tânger. Os restantes ficaram prisioneiros. Mais adiante, foi o soberano português cercado dum grupo de alarves que o mataram, com profundos golpes na cabeça e algumas arcabuzadas no tronco."   
(daqui) 
Pela minha parte, aqui leio outra coisa.
Leio que D. Sebastião "viu o campo já tão desbaratado que se retirou". E leio não apenas que "depois de quatro horas de luta terminara a batalha", leio que "terminou sem se declarar a vitória".
Por isso, parece-me que havia condições de se ter feito uma "retirada estratégica". 
Se é possível acreditar que isso não fizesse o estilo de D. Sebastião, "mais cavaleiro que capitão", a rendição de D. Duarte de Menezes foi mais de capitão do que de cavaleiro. Porque em que paragens andaria a honra do Mestre de Campo que se rendeu, se o rei não o fez?
Certo é que as inconsistências do relato final levaram ao mito sebastianista.

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publicado às 06:59

Se Ceuta foi Seta, ou lança, de entrada em África, a Laracha foi "Tiro de saída".

Tendo visto a compilação dos manuscritos sobre D. Sebastião, que indiquei antes, prossigo com algumas transcrições interessantes, aí encontradas. Embora agora não sejam "Pela mão de Sebastião", seguem o espírito.

De diversos textos que fui escrevendo sobre D. Sebastião, o que me parece mais completo será o Peça por Peça, ainda que não se inclua aí larachas ou bulas de pretendentes, mas o caso do Maluco, depois escrito Moluco, está presente desde o início. E essa brincadeira de nomes já teve o seu preço.

Bom, e há sempre "coisas estranhas" a juntar ao rol.
Encontram-se duas relações da batalha, escritas quase uma em cima da outra, e de certa forma pretendendo a relação marginal ser um complemento à principal.

Interessa-me aqui a parte final do relato principal:
Neste tempo vendo El Rey que estava na vanguarda o seu campo desbaratado, se veio recolhendo pela banda do Duque de Aveiro, e o seguiu alguma gente de cavalo e a pé, cuidando que ia fazendo uma ponta para volver sobre os mouros, viu o campo já tão desbaratado que se retirou. Durou a batalha quatro horas sem se declarar a vitória.
relato que assim termina, apresentando-se apenas depois a disposição do exército de D. Sebastião:

Disposição do exército de D. Sebastião, na Batalha de Alcácer Quibir.
(nota: "SV mouros" - podem ser 5 mil ou 8 mil mouros)
A frente de batalha é para a direita, e a disposição é explicada no relato.
Nota: O relato não menciona as carruagens de religiosos, mas menciona os "bisonhos" que não seriam gente de combate. O desenho é feito por quem transcreve, e certamente a logística própria do tempo implicaria carruagens e religiosos... que certamente aumentariam a confusão. 
Tudescos é outro nome para alemães, e os Aventureiros eram soldados experimentados em batalhas no Oriente.

Ora, a questão é - por que razão o relato do "cativo" acaba assim:
"... a batalha terminou sem se declarar a vitória"?

O outro relato marginal também não fala de nenhuma "derrota" ou vitória alheia... e apenas termina com a notícia da morte do Maluco.

Transcrevo os documentos integralmente. É claro que dada a caligrafia e ortografia da época podem ocorrer algumas falhas, mas não me parece que sejam muitas, ou muito significativas. É claro que isto não deveria ser feito por mim, mas à falta de outros... é quem fica para o fazer.

Dificilmente se encontrará melhor relato "imparcial" do que sucedeu... do que não sucedeu, isso temos variados ou avariados, uns mais pintados que outros.
É claro que o relato não explica o que se passou depois da batalha terminar sem vitória para nenhum lado. Nem explica como o "cativo que fala" ficou afinal cativo... ou como tanta gente ficou cativa, e depois regressou, pagando bom preço pelo seu retorno. Explica os mortos, mas não os vivos.

Percebe-se sim que Maluco esperava o confronto num ponto estratégico, na travessia do Rio Loucos que iria dar à Laracha. Pior, nota-se que os portugueses ignoravam o poder de artilharia de Maluco, e que sendo isso normalmente o factor decisivo para a vitória das tropas europeias, foi ali invertido. Maluco tinha o apoio directo dos Turcos, e essa foi a única razão para intervenção de D. Sebastião em África.
Trarei outra carta que explica isso "pela sua mão".
Quis assim parar a ameaça de invasão turca que avançara já por Argel, Tunis e Tripoli, faltando só apoderar-se dos reinos de Marrocos, e consequentemente das lanças nacionais em África, terminando em Ceuta.
Daí prosseguiria o Grão Turco com a ameaça de invasão ibérica, reeditando a invasão de 711. Para isso contava com todos os Andaluzes desterrados em África, prontos para regressar e refazer o reino ibérico de Granada dos seus avós, perdido então há menos de cem anos.
Portanto, toda a intervenção de D. Sebastião naquele momento tem um nexo, tem o nexo de querer evitar que hoje falássemos árabe. Tanto mais que, se Marrocos acabou por não sofrer invasão turca, o deveu muito à Batalha de Alcácer Quibir. Do outro lado da Europa, os turcos já tinham cercado Viena, e portanto estes eram os dois focos de pressão na expansão turca em direcção à Europa... conforme se pode ver pelo mapa:

Entender que o projecto de D. Sebastião era "maluco", foi pintura posterior, porque não havia apenas o acordo nacional aprovado em Cortes, havia o apoio de tropas germânicas, que sentiam a ameaça turca, a descoberto pelo lado de Viena. Quanto aos espanhóis e italianos, comparativamente menos, tinham o mesmo problema. A vitória de Lepanto só "aparara a barba ao Paxá"...
A única coisa de estranhar seria mesmo a falta de empenho de Filipe II, talvez lembrado pelo pai Carlos V, que em Tunis tinha apanhado com tiros de canhão franceses pelo lado turco.

Há um número de "80 mil cavaleiros" que me parece claro exagero ou simples erro de transcrição, mas é claro que a expedição em terreno hostil tinha tudo para correr mal, não fosse a experiência portuguesa nas praças marroquinas. Por isso a escolha de D. Duarte de Menezes, de Tanger, para liderar o campo... mas conforme é descrito, o campo esteve tão desorganizado que de "Mestre de Campo" só teria o nome. Esse mesmo sobreviveria à batalha e seria depois Vice-Rei da Índia, nomeado por Filipe II.

Segue o texto...
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Relação da Batalha de Alcácer 
que mandou um cativo ao Dr. Paulo Afonso


Relação da Batalha de Alcácer que mandou um cativo ao Dr. Paulo Afonso.
E em nota marginal "Relação de Simão da Cunha" (pdf - pág. 144)
Novas da guerra, nem de nossas desventuras não tenho por que me "entremeter" nisso, porque creio que V. aí terá lá sabido melhor todos os sucessos de cá. O que direi só é que a gente de infantaria que El Rey trazia seriam até 16 mil, destes seriam até 10 mil piqueiros pelos quais se pode dizer que morreram mártires, dos 6 mil arcabunzeiros, os 3 mil eram bisonhos, só assim 3 mil arcabunzeiros souberam pelejar. Da gente a cavalo seriam até 1600, dos quais poderiam ficar limpos para pelejar até 900.

Esta gente de cavalo repartiu El Rey segunda-feira que foi a 4 de Agosto, que foi o dia da batalha, de 78. Ao Duque de Aveiro deu 300 de cavalo, e lhe deu a mão direita da batalha, El Rey se pôs da esquerda, por ficar encontrado com o inimigo, que vinha da parte direita. Deu a D. Duarte de Menezes, que trazia nome de Mestre do Campo, os cavaleiros de Tanger, que seriam 300, e o mandou à mão direita na dianteira do Duque de Aveiro. 
O Xarife [aliado] se pôs com obra de 250 lanças suas, muito boa gente, à mão direita do Duque de Aveiro, afastado dos Nossos, e chegado aos inimigos com obra de 200 arcabunzeiros, gente de guerra, porque pelejaram muito valorosamente.
Os Aventureiros, que seriam 2300, deu a Cristovão de Távora, que ia ora vanguarda, por lhe parecer com boas disposições, e armas lustrosas bastavam ao inimigo. Da mão direita estavam os Tudescos, da esquerda os espanhóis e italianos. A nossa artilharia plantaram diante no meio da Vanguarda, diante dos arcabunzeiros. Detrás dos espanhóis puseram no corpo da batalha o Terço de 

Vasco da Silveira, da mão direita, da mão esquerda o de Lopo de Sequeira, e na retaguarda da mão direita estava o Terço de Francisco de Távora, e na esquerda o de Miguel de Noronha. Na boca desta retaguarda estavam dois esquadrões de mosqueteiros para não nos entrar o inimigo. Tinhamos por uma parte e outra as Carretas, e quatro ou cinco arcabunzeiros em cada uma.
Ao domingo nos alojámos meia légua donde demos a batalha, tivemos este dia escaramuça com os Mouros, e se no domingo não pegaram connosco para dar batalha, foi porque nos tinham certos, e sabiam que à segunda-feira, havíamos de ir buscar o passo que era o Rio, que estava perto de Alcácer, onde estava o Maluco com sua artilharia de campo prantada e todo entrincheirado, ali tinha toda a força da batalha, e como sabia que forçado havíamos de demandar este passo, trincheirou-se e fortificou-se devagar. O irmão que agora é Rei, nos correu domingo com 8 ou 10 mil lanças, dos quais à segunda-feira se passaram da nossa parte 500, que nos depois foram todos traidores.
À segunda-feira pela manhã abalamos o campo nesta ordem sem parecer que podíamos pelejar, e sobretudo mortos de fome e haver 5 dias que se não bebia vinho, e afirmo a V. aí que ao Domingo ficou o nosso arraial triste, porque vimos muita forma de Mouros que nos rodeavam de todas as partes.
Segunda-feira pela manhã começámos a marchar todos nesta ordem, mas como digo todos enfadados e tristes, porque sabíamos de certeza que estava ali o Maluco com grossa gente para nos dar batalha, que assim afirmo então a V. aí que tão bisonho estava o nosso campo que não sabíamos parte do Maluco nem da batalha. Na segunda-feira às 7 horas se abalou o campo e começámos de marchar.
Neste tempo soube El Rey que estava o Maluco dali meia légua no passo por onde havíamos de passar. Dizem que lhe mandou um recado, e que ele lhe mandara dizer que ali o estava esperando onde o fomos buscar, e antes que chegássemos a tiro de bombarda, ficámos todos cercados de Mouros, e assim fomos marchando até chegar ao Maluco, tanto espaço como do Corpo Santo até à Cruz de Cata que farás, donde o Maluco começou a disparar sua artilharia que era muita, e muito mais esforçada que a nossa que nos fez pouco uso porque a mais dela foi por alto, e nós passamos


Em nota marginal - "Oito ou nove mil Andaluzes vendo 
como a coisa ia em favor nosso, estiveram quase 
determinados para se lançarem da nossa parte."
e começou a jogar à nossa, donde um pelouro dos nossos lhe deu na sua pólvora, e lha queimou toda, e logo serraram dos Mouros connosco 80 mil de cavalo, e 6 mil de pé em que os mais eram Elches e Andaluzes, segundo os Mouros dizem, afora a gente de pé que não tem conta.
E começando agora bateria sua, e nossa, aí pelouro dos nossos na prenunciada deu no Maluco que vinha dentro em um coche e o matou, de que os Mouros ficaram amedrontados, e se retiraram ali. Tanto mais dizem que no mesmo coche trazia dois arrenegados consigo que o fizeram sempre vivo para animar os seus, deitando-lhe muito dinheiro em nome do Maluco, e os Mouros posto que não desapegaram da batalha de todo, tornaram a pegar de novo mais rijo.

Neste tempo correram os Tudescos com o seu Terço e chegaram junto da artilharia dos Mouros, donde foram logo cercados deles por não marchar toda a infantaria, que se o fizeram ganhávamos toda a artilharia, e sem dúvida os desbaratávamos. Mas como se os Tudescos se viram sós, e com o seu Coronel e Capitão mortos ficaram logo perdidos, por não haver quem os socorresse. Porque os Aventureiros, que com eles estavam juntos não os socorreram, por não terem arcanbuzeria nenhuma, senão só duas companhias de escopeteiros de Tanger que todos valorosamente pelejaram, até os matarem a todos, e aos Aventureiros, que morreram mártires pelos não deixarem marchar como queriam. Os Mouros tanto que viram a desordem cortaram o terço dos Tudescos, e Aventureiros, e foram nos ganhar nossa artilharia que não tirou mais que a primeira vez.
Neste tempo estando a batalha indeterminada de ambas as partes, desbarataram-nos muita gente de cavalo. Deu El Rey pela sua parte Santiago de quatro ou cinco mil de cavalo, onde pelejou muito valorosamente, mas mais cavaleiro do que capitão. E o Duque de Aveiro por outra parte, com D. Duarte de Menezes que ia na dianteira dele, com a gente de Tanger, deu nos Mouros onde os puseram em fugida, e a gente de Tanger chegou à artilharia do Maluco, e lhe tomaram uma bandeira de cima da artilharia, e como a nossa cavalaria era pouca, a cortaram logo, pelo que conveio retirar-se ao nosso esquadrão, mas com muita gente perdida, que com a escopetaria matavam, e fazendo só três voltas com os Mouros (de que lhe matámos 

muita gente) não se pôde mais sortir a nossa cavalaria por ser tão pouca, e se meteu no esquadrão, que estavam já neste tempo desbaratados, e a artilharia perdida. O Xarife com a sua gente pelejou muito valorosamente, mas como éramos todos poucos, não nos pudemos sustentar.

Neste tempo vendo El Rey que estava na vanguarda o seu campo desbaratado, se veio recolhendo pela banda do Duque de Aveiro, e o seguiu alguma gente de cavalo e a pé, cuidando que ia fazendo uma ponta para volver sobre os mouros, viu o campo já tão desbaratado que se retirou. Durou a batalha quatro horas sem se declarar a vitória.



















O outro relato "por relação de Simão da Cunha", escrito na margem, diz assim:
Havendo el Rey passado o rio e todo o exército, veio ter com ele D. Duarte de Menezes e lhe disse que todo o exército havia passado o rio, pelo que mandasse Sua Alteza o que se havia de fazer. Peguntou-lhe El Rey o que lhe parecia, disse-lhe D. Duarte que o seu parecer e de todos e dos Elches (um dos quais era o Alcaide Raposo) era que caminhasse Sua Alteza ao longo do rio para Larache. Mandou El Rey chamar o Raposo e os outros seus companheiros, que lhe disseram o mesmo. E que fazendo assim, Sua Alteza ganharia a mais preciosa vitória sem sangue que se podia desejar, porque o Maluco estava morrendo e não escaparia daquele ou do outro dia. E estando El Rey quasi determinado a seguir este conselho, chegou a ele Fernão da Silva, o clérigo, armado, e do que lhe disse que ninguém ouviu (estando Simão da Cunha que ia no esquadrão dos aventureiros presente), voltou El Rey para D. Duarte e lhe disse que marchasse o campo adiante assim como ia, contra o do Maluco, o qual se o esperasse lhe daria batalha, e se fugisse que fosse com todos os diabos. 
Quando os nossos ouviram a artilharia dos inimigos e o estrago que neles fazia ficaram maravilhados e cretados do medo, porque a quasi todos parecia que os mouros não haviam artilharia; tão pouca notícia havia de tudo, sendo tão necessária. 
Quando o esquadrão de aventureiros arremeteu, e chegou à artilharia dos inimigos, e os mouros se retiraram, andava o Maluco [Mulei Moluco] a cavalo e vendo ou entendendo que os seus fugiam, levou do Alfange para os deter, e com a cólera e enfermidade não acabou de arrancar o alfange e caiu do cavalo. Meteram-no logo nas andas e logo expirou.
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Conforme disse, esta história por este lado dos manuscritos acaba assim, sem final para D. Sebastião. Quem quiser pode agora contentar-se ou não com um final habitual que nos é conhecido:
"Depois de quatro horas de luta, terminara a batalha. Apenas D. Sebastião e um pequeno grupo de fidalgos seguiam combatendo. Nem a bandeira, nem o guião real, chamavam já a atenção dos mouros sobre o monarca ; e talvez a esta circunstância devesse não ter sido ainda morto. Mas era um fim previsto. Cristóvão de Távora suplica-lhe que se renda. D. João de Portugal acrescenta : "Que pode haver aqui que fazer, senão morrermos todos?" Respondeu D. Sebastião: "Morrer, sim, mas devagar". D. Nuno Mascarenhas chegou a arvorar um lenço, na ponta da lança ou da espada. D. Sebastião, porém, não se rendeu; e travando-se combate, foram mortos o conde de Vimioso, Cristóvão de Távora e alguns fronteiros de Tânger. Os restantes ficaram prisioneiros. Mais adiante, foi o soberano português cercado dum grupo de alarves que o mataram, com profundos golpes na cabeça e algumas arcabuzadas no tronco."   
(daqui) 
Pela minha parte, aqui leio outra coisa.
Leio que D. Sebastião "viu o campo já tão desbaratado que se retirou". E leio não apenas que "depois de quatro horas de luta terminara a batalha", leio que "terminou sem se declarar a vitória".
Por isso, parece-me que havia condições de se ter feito uma "retirada estratégica". 
Se é possível acreditar que isso não fizesse o estilo de D. Sebastião, "mais cavaleiro que capitão", a rendição de D. Duarte de Menezes foi mais de capitão do que de cavaleiro. Porque em que paragens andaria a honra do Mestre de Campo que se rendeu, se o rei não o fez?
Certo é que as inconsistências do relato final levaram ao mito sebastianista.

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publicado às 06:59

Hoje é Embaixada de França o que antes foi o Palácio de Santos.
Para mostrar como o edifício foi querido de D. Sebastião, temos esta descrição na página da Embaixada:
D. Sebastião (rei de 1557 a 1578), sucessor de D. João III, considera, pelo contrário, o Palácio de Santos como uma das suas residências preferidas. Em 1576, o monarca escapou a uma violenta explosão dos armazéns de pólvora que se situavam nas margens do Tejo, do lado da actual Rua das Janelas Verdes. O sinistro danificou muitíssimo o Palácio. Em 1577, o Palácio de Santos é o teatro de uma cena histórica: o rei recebe a notificação do seu ministro contra a campanha, na África do Norte, que ele estava a preparar. A 25 de Junho de 1578, o rei D. Sebastião parte de Lisboa para Marrocos. Na véspera, assiste à Missa na Igreja de Santos-o-Velho e diz-se ter tomado a sua última refeição no Palácio, na mesa de mármore que se encontra no actual jardim. Esta cruzada contra os Mouros termina com a catástrofe de Alcácer Quibir (4 de Agosto) onde morre uma grande parte da nobreza portuguesa próxima do rei (um filho, Afonso, e dois netos de Jorge de Lancastre são mortos; um outro neto, Luís, é feito prisioneiro).
Depois desta perda, os Lancastre instalaram-se novamente no Palácio de Santos que se encontrava num estado lastimável, devido à explosão dos armazéns de pólvora e da sua ocupação pelo exército de Filipe I que veio, em 1580, afirmar as pretensões do seu monarca ao trono português, depois de extinta a dinastia de Aviz. Luís de Lancastre (1540-1613), regressado de Marrocos, depois de ter sido pago um grande resgate, compra o Palácio às Comendadeiras, mas esta aquisição foi contestada pelo poder real. Só em 1629, o seu filho, Francisco Luís (1580-1667), consegue finalmente comprar o Palácio definitivamente às Comendadeiras com a autorização real. O Palácio fica na posse dos Lancastre até 1909.
É sobre o episódio da Explosão dos Armazéns de Pólvora, que destaquei, que encontrei esta transcrição.numa compilação de manuscritos constante na Biblioteca Nacional

Documentos de várias tipologias, relativos à história portuguesa, 
sobretudo do reinado de D. Sebastião
 (pag.121-123)

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Del Rey D. Sebastião de mão própria 
ao Magnífico Embaixador D. Juan da Silva

Magnífico Embaixador,
havendo-vos escrito por Miguel de Moura, me pareceu toda via por mim escrevermos o que mais oferece para o dizerdes ao Senhor Rey meu tio e ao Duque de Alva, e ao Prior Dom António, e se discorrer ponderar, e entender o que Deus mostrou, e o como aprovou quão servido foi destas Vistas e do que delas deve proceder e resultar com permitir e ordenar que sucedesse o efeito da Pólvora, que foi tanta como na carta que escrevo a D. Cristovão de Moura, e tão grande a ruína e perigosa, como desta entendereis. Nestas casas caíram muitas pedras e com tanta força que quebraram as pedras das paredes e os tijolos em que deram, que ainda fizeram algum dano em quem não fora pedra, na casa do conselho morreram sem falta todos os que nela estivessem e pelas horas em que foi, se eu aqui me achara alguns morreram que fora

grande perda, podendo ser isto a outras, que os que nela alcançava não fora tão grande perda. Nesta casa em que estou entraram algumas pedras com mais força da com que o Alferes Mor monteia, e da com que D. Diogo de Cordova esperava os Porcos de Portugal com os seus venablos. Porque nas paredes em que deram desfizeram a Cal, e quebraram as pedras delas, e uma deu com esta força onde eu aquelas horas costumo estar assentado, e onde estou encostado à parede, e finalmente de onde me fica a cabeça. Lembra-me que quando me tivestes, e D. Cristovão nesta casa, que o Imperador era falecido, e que visse o que escreveríeis no das Vistas, vos respondi que entendia se nelas houvesse dilação segundo as coisas que sempre corriam, e se ofereciam, se não efectuariam. O que se viu ser assim, pois se não partira quando parti, suposto o sucesso da Pólvora, e o efeito das Pedras, e a que me alcançava na cabeça com a força que se viu trazia, pelo que na parede e pedras dela fez, eu não pudera partir. De onde se pode bem inferir que por uns dias de dilação não foram estas Vistas e se perdera a grande importância delas. Em que se vê permitir Nosso Senhor que fosse este acontecimento uns dias depois que parti, e não permitir que acontecesse muito depois, nem algum antes, porque sendo dias depois, parecia sem mistério e sem interpretação; sendo antes, parecera não permitir tal sucesso.

Sendo no dia em que foi, mostrou o que em tudo por tão diferentes modos, e densas demonstrações quer que se entenda e se veja por se sentir e recear, e que ou a razão convença e obrigue, ou o receio mova e persuada declarando Deus e tão claramente mostrado que não somente se perdem as coisas por se passarem as conjunções delas, mas se perdem por um dia de Dilação nas boas ocasiões para elas. E que além de se ver quanto se perde nisto nas coisas que convém, mostra Deus com castigo quando se ofende visto por o muito que o contrário modo a seu serviço convém e importa. Finalmente experiencia razão, e a escritura, provam esta conclusão, lendo-se em um Salmo tempus faciendi Domino dissipaverunt legem tuam ideo mandata tua dilexi super aurum, donde se tempo de haver fazer destruir a Lei de Deus, que fará por não fazer o tempo de não fazer, e muitas vezes dizem as coisas de si o que dizia Job por si (si mane me quaesieris, non subsistam) e parece-me que a quem as coisas isto puderem dizer, poderá de si dizer as mesmas coisas (si nunc me quaesieris tam non subsisto). Tenho-me alargado tanto que ia posto mais dizer, que não sei. O que digo que cuidar que sei ia o que escrevo, referi ao Senhor Rei meu tio a 

história desde o acontecimento com interpretação .
Ao Duque d'Alva lede esta carta e ao Prior D. António e lede-a com D. Cristovão e avisai-me como leu o Duque a minha carta, e se viu o que sobre ele e o Prior escrevi ao Senhor Rei meu tio


Diz que quer vir agora cá, um homem que está em Évora vestido de vermelho a falar em coisas que lhe importam, e não advirte que sendo vista, queixa geralmente dizer o homem que o não ouviram, quanto maior deve ele ter de si e de quem o ouvir, podendo dizer com o mesmo encarecimento, que o ouviram.

Dizei a D. Diogo de Cordova que os porcos de Salvaterra e de Almeirim o desafiam, e o esperam para entrar com ele em mato e não em campo e que eu serei seu padrinho no mato e no campo;
Escrevei-me de como fica o Duque de Alva, e se achou estes dias, dizei-lhe que espera cedo pelo homem que me escreveu me mandaria, e pelas mais coisas que com ele haviam de vir, e que neste intento e para este efeito se procede cá nas coisas, e que das que se oferecem de novo o avisarei, e assim tenho por mui certo se procederá lá em tudo.

de Lisboa 26 de Janeiro de 1577
Rey
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Portanto, esta explosão dos Armazéns da Pólvora não foi vista como um mero acidente por D. Sebastião, e noutros documentos podemos ver como o Embaixador de Espanha se queixa de que ele, por mais explicações que lhe sejam dadas por si ou pelo Rei de Espanha, não acredita em nenhuma.

D. Sebastião é irónico, e aproveita a questão dos "porcos" para desafiar directamente D. Diogo de Cordova, e o Duque de Alba. Inclui ainda na "lista", Cristovão de Moura, e também o Prior do Crato.
Portanto, de certa forma esta carta mostra que D. Sebastião não estava completamente desavisado de eventuais vontades externas contra a sua vida, e facilmente apontava isso a Filipe II de Espanha, seu tio, ou aos seus associados mais directos.

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publicado às 07:58

Hoje é Embaixada de França o que antes foi o Palácio de Santos.
Para mostrar como o edifício foi querido de D. Sebastião, temos esta descrição na página da Embaixada:
D. Sebastião (rei de 1557 a 1578), sucessor de D. João III, considera, pelo contrário, o Palácio de Santos como uma das suas residências preferidas. Em 1576, o monarca escapou a uma violenta explosão dos armazéns de pólvora que se situavam nas margens do Tejo, do lado da actual Rua das Janelas Verdes. O sinistro danificou muitíssimo o Palácio. Em 1577, o Palácio de Santos é o teatro de uma cena histórica: o rei recebe a notificação do seu ministro contra a campanha, na África do Norte, que ele estava a preparar. A 25 de Junho de 1578, o rei D. Sebastião parte de Lisboa para Marrocos. Na véspera, assiste à Missa na Igreja de Santos-o-Velho e diz-se ter tomado a sua última refeição no Palácio, na mesa de mármore que se encontra no actual jardim. Esta cruzada contra os Mouros termina com a catástrofe de Alcácer Quibir (4 de Agosto) onde morre uma grande parte da nobreza portuguesa próxima do rei (um filho, Afonso, e dois netos de Jorge de Lancastre são mortos; um outro neto, Luís, é feito prisioneiro).
Depois desta perda, os Lancastre instalaram-se novamente no Palácio de Santos que se encontrava num estado lastimável, devido à explosão dos armazéns de pólvora e da sua ocupação pelo exército de Filipe I que veio, em 1580, afirmar as pretensões do seu monarca ao trono português, depois de extinta a dinastia de Aviz. Luís de Lancastre (1540-1613), regressado de Marrocos, depois de ter sido pago um grande resgate, compra o Palácio às Comendadeiras, mas esta aquisição foi contestada pelo poder real. Só em 1629, o seu filho, Francisco Luís (1580-1667), consegue finalmente comprar o Palácio definitivamente às Comendadeiras com a autorização real. O Palácio fica na posse dos Lancastre até 1909.
É sobre o episódio da Explosão dos Armazéns de Pólvora, que destaquei, que encontrei esta transcrição.numa compilação de manuscritos constante na Biblioteca Nacional

Documentos de várias tipologias, relativos à história portuguesa, 
sobretudo do reinado de D. Sebastião
 (pag.121-123)

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Del Rey D. Sebastião de mão própria 
ao Magnífico Embaixador D. Juan da Silva

Magnífico Embaixador,
havendo-vos escrito por Miguel de Moura, me pareceu toda via por mim escrevermos o que mais oferece para o dizerdes ao Senhor Rey meu tio e ao Duque de Alva, e ao Prior Dom António, e se discorrer ponderar, e entender o que Deus mostrou, e o como aprovou quão servido foi destas Vistas e do que delas deve proceder e resultar com permitir e ordenar que sucedesse o efeito da Pólvora, que foi tanta como na carta que escrevo a D. Cristovão de Moura, e tão grande a ruína e perigosa, como desta entendereis. Nestas casas caíram muitas pedras e com tanta força que quebraram as pedras das paredes e os tijolos em que deram, que ainda fizeram algum dano em quem não fora pedra, na casa do conselho morreram sem falta todos os que nela estivessem e pelas horas em que foi, se eu aqui me achara alguns morreram que fora

grande perda, podendo ser isto a outras, que os que nela alcançava não fora tão grande perda. Nesta casa em que estou entraram algumas pedras com mais força da com que o Alferes Mor monteia, e da com que D. Diogo de Cordova esperava os Porcos de Portugal com os seus venablos. Porque nas paredes em que deram desfizeram a Cal, e quebraram as pedras delas, e uma deu com esta força onde eu aquelas horas costumo estar assentado, e onde estou encostado à parede, e finalmente de onde me fica a cabeça. Lembra-me que quando me tivestes, e D. Cristovão nesta casa, que o Imperador era falecido, e que visse o que escreveríeis no das Vistas, vos respondi que entendia se nelas houvesse dilação segundo as coisas que sempre corriam, e se ofereciam, se não efectuariam. O que se viu ser assim, pois se não partira quando parti, suposto o sucesso da Pólvora, e o efeito das Pedras, e a que me alcançava na cabeça com a força que se viu trazia, pelo que na parede e pedras dela fez, eu não pudera partir. De onde se pode bem inferir que por uns dias de dilação não foram estas Vistas e se perdera a grande importância delas. Em que se vê permitir Nosso Senhor que fosse este acontecimento uns dias depois que parti, e não permitir que acontecesse muito depois, nem algum antes, porque sendo dias depois, parecia sem mistério e sem interpretação; sendo antes, parecera não permitir tal sucesso.

Sendo no dia em que foi, mostrou o que em tudo por tão diferentes modos, e densas demonstrações quer que se entenda e se veja por se sentir e recear, e que ou a razão convença e obrigue, ou o receio mova e persuada declarando Deus e tão claramente mostrado que não somente se perdem as coisas por se passarem as conjunções delas, mas se perdem por um dia de Dilação nas boas ocasiões para elas. E que além de se ver quanto se perde nisto nas coisas que convém, mostra Deus com castigo quando se ofende visto por o muito que o contrário modo a seu serviço convém e importa. Finalmente experiencia razão, e a escritura, provam esta conclusão, lendo-se em um Salmo tempus faciendi Domino dissipaverunt legem tuam ideo mandata tua dilexi super aurum, donde se tempo de haver fazer destruir a Lei de Deus, que fará por não fazer o tempo de não fazer, e muitas vezes dizem as coisas de si o que dizia Job por si (si mane me quaesieris, non subsistam) e parece-me que a quem as coisas isto puderem dizer, poderá de si dizer as mesmas coisas (si nunc me quaesieris tam non subsisto). Tenho-me alargado tanto que ia posto mais dizer, que não sei. O que digo que cuidar que sei ia o que escrevo, referi ao Senhor Rei meu tio a 

história desde o acontecimento com interpretação .
Ao Duque d'Alva lede esta carta e ao Prior D. António e lede-a com D. Cristovão e avisai-me como leu o Duque a minha carta, e se viu o que sobre ele e o Prior escrevi ao Senhor Rei meu tio


Diz que quer vir agora cá, um homem que está em Évora vestido de vermelho a falar em coisas que lhe importam, e não advirte que sendo vista, queixa geralmente dizer o homem que o não ouviram, quanto maior deve ele ter de si e de quem o ouvir, podendo dizer com o mesmo encarecimento, que o ouviram.

Dizei a D. Diogo de Cordova que os porcos de Salvaterra e de Almeirim o desafiam, e o esperam para entrar com ele em mato e não em campo e que eu serei seu padrinho no mato e no campo;
Escrevei-me de como fica o Duque de Alva, e se achou estes dias, dizei-lhe que espera cedo pelo homem que me escreveu me mandaria, e pelas mais coisas que com ele haviam de vir, e que neste intento e para este efeito se procede cá nas coisas, e que das que se oferecem de novo o avisarei, e assim tenho por mui certo se procederá lá em tudo.

de Lisboa 26 de Janeiro de 1577
Rey
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Portanto, esta explosão dos Armazéns da Pólvora não foi vista como um mero acidente por D. Sebastião, e noutros documentos podemos ver como o Embaixador de Espanha se queixa de que ele, por mais explicações que lhe sejam dadas por si ou pelo Rei de Espanha, não acredita em nenhuma.

D. Sebastião é irónico, e aproveita a questão dos "porcos" para desafiar directamente D. Diogo de Cordova, e o Duque de Alba. Inclui ainda na "lista", Cristovão de Moura, e também o Prior do Crato.
Portanto, de certa forma esta carta mostra que D. Sebastião não estava completamente desavisado de eventuais vontades externas contra a sua vida, e facilmente apontava isso a Filipe II de Espanha, seu tio, ou aos seus associados mais directos.

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publicado às 07:58

Santelmo

04.08.13
Por mero acaso, hoje, que se comemoram 435 anos sobre a batalha de que deixou Portugal suspenso, encontrei este vídeo, da TvL Odivelas, sobre o Elmo de D. Sebastião, numa entrevista a Rainer Daehnhardt:

Perspectivas : O Elmo de Dom Sebastião- Rainer Daehnhardt
O elmo de D. Sebastião, segundo R. Daehnhardt.
Programa Perspectivas da TvL.

falei muitas vezes sobre D. Sebastião, e não terei muito mais a acrescentar. 
Já conhecia esta história do Elmo, apresentado há dois anos, numa fugaz participação que tive no facebook, mas não conhecia o vídeo, que é posterior, e onde Daehnhardt detalha as suas conclusões sobre o elmo.
Em particular, depois de explicar as razões que levam à suspeita que foi um dos elmos usado em batalha, dirige as suas conclusões para a violência dos impactos sobre o elmo. Talvez a parte mais interessante é a sua conclusão de que o portador do elmo estaria vivo, e teria rechaçado os inimigos (em número que aponta até mais de 70)... nessa altura, ao abrir a viseira seria atingido por um lança granadas, a curta distância, que teria levado à morte... do rei?
- Rainer Daehnhardt admite a hipótese de ser já um escudeiro a lutar com a armadura do rei. De qualquer forma, o disparo de granada visaria a morte do rei, e sairia por traição, de entre as tropas nacionais.
A outra hipótese leva à diversa especulação de que o rei não teria morrido, nomeadamente à hipótese do Prisioneiro de Veneza...

A expansão otomana complicara o equilíbrio de forças no Mediterrâneo, e após a perda da Ilha de Rodes em 1520, a Ordem dos Hospitalários de S. João fica sem terras, e vai receber a oferta Carlos V sobre as Ilhas de Malta e Gozo, bem como a cidade de Tripoli (em poder espanhol desde 1510).
Em troca, a Ordem, agora chamada Ordem de Malta, entregaria simbolicamente um falcão anualmente... o chamado Falcão Maltês (tributo que esteve na origem do filme Maltese Falcon), o que fez até à intervenção militar de Bonaparte em 1798. Com essa intervenção e a inglesa, os domínios da Ordem de Malta reduziram-se desde então a uma propriedade em Roma...

Esta Ordem militar hospitalária que construíra o Crac dos Cavaleiros, recebera o espólio dos Templários aquando da sua supressão e condenação francesa, acabou mais dedicada ao corso, devido à perda dos territórios na Terra Santa.
O seu renascer como Ordem Malta associava-se ao grande êxito militar quando o grão-mestre La Valette, do Forte de Santo Elmo, consegue segurar o Cerco de Malta, feito pelos otomanos, em 1565.
La Valeta e o Forte de Santo Elmo
(onde La Valette segurou a invasão otomana em 1565).

Nessa altura, o sucesso cristão na Batalha de Lepanto teria como contraponto a perda de Chipre, e a perda definitiva de Tunis em 1576, colocava um acentuado domínio otomano sobre o Mediterrâneo.
É assim simbólico que Filipe II decline o apoio ao sobrinho, mas ofereça a D. Sebastião o Elmo de Carlos V, que ele levara na conquista de Tunis... onde o galeão Botafogo teria servido como peça fundamental.

Não é o Elmo de Carlos V o que é exposto por Daehnhardt, que fala na utilização de 3 diferentes armaduras por D. Sebastião em batalha. O elmo em causa aparenta uma resistência superior, capaz de resistir às armas convencionais, mas não a uma granada europeia disparada a curta distância.

Santo Elmo aparece como designação alternativa para São Erasmo de Fórmia, padroeiro de navegantes, parecendo algo forçada a redução do nome Erasmo para Elmo... ou Telmo (sendo ainda associado a um frade dominicano Pedro Gonzalez).

O Fogo de Santo Elmo, estranho fenómeno em tempestades, era descrito pelos marinheiros portugueses como "fogo de corpo santo". Tal fenómeno é descrito no Canto V (17-18) dos Lusíadas:

Os casos vi, que os rudos marinheiros, 
Que têm por mestra a longa experiência, 
Contam por certos sempre e verdadeiros, 
Julgando as cousas só pola aparência, 
E que os que têm juízos mais inteiros, 
Que só por puro engenho e por ciência 
Vêm do mundo os segredos escondidos, 
Julgam por falsos ou mal entendidos. 

Vi, claramente visto, o lume vivo 
Que a marítima gente tem por santo, 
Em tempo de tormenta e vento esquivo, 
De tempestade escura e triste pranto. 
Não menos foi a todos excessivo 
Milagre, e cousa, certo, de alto espanto, 
Ver as nuvens, do mar com largo cano, 
Sorver as altas águas do Oceano. 


 
Ilustração do fogo de santelmo, e ilustração do Séc. XVI de Santo Elmo 

Camões não nomeia o "fogo de santelmo", apenas disserta sobre a incredulidade dos sábios face às descrições dos "rudes marinheiros". Dado o aspecto de fuzis que disparavam cargas eléctricas partindo dos mastros dos veleiros, a então nova capacidade dos elmos resistirem a esses disparos, conforme explica Daehnhardt, justificaria a invocação da mesma protecção simbólica para os navegantes.
Acresce que o nome Santelmo vai aparecer na mitologia Filipina... nas ilhas de Filipe II, em disputa com D. Sebastião. Aparece aí como uma monstruosidade capaz de emitir bolas de fogo... e não necessariamente granadas convencionais.

A principal curiosidade é que este tipo de elmo e armadura eficaz contra projécteis teria o seu fim exactamente nesta época. O elmo completo de D. Sebastião talvez tenha sido dos últimos usados em batalha... a partir dessa data, usar-se-ia apenas um capacete, em tropas especializadas, como couraceiros ou dragões. Apesar da aparente infalibilidade protectora, o aumento de poder de fogo, e especialmente o "pragmatismo", acabariam por condenar a capacidade de salvação do Elmo.
Os reis e generais ficariam habitualmente fora da primeira linha dos cenários de guerra. A reposição do material humano, carne para canhão, seria afinal mais económica do que financiar um equipamento pesado, protector da soldadesca...

É ainda interessante Daehnhardt referir como foram tratados os restos das cotas de malhas de ferro... no Séc. XIX o liberalismo cuidou de reduzir essa memória à dilaceração para esfregões de panelas! Vêem-se mesmo alguns tachos que usavam partes de armaduras.
Mais do que reciclagem de material... a ideia seria sempre a reciclagem da memória!

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publicado às 19:58

Santelmo

04.08.13
Por mero acaso, hoje, que se comemoram 435 anos sobre a batalha de que deixou Portugal suspenso, encontrei este vídeo, da TvL Odivelas, sobre o Elmo de D. Sebastião, numa entrevista a Rainer Daehnhardt:

Perspectivas : O Elmo de Dom Sebastião- Rainer Daehnhardt

O elmo de D. Sebastião, segundo R. Daehnhardt.
Programa Perspectivas da TvL.

falei muitas vezes sobre D. Sebastião, e não terei muito mais a acrescentar. 
Já conhecia esta história do Elmo, apresentado há dois anos, numa fugaz participação que tive no facebook, mas não conhecia o vídeo, que é posterior, e onde Daehnhardt detalha as suas conclusões sobre o elmo.
Em particular, depois de explicar as razões que levam à suspeita que foi um dos elmos usado em batalha, dirige as suas conclusões para a violência dos impactos sobre o elmo. Talvez a parte mais interessante é a sua conclusão de que o portador do elmo estaria vivo, e teria rechaçado os inimigos (em número que aponta até mais de 70)... nessa altura, ao abrir a viseira seria atingido por um lança granadas, a curta distância, que teria levado à morte... do rei?
- Rainer Daehnhardt admite a hipótese de ser já um escudeiro a lutar com a armadura do rei. De qualquer forma, o disparo de granada visaria a morte do rei, e sairia por traição, de entre as tropas nacionais.
A outra hipótese leva à diversa especulação de que o rei não teria morrido, nomeadamente à hipótese do Prisioneiro de Veneza...

A expansão otomana complicara o equilíbrio de forças no Mediterrâneo, e após a perda da Ilha de Rodes em 1520, a Ordem dos Hospitalários de S. João fica sem terras, e vai receber a oferta Carlos V sobre as Ilhas de Malta e Gozo, bem como a cidade de Tripoli (em poder espanhol desde 1510).
Em troca, a Ordem, agora chamada Ordem de Malta, entregaria simbolicamente um falcão anualmente... o chamado Falcão Maltês (tributo que esteve na origem do filme Maltese Falcon), o que fez até à intervenção militar de Bonaparte em 1798. Com essa intervenção e a inglesa, os domínios da Ordem de Malta reduziram-se desde então a uma propriedade em Roma...

Esta Ordem militar hospitalária que construíra o Crac dos Cavaleiros, recebera o espólio dos Templários aquando da sua supressão e condenação francesa, acabou mais dedicada ao corso, devido à perda dos territórios na Terra Santa.
O seu renascer como Ordem Malta associava-se ao grande êxito militar quando o grão-mestre La Valette, do Forte de Santo Elmo, consegue segurar o Cerco de Malta, feito pelos otomanos, em 1565.
La Valeta e o Forte de Santo Elmo
(onde La Valette segurou a invasão otomana em 1565).

Nessa altura, o sucesso cristão na Batalha de Lepanto teria como contraponto a perda de Chipre, e a perda definitiva de Tunis em 1576, colocava um acentuado domínio otomano sobre o Mediterrâneo.
É assim simbólico que Filipe II decline o apoio ao sobrinho, mas ofereça a D. Sebastião o Elmo de Carlos V, que ele levara na conquista de Tunis... onde o galeão Botafogo teria servido como peça fundamental.

Não é o Elmo de Carlos V o que é exposto por Daehnhardt, que fala na utilização de 3 diferentes armaduras por D. Sebastião em batalha. O elmo em causa aparenta uma resistência superior, capaz de resistir às armas convencionais, mas não a uma granada europeia disparada a curta distância.

Santo Elmo aparece como designação alternativa para São Erasmo de Fórmia, padroeiro de navegantes, parecendo algo forçada a redução do nome Erasmo para Elmo... ou Telmo (sendo ainda associado a um frade dominicano Pedro Gonzalez).

O Fogo de Santo Elmo, estranho fenómeno em tempestades, era descrito pelos marinheiros portugueses como "fogo de corpo santo". Tal fenómeno é descrito no Canto V (17-18) dos Lusíadas:

Os casos vi, que os rudos marinheiros, 
Que têm por mestra a longa experiência, 
Contam por certos sempre e verdadeiros, 
Julgando as cousas só pola aparência, 
E que os que têm juízos mais inteiros, 
Que só por puro engenho e por ciência 
Vêm do mundo os segredos escondidos, 
Julgam por falsos ou mal entendidos. 

Vi, claramente visto, o lume vivo 
Que a marítima gente tem por santo, 
Em tempo de tormenta e vento esquivo, 
De tempestade escura e triste pranto. 
Não menos foi a todos excessivo 
Milagre, e cousa, certo, de alto espanto, 
Ver as nuvens, do mar com largo cano, 
Sorver as altas águas do Oceano. 


 
Ilustração do fogo de santelmo, e ilustração do Séc. XVI de Santo Elmo 

Camões não nomeia o "fogo de santelmo", apenas disserta sobre a incredulidade dos sábios face às descrições dos "rudes marinheiros". Dado o aspecto de fuzis que disparavam cargas eléctricas partindo dos mastros dos veleiros, a então nova capacidade dos elmos resistirem a esses disparos, conforme explica Daehnhardt, justificaria a invocação da mesma protecção simbólica para os navegantes.
Acresce que o nome Santelmo vai aparecer na mitologia Filipina... nas ilhas de Filipe II, em disputa com D. Sebastião. Aparece aí como uma monstruosidade capaz de emitir bolas de fogo... e não necessariamente granadas convencionais.

A principal curiosidade é que este tipo de elmo e armadura eficaz contra projécteis teria o seu fim exactamente nesta época. O elmo completo de D. Sebastião talvez tenha sido dos últimos usados em batalha... a partir dessa data, usar-se-ia apenas um capacete, em tropas especializadas, como couraceiros ou dragões. Apesar da aparente infalibilidade protectora, o aumento de poder de fogo, e especialmente o "pragmatismo", acabariam por condenar a capacidade de salvação do Elmo.
Os reis e generais ficariam habitualmente fora da primeira linha dos cenários de guerra. A reposição do material humano, carne para canhão, seria afinal mais económica do que financiar um equipamento pesado, protector da soldadesca...

É ainda interessante Daehnhardt referir como foram tratados os restos das cotas de malhas de ferro... no Séc. XIX o liberalismo cuidou de reduzir essa memória à dilaceração para esfregões de panelas! Vêem-se mesmo alguns tachos que usavam partes de armaduras.
Mais do que reciclagem de material... a ideia seria sempre a reciclagem da memória!

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publicado às 19:58

A primeira gramática portuguesa impressa, conhecida, é a "Grammatica da lingoagem portuguesa", de 1536, de Fernão de Oliveira, que obteve o merecido destaque na página da Biblioteca Nacional:
Começa assim:
"Esta he a primeyra anotação que Fernão doliveira fez da lingua Portuguesa. Dirigida ao mui manífico senhour nobre fidalgo o senhor dom fernando Dalmada."

Esta "anotação" tem menos de 80 páginas, mas terá matéria para muita conversa.
Em primeiro lugar, só queremos realçar que apesar das regras de escrita serem algo diferentes, não prejudicam a fonética. Talvez seja mais complicado identificar os caracteres góticos do que perceber as palavras pela sua sonoridade. "Magnífico" realça-se que foi escrito sem ler o "g", apenas como "Manífico"... assim como encontrámos, noutras obras, "manho" em vez de "magno", ou seja, é-nos dito que pode haver uma leitura de "magnas" nas "manhas". 

A escrita influenciou a fonética, assim como a fonética influenciou a escrita.
Nunca tivemos uma escrita igual à fonética, e ainda assim podemos constatar que, sem grande esforço, poderíamos entender o que dizia um português do Séc. XVI. Ou seja, ao longo das últimas 20 gerações, os pais ensinaram os filhos a falar de forma semelhante à sua... e pasme-se! - não começaram a falar diferente.
É claro que há artistas que nos gostam de convencer que a "língua evolui"... 
Claro que sim, especialmente à pancada, por imposição do poder às populações... ou então, mais subtilmente, por "modas" dos infernos, do Hades:
- ui, ui, veja-se só aquele pacóvio diz "hádes" em vez de "hás-de"!
- "hádem" esquecer-se!... 
E é claro, já todos se esqueceram de Ádem, da presença portuguesa naquela meia cratera de vulcão extinto. Na página da wikipedia a única menção à presença portuguesa em Ádem está neste quadro
... porque os barcos que a protegem têm no seu pavilhão a bandeira das quinas!

Faço esta pequena introdução, porque há artistas que vão a compasso de foice, esquadrilhando e martelando tudo com o seu escopro de pedreiro, e já tentaram demasiadas vezes perturbar a nossa língua. Enfiaram-lhe e tiraram-lhe vogais ou consoantes, consoante lhes convinha à vinha, que alimenta a embriaguez demente, da mente. Não é difícil suspeitar que até na ajuda de agentes psicotrópicos, estas gentes procuram ver o além, mas assim só "hádem" ver o aquém que transportam consigo, o "hádes".

Adiante, há ainda quem lute contra a imposição de maior caos linguístico... ainda bem! 
Porque, a pretexto de imitar a fonética, aparecem neste "novo acordo ortográfico" autênticos atentados que não servem nenhuma uniformização, apenas servem maior confusão fonética. 
Querem a "adoção" em vez da "adopção", mas só a nossa Pública Ré, dita República, que visa o ideal de ter uma Rês Pública, pronta para abate, foi na "Adoção". Adoçam agora a língua dos outros lusófonos no "adotar" das suas "adoções", por mais contra-natura que sejam.

O que sentirá um grego que olha para um texto que pode ler bem, e que terá mais de 2 mil anos?
Sentirá que ao longo de 100 gerações, de pais para filhos, a perturbação que houve pelo domínio estrangeiro das suas terras não fez com que os pais abdicassem da herança que lhes foi legada, mesmo que umas palavras tivessem caído fora de moda, e outras as tivessem substituído.

O romano já não poderá dizer o mesmo... onde estão os romanos que falavam latim?
Qual foi a geração de romanos que decidiu ensinar aos filhos uma língua diferente daquela que os pais lhe tinham ensinado? Que godos chegaram a Roma e obrigaram o povo a falar "italiano", ao mesmo tempo que obrigariam a que as missas fossem recitadas em latim?
O que era afinal o latim? 
Talvez pouco mais que uma construção erudita baseada nas línguas latinas, ensinada aos patrícios, mas que não seria a língua popular. Uma espécie de "esperanto", que tem sofrido o mesmo destino... sem base de tradição popular as línguas, por mais científicas e simples que sejam, não se enraízam nas populações.

Assim, a menos que houvesse um castigo por falar a língua nativa, o natural seria as línguas manterem-se sem grandes alterações ao longo de inúmeras gerações. Porque o natural é ensinar a mesma língua que se fala na comunidade, e a evolução pouco mais será que umas palavras que entram na moda e outras que saem.
É pois natural que seja possível ler textos com 500 anos sem nenhum estudo, e sem nenhuma dificuldade especial. Ora, nestes últimos 500 anos, de grande mudança, de grande contacto entre civilizações, em que muitas palavras entraram e saíram, as mudanças linguísticas foram pequenas. O que dizer dos 500 anos anteriores? Tudo depende do tipo de comunidade e das influências que sofreu. Comunidades rurais, mais isoladas, é natural que tenham mantido mais naturalmente a sua língua primitiva, mas também podem ter sido aliciadas pelas "modas" ou imposições citadinas, numa vontade de não serem discriminadas por serem diferentes. Isso nota-se nos imigrantes, que abandonam o cuidado de passar aos filhos a língua de origem, preferindo que eles se adaptem à língua dominante, na ausência duma comunidade. Porém, quando essa comunidade existe, e não estão isolados, a língua materna vai passando.
O caso dos bascos é paradigmático... a sua língua não é nenhuma variação de vizinhança, é uma passagem de uma língua original, ao longo de muitas gerações, favorecida pelo espírito comunitário, apesar das potências vizinhas que os influenciavam e os controlaram politicamente. Nem terão sido permeáveis a nenhuma influência de línguas latinas, mesmo durante o período romano, onde já era notado que aquela população teria uma língua completamente diferente das restantes.

Talvez a maior mudança linguística se tenha dado exactamente com a difusão da imprensa, porque a palavra escrita passou a marcar o compasso fonético. Haveria menos variações entre regiões, menos dialectos, e a inclusão de uma ou outra consoante, a mudança do seu valor fonético, poderiam alterar a pronúncia, como se veio a verificar.

Fernão de Oliveira dizia que só usávamos as cinco vogais latinas, mas que poderiam distinguir-se muitos sons para a mesma vogal. E, é claro que não usámos a tradição de acentuar tudo, muito ficou implícito.
Olhamos para "sem" e o valor de "e" passa a um breve "" pois lemos "saín". Alguma acentuação fazia-se com as consoantes "mudas", e por isso "detecta" podia ser escrito "detéta", mas escrever "deteta" retira esse valor fonético, e haverá uma tendência futura a ler-se "detêta". 
A escrita foi usada para replicar a fonética, mas depois foi modificada para a deturpar.

"GAIVS IVLIVS CAESAR", é habitual passar o "I" de "Iulius" para "Julius", mas ninguém ousa escrever "Gajus", e escreve antes "Caius". Além disso, o "Caesar" foi usado pelos alemães em "Kaiser", ou pelos russos em "Czar", passou nas línguas latinas a "César", modificando por completo a fonética com raiz no mesmo nome... devido à regra imposta que o "e" e "i" fariam o "c" ler-se como "s".
Há inúmeros exemplos destes, e houve claramente um propósito de confusão, porque tratando-se de traduções de termos eruditos, vindos do latim e grego, não estavam presos à tradição popular. 
A letra "G", pela confusão de no alfabeto grego o "gama" aparecer como terceira letra, serviu também como "C", e vice-versa.

Só depois de escrever isto, se pode entender algumas coisas que Fernão de Oliveira irá dizer.
A propósito do nome Portugal critica Duarte Galvão, que remetia a origem de Portocale ao Porto de Gaia (seria mais à romana Cale, que seria mesmo o Porto). Ou seja, criticava a associação que é ainda hoje tida como boa. Reclamava pois que a origem vinha dos povos, da mistura entre Turdulos e Galos:
Turdulos + Galos = Turdugal daria por corrupção, Portugal
... enfim, já vi pior, eu até já usei a fonética Por Tubal para escrever um texto... por isso nada há a censurar, é mais uma hipótese com algum sentido. 
Fernão de Oliveira fala também do nome Lisboa que diz vir de "Libisona", por referência a Hércules Líbico - o herói mítico teria escolhido morrer na Ibéria. Na mesma linha mítica, fala de Luso, dizendo que não foi grego, teria nascido aqui, filho de Sicileo (ele escreve Ciçeleu que, está-se a ver... nessa mitologia aparecia ligado à Sicília). Curiosamente associa o nome Dionísio a Dinis - ligação que nunca me ocorrera, mas que também tem todo o sentido.


Nota-se a referência aos reis míticos, pela moda resultante de Anio de Viterbo, que transcreveu uma obra de Beroso. Porém, essa transcrição foi alvo de acusações de falsificação. No entanto, até ao Iluminismo, as acusações de falsificação não vingavam, e essa mitologia durou vários séculos... basicamente de 1500 até 1800. Muito se escreveu com essa base "Viterbense", apoiada pelos sectores católicos. 
O Iluminismo acabaria por fazer uma selecção interessante - alguns mitos pagãos sobreviveram como lendas, mas os registos que acrescentavam descendências a Noé, e assim iam além da Bíblia, esses foram proscritos, e nem sequer como lendas passaram para o Séc. XX. Não seria uma questão científica, era uma questão de inviolabilidade e exclusividade do antigo testamento, muito cara aos protestantes... e aos judeus.

Porém, Fernão de Oliveira vai bem mais longe. Argumenta que antes de gregos e latinos, os primeiros a falar viveram cá nesta terrinha, quer dizer, na Península! Para isso recorre a Vitrúvio, que tinha dito que a origem da língua resultara de necessidade entre os homens, por razão de um grande fogo. Citando:
"(...) primeiro souberam falar os da nossa terra. Porque Vitrúvio diz no 2º livro dos seus Edifícios que, ajuntando-se os homens a um certo fogo, o qual por acerto com grande vento se acendeu em matos, e ali, conversando uns com os outros, souberam formar vozes e falar. E não dizendo ele onde foi esse fogo, conta Diodoro Siculo, no 6º livro da sua Biblioteca, que foi nos Montes Pirinéus (...)"

Ou seja, Fernão de Oliveira remete a origem da línguagem humana à região dos Pirinéus, e não há dúvida que nos últimos séculos sempre houve quem visse na língua basca uma excepção que poderia justificar a sua maior ancestralidade. 
É suficientemente ambíguo, porque ele nem fala disso, vai argumentar apenas que a língua portuguesa seria mais antiga que o grego ou o latim, algo depois melhor sustentado pelo Cardeal Saraiva, que separou o português de uma raiz latina.
Acrescenta Oliveira que a língua não teria inicialmente cuidados gramaticais, e esses sim teriam sido implementados no grego e no latim, e depois importados para adaptação na nossa língua. 
Segundo ele, a língua portuguesa só teria o devido cuidado linguístico no reinado de D. Dinis, porque antes teríamos estado sempre demasiado ocupados em guerras. Recusa todo o papel da nobreza Goda na protecção da Ibéria, e diz que foi devido aos vícios dos Visigodos que a península teria sido invadida pelos árabes... mas, é claro, nem toda a península! Portugal tinha ficado sempre com uma parte resistente.

Para isso argumenta com a lenda do Abade João de Montemor, que viveu c. 850 d.C., em Montemor-o-Velho (Mosteiro de Lorvão) e que tinha ficado conhecido por se opor aos mouros na Estremadura. Ora, diz ele, se ele vivia em Montemor-o-Velho, isso significava que essa zona não tinha ficado sob domínio árabe.
Podemos acrescentar que houve sempre registos de Bispos de Coimbra. Porém, diz-se, que isso era uma posição no exílio... ou que as investidas islâmicas iam e vinham. Umas vezes subiam o Mondego, outras vezes ficavam abaixo dele. Parece-nos que, pelo menos algum papel deverá ter tido Vímara Peres, cujo nome ficou ligado a Guimarães (e aos vimaranenses), e que viveu no mesmo século que o Abade João. No entanto, Vimara Peres é suposto ter apenas chegado ao Porto e a Gaia.

A obra teria muito mais assuntos a discutir... mas já nos alongámos muito.
Deixo mais uma observação instrutiva, conforme é citada por Teófilo Braga:
Fernão de Oliveira também nota as alterações da moda: «Nem os lavradores de Entre Douro e Minho entendem as novas vozes que este ano vieram de Tunes com suas gorras». E o mesmo: «o costume novo traz à terra novos vocábulos: como agora pouco há, trouxe este nome picote, que quer dizer burel; do qual, porque de fora trouxeram os malgalantes o costume, ou para melhor dizer, o desdém de vestir o tal pano, trouxeram também o nome com esse costume: e alquice tão-pouco é vestido da nossa terra, por isso também traz o nome estrangeiro consigo.» A pragmática de 3 de Junho de 1535 proibia o trazer luvas perfumadas aos homens.
É preciso introduzir o poderoso galeão português Botafogo para perceber o que ali está escrito:
Galeão Botafogo no cerco a Tunis (1535).
Os seus 366 canhões tornavam-no o navio mais temível dos mares.

O que é dito é que os "nomes da moda" reflectiam questões políticas, de forma implícita.
Carlos V queria impor-se com uma grande proeza militar - a conquista de Tunis, que realizou em 1535, um ano antes de Fernão de Oliveira escrever o que escreveu. Os lavradores de Entre-Douro e Minho não sabiam dos mexericos cortesãos, e não perceberiam a razão dos nomes usados nas suas vestes, mas Oliveira sabia, Teófilo Braga também...

Sabia que Carlos V tinha pago a expedição a peso de ouro, o peso que Pizarro pedira pelo resgate de Atahualpa, o Inca feito prisioneiro, que prometera encher uma sala de ouro, em troca da sua vida.
De nada valeu a Atahualpa presentear Pizarro com imenso ouro, foi executado...
O ouro já tinha outro destino, serviria para as imensas despesas da expedição de Carlos V contra os turcos de Barbarrosa. Para isso requisitara uma armada Genovesa, e outra Portuguesa, em que entrava o poderoso  galeão Botafogo. Esse galeão era comandado pelo Infante D. Luís, irmão de D. João III, e foi com ele que se rebentaram as correntes de ferro que protegiam o porto de Tunis. Depois, os seus 366 canhões (provavelmente para anos bissextos), ajudaram a destruir por completo a frota de Barbarrosa.
Carlos V requisitara especificamente a presença desse galeão, por ser o maior e mais temível, alguma vez construído - ainda hoje, no Rio de Janeiro temos um bairro do Botafogo, e à frente, a ilha chamada Galeão.

Adequa-se também esta referência à outra parte da história... afinal os franceses, 20 anos mais tarde tomaram o Rio de Janeiro durante uns anos, onde pensavam que iriam formar a sua França Antártica. Como diria um cronista inglês, ao tomarem a baía de Guanabara chamaram-lhe Antártica com a pretensão de que tinham tomado posse de todo o continente austral.

Onde entram os franceses na história de Tunis? 
Carlos V também pedira o apoio francês, mas sem grande sucesso. Quando entrou em Tunis, verá balas de canhão com a chancela da "flor-de-lis" francesa. Os Otomanos de Barbarrosa tinham o apoio dos franceses contra as forças cristãs. A aliança entre franceses e otomanos veio mesmo a ser oficializada pouco depois.

A história cheirava mal, luvas perfumadas adequariam-se à moda. 
Os ingleses não usaram a asneira "picote", mas depois derivaram a palavra "bureau", usado para divisão governamental, da palavra francesa "burel", que designava um pano de má qualidade para cobrir a secretária, ou os negócios maltrapilhos feitos à secretária. Não sei como se chamaram os gorros...

Quando em 1574 os Otomanos reconquistam Tunis, os franceses tinham já perdido a sua França Antártica, e haviam de lembrar-se do Botafogo.
D. Sebastião alerta Filipe II para o perigo da ameaça turca, que de novo se aproximava dos limites ibéricos.
Porém Filipe II já deveria ter percebido o significado do "bureau", ou do "picote" francês, em troca do Botafogo oferece-lhe o elmo que Carlos V teria usado na conquista de Tunis.
O resto da história, ou parte dela, já sabemos... D. Sebastião parte para combater a ameaça turca em Laracha, e terá o seu destino traçado junto à antiga cidade Lixo às margens do rio Loucos, numa batalha que ficou afinal com o nome de Alcácer Quibir... comemorada efusivamente pelos judeus como o "Purim dos Cristãos".

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publicado às 07:55

A primeira gramática portuguesa impressa, conhecida, é a "Grammatica da lingoagem portuguesa", de 1536, de Fernão de Oliveira, que obteve o merecido destaque na página da Biblioteca Nacional:
Começa assim:
"Esta he a primeyra anotação que Fernão doliveira fez da lingua Portuguesa. Dirigida ao mui manífico senhour nobre fidalgo o senhor dom fernando Dalmada."

Esta "anotação" tem menos de 80 páginas, mas terá matéria para muita conversa.
Em primeiro lugar, só queremos realçar que apesar das regras de escrita serem algo diferentes, não prejudicam a fonética. Talvez seja mais complicado identificar os caracteres góticos do que perceber as palavras pela sua sonoridade. "Magnífico" realça-se que foi escrito sem ler o "g", apenas como "Manífico"... assim como encontrámos, noutras obras, "manho" em vez de "magno", ou seja, é-nos dito que pode haver uma leitura de "magnas" nas "manhas". 

A escrita influenciou a fonética, assim como a fonética influenciou a escrita.
Nunca tivemos uma escrita igual à fonética, e ainda assim podemos constatar que, sem grande esforço, poderíamos entender o que dizia um português do Séc. XVI. Ou seja, ao longo das últimas 20 gerações, os pais ensinaram os filhos a falar de forma semelhante à sua... e pasme-se! - não começaram a falar diferente.
É claro que há artistas que nos gostam de convencer que a "língua evolui"... 
Claro que sim, especialmente à pancada, por imposição do poder às populações... ou então, mais subtilmente, por "modas" dos infernos, do Hades:
- ui, ui, veja-se só aquele pacóvio diz "hádes" em vez de "hás-de"!
- "hádem" esquecer-se!... 
E é claro, já todos se esqueceram de Ádem, da presença portuguesa naquela meia cratera de vulcão extinto. Na página da wikipedia a única menção à presença portuguesa em Ádem está neste quadro
... porque os barcos que a protegem têm no seu pavilhão a bandeira das quinas!

Faço esta pequena introdução, porque há artistas que vão a compasso de foice, esquadrilhando e martelando tudo com o seu escopro de pedreiro, e já tentaram demasiadas vezes perturbar a nossa língua. Enfiaram-lhe e tiraram-lhe vogais ou consoantes, consoante lhes convinha à vinha, que alimenta a embriaguez demente, da mente. Não é difícil suspeitar que até na ajuda de agentes psicotrópicos, estas gentes procuram ver o além, mas assim só "hádem" ver o aquém que transportam consigo, o "hádes".

Adiante, há ainda quem lute contra a imposição de maior caos linguístico... ainda bem! 
Porque, a pretexto de imitar a fonética, aparecem neste "novo acordo ortográfico" autênticos atentados que não servem nenhuma uniformização, apenas servem maior confusão fonética. 
Querem a "adoção" em vez da "adopção", mas só a nossa Pública Ré, dita República, que visa o ideal de ter uma Rês Pública, pronta para abate, foi na "Adoção". Adoçam agora a língua dos outros lusófonos no "adotar" das suas "adoções", por mais contra-natura que sejam.

O que sentirá um grego que olha para um texto que pode ler bem, e que terá mais de 2 mil anos?
Sentirá que ao longo de 100 gerações, de pais para filhos, a perturbação que houve pelo domínio estrangeiro das suas terras não fez com que os pais abdicassem da herança que lhes foi legada, mesmo que umas palavras tivessem caído fora de moda, e outras as tivessem substituído.

O romano já não poderá dizer o mesmo... onde estão os romanos que falavam latim?
Qual foi a geração de romanos que decidiu ensinar aos filhos uma língua diferente daquela que os pais lhe tinham ensinado? Que godos chegaram a Roma e obrigaram o povo a falar "italiano", ao mesmo tempo que obrigariam a que as missas fossem recitadas em latim?
O que era afinal o latim? 
Talvez pouco mais que uma construção erudita baseada nas línguas latinas, ensinada aos patrícios, mas que não seria a língua popular. Uma espécie de "esperanto", que tem sofrido o mesmo destino... sem base de tradição popular as línguas, por mais científicas e simples que sejam, não se enraízam nas populações.

Assim, a menos que houvesse um castigo por falar a língua nativa, o natural seria as línguas manterem-se sem grandes alterações ao longo de inúmeras gerações. Porque o natural é ensinar a mesma língua que se fala na comunidade, e a evolução pouco mais será que umas palavras que entram na moda e outras que saem.
É pois natural que seja possível ler textos com 500 anos sem nenhum estudo, e sem nenhuma dificuldade especial. Ora, nestes últimos 500 anos, de grande mudança, de grande contacto entre civilizações, em que muitas palavras entraram e saíram, as mudanças linguísticas foram pequenas. O que dizer dos 500 anos anteriores? Tudo depende do tipo de comunidade e das influências que sofreu. Comunidades rurais, mais isoladas, é natural que tenham mantido mais naturalmente a sua língua primitiva, mas também podem ter sido aliciadas pelas "modas" ou imposições citadinas, numa vontade de não serem discriminadas por serem diferentes. Isso nota-se nos imigrantes, que abandonam o cuidado de passar aos filhos a língua de origem, preferindo que eles se adaptem à língua dominante, na ausência duma comunidade. Porém, quando essa comunidade existe, e não estão isolados, a língua materna vai passando.
O caso dos bascos é paradigmático... a sua língua não é nenhuma variação de vizinhança, é uma passagem de uma língua original, ao longo de muitas gerações, favorecida pelo espírito comunitário, apesar das potências vizinhas que os influenciavam e os controlaram politicamente. Nem terão sido permeáveis a nenhuma influência de línguas latinas, mesmo durante o período romano, onde já era notado que aquela população teria uma língua completamente diferente das restantes.

Talvez a maior mudança linguística se tenha dado exactamente com a difusão da imprensa, porque a palavra escrita passou a marcar o compasso fonético. Haveria menos variações entre regiões, menos dialectos, e a inclusão de uma ou outra consoante, a mudança do seu valor fonético, poderiam alterar a pronúncia, como se veio a verificar.

Fernão de Oliveira dizia que só usávamos as cinco vogais latinas, mas que poderiam distinguir-se muitos sons para a mesma vogal. E, é claro que não usámos a tradição de acentuar tudo, muito ficou implícito.
Olhamos para "sem" e o valor de "e" passa a um breve "" pois lemos "saín". Alguma acentuação fazia-se com as consoantes "mudas", e por isso "detecta" podia ser escrito "detéta", mas escrever "deteta" retira esse valor fonético, e haverá uma tendência futura a ler-se "detêta". 
A escrita foi usada para replicar a fonética, mas depois foi modificada para a deturpar.

"GAIVS IVLIVS CAESAR", é habitual passar o "I" de "Iulius" para "Julius", mas ninguém ousa escrever "Gajus", e escreve antes "Caius". Além disso, o "Caesar" foi usado pelos alemães em "Kaiser", ou pelos russos em "Czar", passou nas línguas latinas a "César", modificando por completo a fonética com raiz no mesmo nome... devido à regra imposta que o "e" e "i" fariam o "c" ler-se como "s".
Há inúmeros exemplos destes, e houve claramente um propósito de confusão, porque tratando-se de traduções de termos eruditos, vindos do latim e grego, não estavam presos à tradição popular. 
A letra "G", pela confusão de no alfabeto grego o "gama" aparecer como terceira letra, serviu também como "C", e vice-versa.

Só depois de escrever isto, se pode entender algumas coisas que Fernão de Oliveira irá dizer.
A propósito do nome Portugal critica Duarte Galvão, que remetia a origem de Portocale ao Porto de Gaia (seria mais à romana Cale, que seria mesmo o Porto). Ou seja, criticava a associação que é ainda hoje tida como boa. Reclamava pois que a origem vinha dos povos, da mistura entre Turdulos e Galos:
Turdulos + Galos = Turdugal daria por corrupção, Portugal
... enfim, já vi pior, eu até já usei a fonética Por Tubal para escrever um texto... por isso nada há a censurar, é mais uma hipótese com algum sentido. 
Fernão de Oliveira fala também do nome Lisboa que diz vir de "Libisona", por referência a Hércules Líbico - o herói mítico teria escolhido morrer na Ibéria. Na mesma linha mítica, fala de Luso, dizendo que não foi grego, teria nascido aqui, filho de Sicileo (ele escreve Ciçeleu que, está-se a ver... nessa mitologia aparecia ligado à Sicília). Curiosamente associa o nome Dionísio a Dinis - ligação que nunca me ocorrera, mas que também tem todo o sentido.


Nota-se a referência aos reis míticos, pela moda resultante de Anio de Viterbo, que transcreveu uma obra de Beroso. Porém, essa transcrição foi alvo de acusações de falsificação. No entanto, até ao Iluminismo, as acusações de falsificação não vingavam, e essa mitologia durou vários séculos... basicamente de 1500 até 1800. Muito se escreveu com essa base "Viterbense", apoiada pelos sectores católicos. 
O Iluminismo acabaria por fazer uma selecção interessante - alguns mitos pagãos sobreviveram como lendas, mas os registos que acrescentavam descendências a Noé, e assim iam além da Bíblia, esses foram proscritos, e nem sequer como lendas passaram para o Séc. XX. Não seria uma questão científica, era uma questão de inviolabilidade e exclusividade do antigo testamento, muito cara aos protestantes... e aos judeus.

Porém, Fernão de Oliveira vai bem mais longe. Argumenta que antes de gregos e latinos, os primeiros a falar viveram cá nesta terrinha, quer dizer, na Península! Para isso recorre a Vitrúvio, que tinha dito que a origem da língua resultara de necessidade entre os homens, por razão de um grande fogo. Citando:
"(...) primeiro souberam falar os da nossa terra. Porque Vitrúvio diz no 2º livro dos seus Edifícios que, ajuntando-se os homens a um certo fogo, o qual por acerto com grande vento se acendeu em matos, e ali, conversando uns com os outros, souberam formar vozes e falar. E não dizendo ele onde foi esse fogo, conta Diodoro Siculo, no 6º livro da sua Biblioteca, que foi nos Montes Pirinéus (...)"

Ou seja, Fernão de Oliveira remete a origem da línguagem humana à região dos Pirinéus, e não há dúvida que nos últimos séculos sempre houve quem visse na língua basca uma excepção que poderia justificar a sua maior ancestralidade. 
É suficientemente ambíguo, porque ele nem fala disso, vai argumentar apenas que a língua portuguesa seria mais antiga que o grego ou o latim, algo depois melhor sustentado pelo Cardeal Saraiva, que separou o português de uma raiz latina.
Acrescenta Oliveira que a língua não teria inicialmente cuidados gramaticais, e esses sim teriam sido implementados no grego e no latim, e depois importados para adaptação na nossa língua. 
Segundo ele, a língua portuguesa só teria o devido cuidado linguístico no reinado de D. Dinis, porque antes teríamos estado sempre demasiado ocupados em guerras. Recusa todo o papel da nobreza Goda na protecção da Ibéria, e diz que foi devido aos vícios dos Visigodos que a península teria sido invadida pelos árabes... mas, é claro, nem toda a península! Portugal tinha ficado sempre com uma parte resistente.

Para isso argumenta com a lenda do Abade João de Montemor, que viveu c. 850 d.C., em Montemor-o-Velho (Mosteiro de Lorvão) e que tinha ficado conhecido por se opor aos mouros na Estremadura. Ora, diz ele, se ele vivia em Montemor-o-Velho, isso significava que essa zona não tinha ficado sob domínio árabe.
Podemos acrescentar que houve sempre registos de Bispos de Coimbra. Porém, diz-se, que isso era uma posição no exílio... ou que as investidas islâmicas iam e vinham. Umas vezes subiam o Mondego, outras vezes ficavam abaixo dele. Parece-nos que, pelo menos algum papel deverá ter tido Vímara Peres, cujo nome ficou ligado a Guimarães (e aos vimaranenses), e que viveu no mesmo século que o Abade João. No entanto, Vimara Peres é suposto ter apenas chegado ao Porto e a Gaia.

A obra teria muito mais assuntos a discutir... mas já nos alongámos muito.
Deixo mais uma observação instrutiva, conforme é citada por Teófilo Braga:
Fernão de Oliveira também nota as alterações da moda: «Nem os lavradores de Entre Douro e Minho entendem as novas vozes que este ano vieram de Tunes com suas gorras». E o mesmo: «o costume novo traz à terra novos vocábulos: como agora pouco há, trouxe este nome picote, que quer dizer burel; do qual, porque de fora trouxeram os malgalantes o costume, ou para melhor dizer, o desdém de vestir o tal pano, trouxeram também o nome com esse costume: e alquice tão-pouco é vestido da nossa terra, por isso também traz o nome estrangeiro consigo.» A pragmática de 3 de Junho de 1535 proibia o trazer luvas perfumadas aos homens.
É preciso introduzir o poderoso galeão português Botafogo para perceber o que ali está escrito:
Galeão Botafogo no cerco a Tunis (1535).
Os seus 366 canhões tornavam-no o navio mais temível dos mares.

O que é dito é que os "nomes da moda" reflectiam questões políticas, de forma implícita.
Carlos V queria impor-se com uma grande proeza militar - a conquista de Tunis, que realizou em 1535, um ano antes de Fernão de Oliveira escrever o que escreveu. Os lavradores de Entre-Douro e Minho não sabiam dos mexericos cortesãos, e não perceberiam a razão dos nomes usados nas suas vestes, mas Oliveira sabia, Teófilo Braga também...

Sabia que Carlos V tinha pago a expedição a peso de ouro, o peso que Pizarro pedira pelo resgate de Atahualpa, o Inca feito prisioneiro, que prometera encher uma sala de ouro, em troca da sua vida.
De nada valeu a Atahualpa presentear Pizarro com imenso ouro, foi executado...
O ouro já tinha outro destino, serviria para as imensas despesas da expedição de Carlos V contra os turcos de Barbarrosa. Para isso requisitara uma armada Genovesa, e outra Portuguesa, em que entrava o poderoso  galeão Botafogo. Esse galeão era comandado pelo Infante D. Luís, irmão de D. João III, e foi com ele que se rebentaram as correntes de ferro que protegiam o porto de Tunis. Depois, os seus 366 canhões (provavelmente para anos bissextos), ajudaram a destruir por completo a frota de Barbarrosa.
Carlos V requisitara especificamente a presença desse galeão, por ser o maior e mais temível, alguma vez construído - ainda hoje, no Rio de Janeiro temos um bairro do Botafogo, e à frente, a ilha chamada Galeão.

Adequa-se também esta referência à outra parte da história... afinal os franceses, 20 anos mais tarde tomaram o Rio de Janeiro durante uns anos, onde pensavam que iriam formar a sua França Antártica. Como diria um cronista inglês, ao tomarem a baía de Guanabara chamaram-lhe Antártica com a pretensão de que tinham tomado posse de todo o continente austral.

Onde entram os franceses na história de Tunis? 
Carlos V também pedira o apoio francês, mas sem grande sucesso. Quando entrou em Tunis, verá balas de canhão com a chancela da "flor-de-lis" francesa. Os Otomanos de Barbarrosa tinham o apoio dos franceses contra as forças cristãs. A aliança entre franceses e otomanos veio mesmo a ser oficializada pouco depois.

A história cheirava mal, luvas perfumadas adequariam-se à moda. 
Os ingleses não usaram a asneira "picote", mas depois derivaram a palavra "bureau", usado para divisão governamental, da palavra francesa "burel", que designava um pano de má qualidade para cobrir a secretária, ou os negócios maltrapilhos feitos à secretária. Não sei como se chamaram os gorros...

Quando em 1574 os Otomanos reconquistam Tunis, os franceses tinham já perdido a sua França Antártica, e haviam de lembrar-se do Botafogo.
D. Sebastião alerta Filipe II para o perigo da ameaça turca, que de novo se aproximava dos limites ibéricos.
Porém Filipe II já deveria ter percebido o significado do "bureau", ou do "picote" francês, em troca do Botafogo oferece-lhe o elmo que Carlos V teria usado na conquista de Tunis.
O resto da história, ou parte dela, já sabemos... D. Sebastião parte para combater a ameaça turca em Laracha, e terá o seu destino traçado junto à antiga cidade Lixo às margens do rio Loucos, numa batalha que ficou afinal com o nome de Alcácer Quibir... comemorada efusivamente pelos judeus como o "Purim dos Cristãos".

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