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Ao fim de muito tempo, vi ontem, pela primeira vez em televisão, alguém referir-se à descoberta do Brasil em 1498 por Duarte Pacheco Pereira. Quem o fez foi Miguel Sousa Tavares, respondendo à pergunta final num programa da SIC-Notícias, chamado "Conversas Improváveis".

O incidente é isolado e nada tem de especial, para além de ir completamente contra a versão oficial, que atribui o relato de descoberta à viagem de Pedro Álvares Cabral em 1500.
A tese deveria ser largamente conhecida desde a publicação do Esmeraldo de Situ Orbis em 1892, por Raphael Basto, conservador da Torre do Tombo. Mais conhecida ainda quando Jorge Couto em 1995 sustentou a tese dessa descoberta anterior, com documentação adicional. Jorge Couto é uma figura reconhecida, tendo sido presidente do Instituto Camões e director da Biblioteca Nacional (2005-2011).
No entanto, apesar disso, que eu saiba, a tese de 1500 nunca foi beliscada em comunicações públicas, para uma larga plateia, por exemplo em televisão. Assim, a demonstração por Jorge Couto da viagem de Duarte Pacheco Pereira, em 1498, passa ao lado do folclore oficial, e de todo o comentário ou discussão, ao longo dos últimos 20 anos. Nada de estranhar, pois já teria passado ao lado da discussão do grande público durante todo o Séc. XX. Afinal, passam já 120 anos desde a publicação por Raphael Basto, que confrontou dois exemplares do Esmeraldo de Situ Orbis. Os exemplares estavam incompletos, sem nenhum dos 16 mapas (vistos na biblioteca dos Marqueses de Abrantes), e aparentemente em Setembro de 1844, para além da lei sobre funerais que originou depois a Revolta da Maria da Fonte, também houve uma portaria que retirou o livro da Biblioteca de Évora.
O detalhe da descoberta do Brasil em 1498, inscrito no livro, não passou obviamente despercebido, pois é referido pelo próprio inspector em 1891, na primeira página.

A afirmação que Duarte Pacheco Pereira dirige a D. Manuel é esta:
(...) alem do que dito é, a experiência que é madre das coisas nos desengana & de toda duvida nos tira & portanto bem aventurado Principe temos sabido & visto como no terceiro ano de vosso Reinado do ano de nosso senhor de mil quatrocentos noventa & oito donde nos vossa alteza mandou descobrir a parte ocidental passando alem a grandeza do mar oceano onde é achada & navegada uma tão grande terra firme com muitas & grandes ilhas adjacentes a ela que se estende a setenta graus de ladeza da linha equinocial contra o polo artico  & posto que seja assaz fora é grandemente pauorada, & do mesmo circulo equinocial toma outra vez & vai além em vinte & oito graus & meio de ladeza contra o polo antartico (...)

Fica completamente claro que Duarte Pacheco Pereira ao referir-se a uma extensão de terra firme que vai da latitude 70ºN (Gronelândia, Norte do Canadá) a 28ºS (Rio Grande do Sul, Brasil), dá logo no ano de 1506 uma informação demasiado detalhada sobre o que se conhecia da América. Aliás, dá informações precisas sobre a parte da América que estaria destinada dentro do Hemisfério português, de acordo com o Tratado de Tordesilhas. Isto praticamente mostra que o conhecimento do continente americano era completo, antes mesmo do nome América ter sido associado a Alberico Vespúcio. Dizer que 1498 é a data da primeira viagem ao Brasil apenas peca por ser tão escasso quanto tudo o que esconde essa afirmação e que Duarte Pacheco Pereira revela.

Quando falei do Esmeraldo de Situ Orbis, em 17 de Dezembro de 2009, no Knol da Google, escrevi o seguinte:

Duarte Pacheco Pereira não tem problema em atribuir navegações, para o contorno costeiro de África - aos gregos e fenícios... e até se atribuem navegações atlânticas aos fenícios!
Porquê?... porque isso não era nada, comparado com as navegações nacionais!
Duarte Pacheco Pereira, no seu "Esmeraldo de Situ Orbis", é bastante claro a esse respeito... mas também diz que teve o cuidado de preparar essa obra convenientemente, pois D. Manuel quereria "fiar-se" do que iria escrever... e, mesmo assim, a obra esteve perdida até ao Séc. XIX.
Tem um pequeno descuido, onde diz explicitamente que navegou para o Brasil, a mando de D. Manuel em 1498, mas isso é um detalhe sem qualquer importância, face a tudo o resto que nos consegue dizer - para quem o queira ler a sério!

Nessa altura procurei ligar a descrição da Costa de África à descrição da Costa Americana
Paralelismo África-América (Tese de Alvor-Silves, Dezembro 2009)

Vim na altura a saber (pelo José Manuel-CH) que a Duquesa de Medina-Sidonia, Luisa Alvarez de Toledo tinha argumentado no mesmo sentido no livro Africa versus America.

Provavelmente, caso fosse hoje, nem teria escrito nada acerca desse paralelismo... simplesmente porque é difícil sustentar a tese baseando-nos apenas na leitura de textos antigos, já que facilmente se poderá contra-argumentar que se tratam de coincidências interpretativas, sem usar outras provas.
Se usei aqui muitas interpretações, e fui avançando com diversas possibilidades, elas foram sendo sustentadas cada vez mais em citações literais, e factos documentais. Inicialmente não fazia ideia de que existisse tanta matéria "escondida com o rabo de fora", e por isso ainda procurava estabelecer relações fugazes, que pouco a pouco deixaram de ser fugazes... 

Quebrada a confiança com o conhecimento oficial, aquilo que escrevi sofre de toda a incerteza sobre as fontes e sobre a interpretação que fazemos delas. As diversas hipóteses que fui escrevendo resultam de tentativas parciais de encontrar nexo lógico, sem desacreditar tudo o que nos foi transmitido. O formato de blog tem a vantagem de não pretender ser mais do que uma interpretação escrita naquela data, em face da conjugação dos diversos dados acumulados, procurando focar mais no nexo lógico global do que no detalhes contraditórios.
Afinal, o que podemos saber resulta apenas do que nos é dado a saber... nada mais do que isso.
A maioria dos textos a que temos acesso é posterior à Idade Média, e muito tempo terá havido para definir o conhecimento que se divulgaria e o que iria ser ocultado. O povo nasce órfão de informação antiga... mal conhecemos os nomes dos trisavós, e poucas famílias passaram no seu seio histórias anteriores ao Séc. XIX. A partir daí fica só a confiança na cultura comum aprendida na escola formadora de mentes... Mesmo sobre monumentos/livros, devemos contar com reconstruções/ reedições, com a boa-fé dos criadores/autores, etc.
Quebrada a confiança, a grande certeza é a incerteza... e se dela não se livra o povo, órfão de antigos legados familiares, também não estarão muito mais seguros os depositários de conhecimento mais antigo. Afinal, têm que contar que a informação nunca foi alterada, coisa algo difícil de assumir mesmo em casas reais europeias, cujo legado teve múltiplas oscilações, e dificilmente chega ao Séc. X d.C. Indo mais longe, o registo perde-se nos legados religiosos. 
De qualquer forma, esquecendo o encobrimento nas descobertas arqueológicas, não há aparentemente um registo fiável para além das civilizações egípcias ou mesopotâmicas... como se os nossos anteriores antepassados nada nos tivessem querido deixar de importante. 
E, no entanto, em todos os povos parece ter havido a necessidade de transmitir um legado, não tanto uma história factual, mas antes uma tradição cultural religiosa, cujo significado primeiro se perdeu. A excepção parece ser a tradição hebraica, já que o Velho Testamento engloba também uma história do povo.
Vemos assim que o conhecimento que foi passando, não apagado entre gerações, foi uma mensagem religiosa autorizada. As histórias de heróis deveriam ser igualmente populares, mas retirando personagens divinos, poucas ficaram nos mitos, e talvez Hércules seja a excepção humana.
As novas gerações nasciam com conhecimento restrito, com pouco mais do que recebiam dos pais,  quase ignorando os avós. Quando isso acontece a evolução é normalmente pequena, e os jovens arriscam a fazer apenas uma repetição do percurso dos progenitores, sem acumular inovação no conhecimento. Isso seria tanto mais efectivo quanto as imposições religiosas visassem condicionar o progresso do conhecimento. A motivação poderia ser simplesmente manter o maior conhecimento na pequena elite reinante, para facilitar o controlo. No entanto, essa estagnação cultural funciona localmente, permite manter uma elite tribal, pelas condicionantes e proibições, mas não aguenta o embate com outra civilização em que o progresso de conhecimento seja mais valorizado e generalizado. Basta ver que em pouco mais de 200 anos de difusão de conhecimento, passámos de carruagens para aviões e foguetões....
Na tentativa de preservar a ordem, mantendo a habitual distância entre o conhecimento da elite e o conhecimento popular, compromete-se o progresso e a sociedade cairá no vício de estagnação, alimentado por sucessivas imposições e proibições, tal como nas primitivas sociedades tribais condicionadas pela religiosidade e tradição cultural fechada.

No santuário de Delfos haveria a inscrição "conhece-te a ti mesmo"... e sem dúvida que esse é o primeiro passo do homem, mas depois deve ser aplicado aos homens em conjunto, na sua unidade de conhecimento. 
Enquanto não percebermos o que fomos, o que nos condicionou e condiciona, dificilmente podemos definir o que devemos ser, funcionando como uma hidra insana... com múltiplas cabeças não coordenadas, competindo pelo controlo do mesmo corpo.
Temos até um exemplo interno... se os nossos hemisférios cerebrais direito e esquerdo funcionassem isoladamente e competitivamente, desconfiando um do outro, mentindo um ao outro... alguma vez teríamos tido sucesso enquanto organismo?

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 04:43

Ao fim de muito tempo, vi ontem, pela primeira vez em televisão, alguém referir-se à descoberta do Brasil em 1498 por Duarte Pacheco Pereira. Quem o fez foi Miguel Sousa Tavares, respondendo à pergunta final num programa da SIC-Notícias, chamado "Conversas Improváveis".

O incidente é isolado e nada tem de especial, para além de ir completamente contra a versão oficial, que atribui o relato de descoberta à viagem de Pedro Álvares Cabral em 1500.
A tese deveria ser largamente conhecida desde a publicação do Esmeraldo de Situ Orbis em 1892, por Raphael Basto, conservador da Torre do Tombo. Mais conhecida ainda quando Jorge Couto em 1995 sustentou a tese dessa descoberta anterior, com documentação adicional. Jorge Couto é uma figura reconhecida, tendo sido presidente do Instituto Camões e director da Biblioteca Nacional (2005-2011).
No entanto, apesar disso, que eu saiba, a tese de 1500 nunca foi beliscada em comunicações públicas, para uma larga plateia, por exemplo em televisão. Assim, a demonstração por Jorge Couto da viagem de Duarte Pacheco Pereira, em 1498, passa ao lado do folclore oficial, e de todo o comentário ou discussão, ao longo dos últimos 20 anos. Nada de estranhar, pois já teria passado ao lado da discussão do grande público durante todo o Séc. XX. Afinal, passam já 120 anos desde a publicação por Raphael Basto, que confrontou dois exemplares do Esmeraldo de Situ Orbis. Os exemplares estavam incompletos, sem nenhum dos 16 mapas (vistos na biblioteca dos Marqueses de Abrantes), e aparentemente em Setembro de 1844, para além da lei sobre funerais que originou depois a Revolta da Maria da Fonte, também houve uma portaria que retirou o livro da Biblioteca de Évora.
O detalhe da descoberta do Brasil em 1498, inscrito no livro, não passou obviamente despercebido, pois é referido pelo próprio inspector em 1891, na primeira página.

A afirmação que Duarte Pacheco Pereira dirige a D. Manuel é esta:
(...) alem do que dito é, a experiência que é madre das coisas nos desengana & de toda duvida nos tira & portanto bem aventurado Principe temos sabido & visto como no terceiro ano de vosso Reinado do ano de nosso senhor de mil quatrocentos noventa & oito donde nos vossa alteza mandou descobrir a parte ocidental passando alem a grandeza do mar oceano onde é achada & navegada uma tão grande terra firme com muitas & grandes ilhas adjacentes a ela que se estende a setenta graus de ladeza da linha equinocial contra o polo artico  & posto que seja assaz fora é grandemente pauorada, & do mesmo circulo equinocial toma outra vez & vai além em vinte & oito graus & meio de ladeza contra o polo antartico (...)

Fica completamente claro que Duarte Pacheco Pereira ao referir-se a uma extensão de terra firme que vai da latitude 70ºN (Gronelândia, Norte do Canadá) a 28ºS (Rio Grande do Sul, Brasil), dá logo no ano de 1506 uma informação demasiado detalhada sobre o que se conhecia da América. Aliás, dá informações precisas sobre a parte da América que estaria destinada dentro do Hemisfério português, de acordo com o Tratado de Tordesilhas. Isto praticamente mostra que o conhecimento do continente americano era completo, antes mesmo do nome América ter sido associado a Alberico Vespúcio. Dizer que 1498 é a data da primeira viagem ao Brasil apenas peca por ser tão escasso quanto tudo o que esconde essa afirmação e que Duarte Pacheco Pereira revela.

Quando falei do Esmeraldo de Situ Orbis, em 17 de Dezembro de 2009, no Knol da Google, escrevi o seguinte:

Duarte Pacheco Pereira não tem problema em atribuir navegações, para o contorno costeiro de África - aos gregos e fenícios... e até se atribuem navegações atlânticas aos fenícios!
Porquê?... porque isso não era nada, comparado com as navegações nacionais!
Duarte Pacheco Pereira, no seu "Esmeraldo de Situ Orbis", é bastante claro a esse respeito... mas também diz que teve o cuidado de preparar essa obra convenientemente, pois D. Manuel quereria "fiar-se" do que iria escrever... e, mesmo assim, a obra esteve perdida até ao Séc. XIX.
Tem um pequeno descuido, onde diz explicitamente que navegou para o Brasil, a mando de D. Manuel em 1498, mas isso é um detalhe sem qualquer importância, face a tudo o resto que nos consegue dizer - para quem o queira ler a sério!

Nessa altura procurei ligar a descrição da Costa de África à descrição da Costa Americana
Paralelismo África-América (Tese de Alvor-Silves, Dezembro 2009)

Vim na altura a saber (pelo José Manuel-CH) que a Duquesa de Medina-Sidonia, Luisa Alvarez de Toledo tinha argumentado no mesmo sentido no livro Africa versus America.

Provavelmente, caso fosse hoje, nem teria escrito nada acerca desse paralelismo... simplesmente porque é difícil sustentar a tese baseando-nos apenas na leitura de textos antigos, já que facilmente se poderá contra-argumentar que se tratam de coincidências interpretativas, sem usar outras provas.
Se usei aqui muitas interpretações, e fui avançando com diversas possibilidades, elas foram sendo sustentadas cada vez mais em citações literais, e factos documentais. Inicialmente não fazia ideia de que existisse tanta matéria "escondida com o rabo de fora", e por isso ainda procurava estabelecer relações fugazes, que pouco a pouco deixaram de ser fugazes... 

Quebrada a confiança com o conhecimento oficial, aquilo que escrevi sofre de toda a incerteza sobre as fontes e sobre a interpretação que fazemos delas. As diversas hipóteses que fui escrevendo resultam de tentativas parciais de encontrar nexo lógico, sem desacreditar tudo o que nos foi transmitido. O formato de blog tem a vantagem de não pretender ser mais do que uma interpretação escrita naquela data, em face da conjugação dos diversos dados acumulados, procurando focar mais no nexo lógico global do que no detalhes contraditórios.
Afinal, o que podemos saber resulta apenas do que nos é dado a saber... nada mais do que isso.
A maioria dos textos a que temos acesso é posterior à Idade Média, e muito tempo terá havido para definir o conhecimento que se divulgaria e o que iria ser ocultado. O povo nasce órfão de informação antiga... mal conhecemos os nomes dos trisavós, e poucas famílias passaram no seu seio histórias anteriores ao Séc. XIX. A partir daí fica só a confiança na cultura comum aprendida na escola formadora de mentes... Mesmo sobre monumentos/livros, devemos contar com reconstruções/ reedições, com a boa-fé dos criadores/autores, etc.
Quebrada a confiança, a grande certeza é a incerteza... e se dela não se livra o povo, órfão de antigos legados familiares, também não estarão muito mais seguros os depositários de conhecimento mais antigo. Afinal, têm que contar que a informação nunca foi alterada, coisa algo difícil de assumir mesmo em casas reais europeias, cujo legado teve múltiplas oscilações, e dificilmente chega ao Séc. X d.C. Indo mais longe, o registo perde-se nos legados religiosos. 
De qualquer forma, esquecendo o encobrimento nas descobertas arqueológicas, não há aparentemente um registo fiável para além das civilizações egípcias ou mesopotâmicas... como se os nossos anteriores antepassados nada nos tivessem querido deixar de importante. 
E, no entanto, em todos os povos parece ter havido a necessidade de transmitir um legado, não tanto uma história factual, mas antes uma tradição cultural religiosa, cujo significado primeiro se perdeu. A excepção parece ser a tradição hebraica, já que o Velho Testamento engloba também uma história do povo.
Vemos assim que o conhecimento que foi passando, não apagado entre gerações, foi uma mensagem religiosa autorizada. As histórias de heróis deveriam ser igualmente populares, mas retirando personagens divinos, poucas ficaram nos mitos, e talvez Hércules seja a excepção humana.
As novas gerações nasciam com conhecimento restrito, com pouco mais do que recebiam dos pais,  quase ignorando os avós. Quando isso acontece a evolução é normalmente pequena, e os jovens arriscam a fazer apenas uma repetição do percurso dos progenitores, sem acumular inovação no conhecimento. Isso seria tanto mais efectivo quanto as imposições religiosas visassem condicionar o progresso do conhecimento. A motivação poderia ser simplesmente manter o maior conhecimento na pequena elite reinante, para facilitar o controlo. No entanto, essa estagnação cultural funciona localmente, permite manter uma elite tribal, pelas condicionantes e proibições, mas não aguenta o embate com outra civilização em que o progresso de conhecimento seja mais valorizado e generalizado. Basta ver que em pouco mais de 200 anos de difusão de conhecimento, passámos de carruagens para aviões e foguetões....
Na tentativa de preservar a ordem, mantendo a habitual distância entre o conhecimento da elite e o conhecimento popular, compromete-se o progresso e a sociedade cairá no vício de estagnação, alimentado por sucessivas imposições e proibições, tal como nas primitivas sociedades tribais condicionadas pela religiosidade e tradição cultural fechada.

No santuário de Delfos haveria a inscrição "conhece-te a ti mesmo"... e sem dúvida que esse é o primeiro passo do homem, mas depois deve ser aplicado aos homens em conjunto, na sua unidade de conhecimento. 
Enquanto não percebermos o que fomos, o que nos condicionou e condiciona, dificilmente podemos definir o que devemos ser, funcionando como uma hidra insana... com múltiplas cabeças não coordenadas, competindo pelo controlo do mesmo corpo.
Temos até um exemplo interno... se os nossos hemisférios cerebrais direito e esquerdo funcionassem isoladamente e competitivamente, desconfiando um do outro, mentindo um ao outro... alguma vez teríamos tido sucesso enquanto organismo?

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 04:43

Ao fim de muito tempo, vi ontem, pela primeira vez em televisão, alguém referir-se à descoberta do Brasil em 1498 por Duarte Pacheco Pereira. Quem o fez foi Miguel Sousa Tavares, respondendo à pergunta final num programa da SIC-Notícias, chamado "Conversas Improváveis".

O incidente é isolado e nada tem de especial, para além de ir completamente contra a versão oficial, que atribui o relato de descoberta à viagem de Pedro Álvares Cabral em 1500.
A tese deveria ser largamente conhecida desde a publicação do Esmeraldo de Situ Orbis em 1892, por Raphael Basto, conservador da Torre do Tombo. Mais conhecida ainda quando Jorge Couto em 1995 sustentou a tese dessa descoberta anterior, com documentação adicional. Jorge Couto é uma figura reconhecida, tendo sido presidente do Instituto Camões e director da Biblioteca Nacional (2005-2011).
No entanto, apesar disso, que eu saiba, a tese de 1500 nunca foi beliscada em comunicações públicas, para uma larga plateia, por exemplo em televisão. Assim, a demonstração por Jorge Couto da viagem de Duarte Pacheco Pereira, em 1498, passa ao lado do folclore oficial, e de todo o comentário ou discussão, ao longo dos últimos 20 anos. Nada de estranhar, pois já teria passado ao lado da discussão do grande público durante todo o Séc. XX. Afinal, passam já 120 anos desde a publicação por Raphael Basto, que confrontou dois exemplares do Esmeraldo de Situ Orbis. Os exemplares estavam incompletos, sem nenhum dos 16 mapas (vistos na biblioteca dos Marqueses de Abrantes), e aparentemente em Setembro de 1844, para além da lei sobre funerais que originou depois a Revolta da Maria da Fonte, também houve uma portaria que retirou o livro da Biblioteca de Évora.
O detalhe da descoberta do Brasil em 1498, inscrito no livro, não passou obviamente despercebido, pois é referido pelo próprio inspector em 1891, na primeira página.

A afirmação que Duarte Pacheco Pereira dirige a D. Manuel é esta:
(...) alem do que dito é, a experiência que é madre das coisas nos desengana & de toda duvida nos tira & portanto bem aventurado Principe temos sabido & visto como no terceiro ano de vosso Reinado do ano de nosso senhor de mil quatrocentos noventa & oito donde nos vossa alteza mandou descobrir a parte ocidental passando alem a grandeza do mar oceano onde é achada & navegada uma tão grande terra firme com muitas & grandes ilhas adjacentes a ela que se estende a setenta graus de ladeza da linha equinocial contra o polo artico  & posto que seja assaz fora é grandemente pauorada, & do mesmo circulo equinocial toma outra vez & vai além em vinte & oito graus & meio de ladeza contra o polo antartico (...)

Fica completamente claro que Duarte Pacheco Pereira ao referir-se a uma extensão de terra firme que vai da latitude 70ºN (Gronelândia, Norte do Canadá) a 28ºS (Rio Grande do Sul, Brasil), dá logo no ano de 1506 uma informação demasiado detalhada sobre o que se conhecia da América. Aliás, dá informações precisas sobre a parte da América que estaria destinada dentro do Hemisfério português, de acordo com o Tratado de Tordesilhas. Isto praticamente mostra que o conhecimento do continente americano era completo, antes mesmo do nome América ter sido associado a Alberico Vespúcio. Dizer que 1498 é a data da primeira viagem ao Brasil apenas peca por ser tão escasso quanto tudo o que esconde essa afirmação e que Duarte Pacheco Pereira revela.

Quando falei do Esmeraldo de Situ Orbis, em 17 de Dezembro de 2009, no Knol da Google, escrevi o seguinte:

Duarte Pacheco Pereira não tem problema em atribuir navegações, para o contorno costeiro de África - aos gregos e fenícios... e até se atribuem navegações atlânticas aos fenícios!
Porquê?... porque isso não era nada, comparado com as navegações nacionais!
Duarte Pacheco Pereira, no seu "Esmeraldo de Situ Orbis", é bastante claro a esse respeito... mas também diz que teve o cuidado de preparar essa obra convenientemente, pois D. Manuel quereria "fiar-se" do que iria escrever... e, mesmo assim, a obra esteve perdida até ao Séc. XIX.
Tem um pequeno descuido, onde diz explicitamente que navegou para o Brasil, a mando de D. Manuel em 1498, mas isso é um detalhe sem qualquer importância, face a tudo o resto que nos consegue dizer - para quem o queira ler a sério!

Nessa altura procurei ligar a descrição da Costa de África à descrição da Costa Americana
Paralelismo África-América (Tese de Alvor-Silves, Dezembro 2009)

Vim na altura a saber (pelo José Manuel-CH) que a Duquesa de Medina-Sidonia, Luisa Alvarez de Toledo tinha argumentado no mesmo sentido no livro Africa versus America.

Provavelmente, caso fosse hoje, nem teria escrito nada acerca desse paralelismo... simplesmente porque é difícil sustentar a tese baseando-nos apenas na leitura de textos antigos, já que facilmente se poderá contra-argumentar que se tratam de coincidências interpretativas, sem usar outras provas.
Se usei aqui muitas interpretações, e fui avançando com diversas possibilidades, elas foram sendo sustentadas cada vez mais em citações literais, e factos documentais. Inicialmente não fazia ideia de que existisse tanta matéria "escondida com o rabo de fora", e por isso ainda procurava estabelecer relações fugazes, que pouco a pouco deixaram de ser fugazes... 

Quebrada a confiança com o conhecimento oficial, aquilo que escrevi sofre de toda a incerteza sobre as fontes e sobre a interpretação que fazemos delas. As diversas hipóteses que fui escrevendo resultam de tentativas parciais de encontrar nexo lógico, sem desacreditar tudo o que nos foi transmitido. O formato de blog tem a vantagem de não pretender ser mais do que uma interpretação escrita naquela data, em face da conjugação dos diversos dados acumulados, procurando focar mais no nexo lógico global do que no detalhes contraditórios.
Afinal, o que podemos saber resulta apenas do que nos é dado a saber... nada mais do que isso.
A maioria dos textos a que temos acesso é posterior à Idade Média, e muito tempo terá havido para definir o conhecimento que se divulgaria e o que iria ser ocultado. O povo nasce órfão de informação antiga... mal conhecemos os nomes dos trisavós, e poucas famílias passaram no seu seio histórias anteriores ao Séc. XIX. A partir daí fica só a confiança na cultura comum aprendida na escola formadora de mentes... Mesmo sobre monumentos/livros, devemos contar com reconstruções/ reedições, com a boa-fé dos criadores/autores, etc.
Quebrada a confiança, a grande certeza é a incerteza... e se dela não se livra o povo, órfão de antigos legados familiares, também não estarão muito mais seguros os depositários de conhecimento mais antigo. Afinal, têm que contar que a informação nunca foi alterada, coisa algo difícil de assumir mesmo em casas reais europeias, cujo legado teve múltiplas oscilações, e dificilmente chega ao Séc. X d.C. Indo mais longe, o registo perde-se nos legados religiosos. 
De qualquer forma, esquecendo o encobrimento nas descobertas arqueológicas, não há aparentemente um registo fiável para além das civilizações egípcias ou mesopotâmicas... como se os nossos anteriores antepassados nada nos tivessem querido deixar de importante. 
E, no entanto, em todos os povos parece ter havido a necessidade de transmitir um legado, não tanto uma história factual, mas antes uma tradição cultural religiosa, cujo significado primeiro se perdeu. A excepção parece ser a tradição hebraica, já que o Velho Testamento engloba também uma história do povo.
Vemos assim que o conhecimento que foi passando, não apagado entre gerações, foi uma mensagem religiosa autorizada. As histórias de heróis deveriam ser igualmente populares, mas retirando personagens divinos, poucas ficaram nos mitos, e talvez Hércules seja a excepção humana.
As novas gerações nasciam com conhecimento restrito, com pouco mais do que recebiam dos pais,  quase ignorando os avós. Quando isso acontece a evolução é normalmente pequena, e os jovens arriscam a fazer apenas uma repetição do percurso dos progenitores, sem acumular inovação no conhecimento. Isso seria tanto mais efectivo quanto as imposições religiosas visassem condicionar o progresso do conhecimento. A motivação poderia ser simplesmente manter o maior conhecimento na pequena elite reinante, para facilitar o controlo. No entanto, essa estagnação cultural funciona localmente, permite manter uma elite tribal, pelas condicionantes e proibições, mas não aguenta o embate com outra civilização em que o progresso de conhecimento seja mais valorizado e generalizado. Basta ver que em pouco mais de 200 anos de difusão de conhecimento, passámos de carruagens para aviões e foguetões....
Na tentativa de preservar a ordem, mantendo a habitual distância entre o conhecimento da elite e o conhecimento popular, compromete-se o progresso e a sociedade cairá no vício de estagnação, alimentado por sucessivas imposições e proibições, tal como nas primitivas sociedades tribais condicionadas pela religiosidade e tradição cultural fechada.

No santuário de Delfos haveria a inscrição "conhece-te a ti mesmo"... e sem dúvida que esse é o primeiro passo do homem, mas depois deve ser aplicado aos homens em conjunto, na sua unidade de conhecimento. 
Enquanto não percebermos o que fomos, o que nos condicionou e condiciona, dificilmente podemos definir o que devemos ser, funcionando como uma hidra insana... com múltiplas cabeças não coordenadas, competindo pelo controlo do mesmo corpo.
Temos até um exemplo interno... se os nossos hemisférios cerebrais direito e esquerdo funcionassem isoladamente e competitivamente, desconfiando um do outro, mentindo um ao outro... alguma vez teríamos tido sucesso enquanto organismo?

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publicado às 20:43

Peça por Peça

18.09.11
- Uma Peça, de Teatro Isabelino: - The Battle of Alcazar, de George Peele (1591)
Peça por outra peça - e do pedido sai nova peça:
- Uma Peça, de Teatro Carolino: - Believe as you list, de Philip Massinger (1631).

Há mais peças... e peça por peça vão colando uma história diversa, neste caso de D. Sebastião.

Em 13 de Dezembro de 2009 foi iniciado o tópico Alvor-Silves com um texto sobre D. Sebastião, que seria o primeiro de sete textos, finalizados a 31... Alguns argumentos colocados nesse texto inicial podiam ser considerados especulativos, e acabei por deixar cair parcialmente o assunto.

Não deixa de ser coincidência que D. João de Áustria desapareça, tal como D. Sebastião, no ano de 1578!
Ambos eram jovens, ver-se-iam como guerreiros no modelo de Aquiles, e o brilhante cometa que apareceu no início desse ano (mais precisamente entre Novembro de 1577 e Janeiro de 1578), concretizaria alguns presságios de sorte funesta.

Sebastião foi levado no coração da batalha, João de Áustria foi levado pelo tifo... mas que necessidade haveria de dissecar o corpo do herói de Lepanto, no transporte para o Escorial, sendo só depois juntadas as partes? Recebia ambos os corpos, Filipe II, irmão de João e tio de Sebastião.

D. João de Áustria, morto em 1578

Acerca de Lepanto, que em 1571 terá catapultado D. João de Áustria para a celebridade, o Grão-Vizir de Selim II, Mahamet Sokulu, terá afirmado:  
- Ao tomarmos Chipre, ficaram sem um braço, enquanto ao derrotarem a nossa armada [em Lepanto], só apararam a nossa barba

Foi desta forma que os Otomanos desvalorizaram o resultado de Lepanto.
A Sagrada Aliança, que reunia o Império Habsburgo Espanhol, Veneza e Génova, a Savóia, Malta e os Estados Papais, tinha vencido os Otomanos, mas dificilmente essa vitória permitira alterar a disposição das peças no terreno... e Chipre teria caído definitivamente.

Numa luta que carregava o epíteto sagrado, seria natural ver um "fervoroso rei católico" juntar as forças nacionais nesse empreendimento pela cristandade. Porém, não será esse rei D. Sebastião, que já governava o reino há três anos. O rei de Portugal não estará representado na coligação naval de Lepanto. Convém notar que o Infante D. Luís (tio de D. Sebastião) tinha estado presente na Conquista de Tunis, em 1535, comandada por Carlos V, pai de Filipe II. Era habitual uma colaboração cristã contra os otomanos...

Quando falha a potência militar, entra em jogo a diplomacia... os acordos em jogos de bastidores.
Se Lepanto não travava a expansão Otomana já consolidada na Europa, por onde poderia ela progredir sem apoquentar mais os Estados Italianos e Austríacos? 
- Um caminho claro seriam os outros estados islâmicos do Norte de África.
Assim, apesar do resultado de Lepanto, três anos depois, em 1574, a cidade de Tunis volta a cair em mãos otomanas.
Será neste contexto que aparece a ameaça de implantação otomana em Marrocos, e consequente perturbação da vizinhança ibérica, não apenas nas navegações, mas até num eventual reeditar de desembarques muçulmanos - a queda de Granada faria em breve um século e seria natural inflamar um espírito de reconquista pelo outro lado.

Se D. Sebastião pareceu preocupado com o problema, a ponto de oferecer ajuda a Mulei Mohamed, já Filipe II pareceu negligenciar a ameaça turca das suas fronteiras a sul.
Convém notar que num avanço dessa forma, os primeiros pontos vulneráveis seriam as possessões espanholas no Norte de África. Tunis fora logo perdida em 1574, mas havia várias outras... antes de chegar aos fortes portugueses, que começavam apenas em Ceuta.

Uma derrota pesada, que envolveu a morte do Rei, deixaria as possessões portuguesas em Marrocos como desígnio apetecível de embalo na reconquista. Porém, com Filipe II no trono português esse perigo muçulmano sob influência turca nunca se efectivou... aliás Filipe II será particularmente expediente na forma como irá tratar de aparecer como parte intermédia na resolução do problema de resgate dos sobreviventes de Alcácer-Quibir.

Os contactos de Filipe II com o lado vencedor na contenda de Alcácer-Quibir são particularmente proveitosos. Às expensas de fortunas enviadas para este intermediário no resgate, regressa alguma da nobreza e fidalguia nacional. Aparece como salvador de famílias dos cárceres dos infiéis, e certamente que tais famílias lhe ficam gratas apesar das somas dispendidas. Um dos prisioneiros resgatados era o Conde de Barcelos, filho do Duque de Bragança... tinha então apenas 10 anos de idade.
Os franceses chamavam a Filipe II "demónio do meio-dia"... mas não foi assim encarado em Lisboa, e a prova disso foi a Monumentalia Filipina - dezenas de grandes Arcos de Triunfo erigidos em Lisboa em 1581 (... dos quais nenhum sobreviveu!). A reacção da fidalguia à invasão filipina foi muito moderada, como pôde constatar o Prior do Crato... que teve entre os portugueses os seus principais amigos de Peniche!

Quando falamos de Filipe II, de D. Sebastião, e de D. João de Áustria, convém não esquecer o problema interno que se desenrolava em Espanha, entre Albistas e Ebolistas!
Esta luta interna, nos meandros da corte espanhola, teve uma clara vitória pelo lado Albista, do Duque de Alba, afinal o vencedor contra D. António. Do lado dos Ebolistas, e como Rui Gomes morre em 1573, será a sua jovem mulher, a notável Ana Mendonza de La Cerda, que procurará liderar o partido do seu marido - um português da Chamusca que, de tutor de Filipe II, ascendeu a Príncipe de Eboli, e Duque de Pastrana.

Ana de Mendonza y de La Cerda, Princesa de Eboli, com o devido olhar.  

A Princesa de Eboli acabou por ser denunciada em conspiração com Antonio Perez, sendo presa em 1579... estavam abertas todas as portas para a anexação portuguesa que o rival Duque de Alba concretizou no ano seguinte. O motivo principal da acusação seria a morte do secretário de D. João de Áustria, em Março de 1578, mas ligava-se primeiro o problema de D. Sebastião e depois o da sucessão,  que envolviam "segredos de estado".  

As versões que dispomos tiveram de sobreviver à forte censura que imperou nos reinados filipinos.
Não apenas nessas regências... afinal é sabido que o Marquês de Pombal fez queimar publicações que evidenciassem um teor sebastianista! 
Foi mesmo um pouco mais longe... sendo claro que o Duque de Aveiro e os Távoras foram protagonistas ao lado de D. Sebastião em batalha, foram também esses as vítimas principais do Processo de 1758, que condenou essas famílias a uma cruel execução pública.
- Coincidência?... Para quem gosta de numerologia, reparará ainda que 1578 e 1758 têm os mesmos dígitos!
Para quem não gosta, é claro que a Casa de Bragança não foi uma escolha consensual na Restauração!
Estaria demasiado ligada ao partido de Filipe II, a quem Catarina de Bragança acabou por abdicar o direito do trono, e essa foi também a Casa que mais beneficiou sob domínio filipino. 
D. João IV teve pois que admitir abdicar num eventual regresso de D. Sebastião. O episódio de Luísa de Gusmão, preferindo ser "Rainha por um dia...", reflecte implicitamente a parte da Casa onde Portugal queria rever-se. Não era na linha do anterior Duque de Bragança - que tomado por febres, se tinha escusado a partir com o Rei.... seria talvez mais na linha de Luísa, a bisneta da Princesa de Eboli.
O Duque de Aveiro ainda era, à época do Marquês de Pombal, um candidato ao trono, pela linha mais antiga... que vinha da descendência de D. João II pelo filho D. Jorge, preterido a D. Manuel.
As três casas ducais formadas por Afonso V, ou seja Coimbra, Viseu e Bragança... tinham-se enfrentado desde a Batalha de Alfarrobeira. 
E se o ducado de Viseu foi vencedor na sucessão de D. João II, obrigando o ducado de Coimbra a mudar de nome para Aveiro; após a extinção da linha com D. Sebastião, a sucessão pela via de D. Jorge permaneceu como ameaça à casa de Bragança até à execução definida em 1758. O problema era de tal forma evidente que o filho do Duque de Aveiro só escapou à morte com a promessa de não ter sucessores. 


Prisioneiro de Veneza
Por isso, é importante encontrar registos um pouco mais longínquos... na Inglaterra!
Há uma excelente compilação de escritos (que encontrei agora), publicada em 1985, pelo Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, do Ministério da Educação:
D. Sebastião na Literatura Inglesa
... e parece ser um dos poucos registos onde se fala das importantes obras inglesas que abordaram o assunto da Batalha de Alcácer-Quibir e do destino de D. Sebastião.

Uma dessas obras é Believe as you list, de Philip Massinger (1631), que foi censurada!
"Acreditem enquanto ouvem" só teve autorização de publicação depois do autor mudar por completo o enquadramento! Ao invés de falar do reaparecimento de D. Sebastião, colocou-o como reaparecimento de Antíoco, rei da Síria no Séc. II a.C.

O motivo da peça era o aparecimento de D. Sebastião enquanto o "Cavaleiro da Cruz", em Veneza, em Junho de 1598. Consegue convencer portugueses aí sediados, e por isso o homem é preso pelo Doge de Veneza em Novembro de 1598, a pedido do embaixador espanhol. É libertado por intervenção do filho do Prior do Crato, e consegue escapar até Florença onde volta a ser preso pelo Duque da Toscana, mais uma vez a pedido do embaixador espanhol. É visitado pelo Conde de Lemos em 1601, mas acaba por ser primeiro condenado perpetuamente às galés e finalmente executado em 1603. 
Esta história contada por Frei José Teixeira e usada por Massinger, está bem documentada no artigo de Isabel Oliveira Martins (ver pág. 121-145), incluso no dito livro de 1985.

É claro que o "Prisioneiro de Veneza"(*) aparenta ser apenas mais um caso de reaparcimento, após os de Penamacor, Ericeira e Madrigal, com desfecho funesto para os pretendentes. Havendo interesses em depor a linha espanhola, também é natural pensar que alguns portugueses alinhassem nesta solução alternativa. O prisioneiro de Veneza, talvez um certo Marco Tulio Catizone, acabou por ter repercursão ao ponto da peça ter sido proibida no reinado de Carlos I, rei inglês que teve depois destino igualmente funesto!


Moluco
Um aspecto que se mantém particularmente intrigante é a designação Mulei Moluco para Abd-al-Malik (ou Abdilmelec), especialmente se o conectarmos a um período em que as Ilhas Molucas estiveram sob disputa no Anti-Meridiano das Tordesilhas, desde D. João III. 
A fundação de Manila após 1571, e subsequente renomeação daquelas ilhas como Filipinas, em honra a Filipe II, mostram que se mantinham questões territoriais a resolver naquela parte oriental, entre Filipe II e D. Sebastião. Essa questão é especialmente notória pela oferta dessas mesmas ilhas como dote da filha de Filipe II, se D. Sebastião tivesse aceite esse casamento! Porém, obstinadamente, D. Sebastião sempre recusou essa proposta de casamento espanhol.
As ilhas eram inicialmente denominadas Malucas, e a conotação do termo "Maluco" só tem um significado de loucura posteriormente. Convém a este propósito referir que, na Jornada de África, Jerónimo de Mendonça diz:
(...) e Mulei Audelmelic, vendo isto se passou ao Gram Turco, o qual vulgarmente se chama Mulei Moluco, porque sendo pequeno era tão afeiçoado aos Christãos, que seu pay lhe mandou fazer huma bragua d'ouro chea de muitas pedras ricas, e lha pôs hum dia chamando-lhe Moluco (como quem diz servo) donde lhe ficou o sobrenome tambem assentado, que muitos lhe não sabem o nome verdadeiro. Andou pois Mulei Molucco em Constantinopla muito tempo, sem poder alcançar socorro do Gram Turco contra seu sobrinho (como tambem del Rey de Espanha , não havia podido alcançar, fazendo primeiro os mesmos ofícios).
O significado de Moluco é assim explicado como sinónimo de "servo", e de forma clara é estabelecida a tentativa de contacto de Mulei Moluco ao rei de Espanha, antes de obter o apoio de Murad III, o Sultão Turco, que lhe concederá uma tropa de janízaros.

Portanto, o combate de D. Sebastião foi contra uma ameaça otomana, entretanto colorida como uma questiúncula interna de legitimidade de sucessão marroquina, por diversas interpretações testamentárias.
Se não há nada que aponte para uma participação espanhola contra a incursão portuguesa em Alcácer-Quibir, há muito que aponta para um combate directo contra uma coligação com forças otomanas em solo de Marrocos, e não apenas contra uma facção do exército marroquino. Pior do que isso, há algumas suspeitas sobre como uma batalha, aparentemente ganha numa primeira fase, e em que o próprio Mulei Moluco morre no seu decurso, se vai desenrolar com uma desastrosa descoordenação posterior, não do lado marroquino, mas sim indiciando problemas internos no lado português.

Foram à época colocadas dúvidas sobre o papel de Filipe II, sobre o conselho ao sobrinho de não participar, sobre a falha de envio de tropas, sobre a oferenda do Elmo que o pai, Carlos V, teria usado na Conquista de Tunis. Ou ainda, sobre o pedido do próprio Mulei Moluco a D. Sebastião, com o compromisso de não usar o apoio turco como ameaça às possessões portuguesas. Essas dúvidas podem fazer sentido, na sequência de acontecimentos, dado que Filipe II obteria vantagens com a vitória de D. Sebastião, ao afastar a ameaça turca... mas também com a derrota, pela sua pretensão à sucessão do trono português.
Porém, a derrota de D. Sebastião não afastaria a ameaça turca...
Onde ficou a ameaça turca após a derrota de Alcácer-Quibir?
Teria sido travada pelos marroquinos?
Pelo partido dos mesmos marroquinos que juravam fidelidade ao Sultão Murad III?
O plano de Filipe II só seria perfeito com uma prévia negociação com os turcos...

De facto, durante o período seguinte a Europa vai entrar numa grande guerra interna, a Guerra dos Trinta Anos... quase esquecendo a ameaça turca, ameaça que parece evaporar-se após Alcácer-Quibir.
Assim sendo, como não pensar num extenso acordo entre os beligerantes de Lepanto?
- Constatado o equilíbrio tácito, há uma certa aceitação da presença turca.
O espírito de Cruzada, de reconquista da Terra Santa tinha sido perdido por completo e a conquista de Jerusalém deixa de ter importância como tema europeu.
Curiosamente, os Otomanos ocupam o papel de Constantinopla... não apenas com a renomeação da capital para Istambul, também porque os seus domínios vão concentrar-se nos domínios do Império Romano do Oriente.
A Europa Ocidental parece assim conformar-se ao império ocidental e deixa o oriental para os Turcos.

O Quinto Império
O Império Ocidental era do tio, Filipe II, mas D. Sebastião ousa pela primeira vez colocar uma Coroa Imperial num rei português.


As coroas dos seus antecessores, mesmo de D. João II ou D. Manuel, tinham sido sempre abertas... em obediência a Roma e ao Sacro-Império, porém a atitude de D. Sebastião parece unilateral.
Tal atitude seria semelhante a uma cisão do Império Romano Ocidental, não passaria facilmente despercebida. Como o Sacro-Império será colocado em causa durante a Guerra dos Trinta Anos, a atitude poderá depois não ser tão notória, e até vista como uma questão de moda... mas o fecho da coroa significava implicitamente não estar sob o Sacro-Império.

A empresa de D. Sebastião é representada pela junção de vários componentes cristãos, que podemos ver na moeda seguinte:
Moeda de D. Sebastião

Há uma vieira sobre um peixe acima do mar, e uma lua (crescente) que abre sobre algumas estrelas (quatro aqui, embora haja quem desenhe 7 invocando a Ursa Maior... poderiam ser ainda as Pleiades).
Este símbolo pode ser encarado como uma reencarnação no seio do amor de Cristo, excepto no que se refere especificamente à configuração da Lua e estrelas.
O moto - Serena Celsa Favent... algo como o esclarecimento (ou a serenidade) favorece a excelência, parece sugerir que D. Sebastião, o Desejado, estava em sintonia com uma filosofia que o veria como executante escolhido para nova missão divina.

Essa mesma ideia de um Novo Império acaba por passar no mito que é gerado em torno do seu desaparecimento.
Conforme notado por alguns autores (ver Lucette Valensi), a batalha de Alcácer-Quibir não será alvo de efusivas comemorações pelo lado marroquino, apesar do seu aparente desfecho glorioso, e é ao contrário um símbolo de união portuguesa, em torno da ideia do Quinto Império.
É afinal uma derrota que parece motivar um desígnio imperial, nunca antes explícito!


Nesta ilustração podemos ver o pensamento dessa saudade sebastianista, nas frases:
Dois retratos vês q são.
Hum velho só na aparência
Do Rey D. SEBASTIÃO.
Repara q têm mistério
Pois a mão da Providência o guarda
Para o V Império
 
SI  VERA  EST  FAMA  SEBASTIUS
O Incoberto. Esperado. Sebastião. O dezejado.
O Quinto Império está alegoricamente representado na incompletude dos degraus da pirâmide... há quatro degraus bem definidos, e um quinto malforme que se parecia desenhar, e onde fica explícita uma intenção de construção ao colocar-se sobre a pedra uma coroa imperial.
Se na mão do jovem Sebastião está aberto o bastão...
... na mão do mais velho o bastão aparece já sem ponta solta.
De bastão passa a bastião, num outro Sebastião!
As figuras estão ainda em reflexão, em orientações opostas, mas exibindo em ambos os casos coroas imperiais, só ligeiramente diferentes.

Importa assim notar que não é um Rei que parte para Alcácer-Quibir, é um assumido imperador.
As pretensões imperiais poderia tê-las tentado D. Sebastião pela união com a filha de Filpe II, seguindo o plano Habsburgo, uma Casa que cumpria as regras, crescendo por casamentos planeados que foram eliminando sucessores até que a família austríaca detivesse a coroa imperial.
Porém, parece claro que D. Sebastião pretendia outra via... um novo Império.
Num mapa do Museu da Marinha, feito em 1970, que já aqui apresentámos, surge uma mistura entre linhas de costa actuais, e símbolos de posse antigos:

O mapa foi certamente inspirado num outro mapa que desconhecemos...
O notável é aparecerem bandeiras portuguesas numa extensão que cobre toda a parte leste da América do Sul, numa área da Argentina, bem como um escudo sobre o Canadá/Labrador/Terra Nova.
Esta pretensão sobre a zona da Terra Nova (aí denominada Terra de Corte-Real) foi claramente assumida por D. Sebastião, pelo que nos parece que este mapa terá inspiração nalgum documento desse período.
D. Sebastião estaria convencido em bastar impor a legitimidade de pretensões territoriais sem uma necessidade de chancela de Roma, e por isso definia-se como imperador por direito autónomo. Isso causaria enormes dificuldades, não apenas contra o Imperador designado, o seu tio Filipe II, mas também contra as pretensões marítimas francesas e até inglesas. Isso colocava Portugal praticamente isolado, conduzindo quase sem alianças um império mundial. Foi uma pretensão elevada, que teve um preço correspondente.
Porém, se o poder centralizado no Sacro-Império Romano acabou por cair definitivamente na Guerra dos Trinta Anos, assinado o Tratado de Vestfália (70 anos depois de Alcácer-Quibir), esta iniciativa de D. Sebastião é a única nacional que segue para além da linha da actuação de Henrique VIII, em Inglaterra (quando os Tudor passam a invocar a coroa fechada), e que marca o início do movimento para um outro Império Europeu, definido por nações independentes do poder central de Roma.



Batalha dos Três Reis
A Batalha de Austerlitz é também conhecida como a Batalha dos Três Imperadores, onde o conceito imperial já se havia difundido, e se confrontam os Impérios Francês, Russo e Austríaco (o que resta do Sacro-Império Germânico após Vestfália havia ficado na linha Habsburgo de Viena). A derrota austríaca vai marcar decisivamente o fim dessa linha imperial que remontava a Carlos Magno. O conceito imperial era já mais difuso, mas não ao ponto da iniciativa imperial de Napoleão que ignora um Papa que é forçado a assistir à sua auto-coroação. Napoleão acaba por sucumbir às suas pretensões de esmagar também o Império Russo e aparecer como imperador único. O ressuscitar de um Sacro-Império Germânico ficará ainda marcado pelas derrotas alemãs nas duas Grandes Guerras do Séc. XX... Porém essa reorganização europeia em torno de um poder centralizador, fazendo reviver o velho império germânico, não deixou de fazer parte da agenda política.

Antes da Batalha dos Três Imperadores, onde não morreu nenhum imperador, a Batalha de Alcácer-Quibir ficou conhecida como Batalha dos Três Reis, quer na nomenclatura marroquina, quer na inglesa.
O nome pretende invocar a morte de D. Sebastião, de Mulei Mohamad, o Rei de Marrocos deposto, e também de Mulei Moluco, o tio que o depôs, um vencedor que morre no decurso da batalha.
Estas três mortes numa batalha foram algo de único, e justificaram o nome adoptado.
É ainda particularmente estranho o monumento marroquino que marca a Batalha dos Três Reis:
À esquerda: Monumento marroquino à Batalha dos Três Reis, 
duas estrelas marroquinas certamente lembrando os Muleis,
e sobre elas uma invocação a Allah, conforme se confirma na figura à direita.
Falta D. Sebastião... ou o que representa afinal o terceiro círculo?
(observação devida a Carlos S. Silva)

Com Lucette Valensi vemos que as comemorações da derrota portuguesa são especialmente celebradas pela comunidade judaica marroquina, expulsa de Portugal... ao ponto de terem visto D. Sebastião como uma ameaça ao nível de um Holocausto:
Disputée entre le monarque et le saint [Sebastião], la mémoire de la bataille des Trois Rois suscite en terre marocaine une pluralité de récits: historiques, hagiographiques, folkloriques. Mais elle ne fait l'objet d'aucune célébration. Seules les communautés juives établies dans le nord du pays et habitées par le ressentiment contre ceux qui les ont expulsées de la Péninsule ibérique fêtent la défaite du roi Sébastien lors du Pûrim de los cristianos, le premier eloul de chaque année. Le texte biblique est mobilisé pour donner la signification de l'événement: la dévastation de la communauté juive de Marrakech par Muhammad al-Mutawakkil est identifiée à la destruction du Temple, le roi Sébastien au Haman du Livre d'Esther qui a décidé l'extermination de tous les juifs, sa défaite et l'exécution de ce dernier. Comme Pûrim célèbre l'éloignement de la menace de destruction qui pesait sur Mardochée et les siens, le nouveau pûrim, institué par les rabbins après la bataille de 1578 (5338 dans le calendrier juif), rend grâce à Dieu d'avoir détourné un péril mortel. (cf. wiki)
Assim, se por um lado se instituiu em Portugal uma visão Messiânica ligada a D. Sebastião, a opinião é absolutamente oposta pelo lado judeu! Para além de um ressentimento difuso, talvez houvesse uma noção de perigo por uma "falsa identificação messiânica", algo explícita no símbolo da empresa de D. Sebastião. Esse perigo seria tanto maior se as comunidades muçulmanas não o vissem como um inimigo cristão, e antes o acolhessem como um novo Messias. Assim, uma infiltração de Sebastião com adesão na comunidade magrebina poderia ter efeitos revolucionários na geografia política.

É conveniente referir que na obra de George Peele transparece claramente que o lado certo, o lado dos deuses, é o lado de Mulei Moluco. D. Sebastião aparece aí como um rei levado no engano, para o mau partido de Mulei Mohamed...
Mulei Moluco tem o apoio de Murad III, que é designado como "deus dos reis terrenos":
Abdil Reyes: Long live my lord, the sovereign of my heart, Lord Abdilmelec, whom the God of kings, The mighty Amurath hath happy made; And long live Amurath for this good deed. 
[Nota: Abdilmelec: Mulei Moluco; Amurath: Murad III]
O poder do Sultão Murad III é sempre enfatizado, colocado ao nível da expressão do poder divino na Terra... e se podemos ver isso como uma natural visão parcial do personagens, a invocação de deuses do panteão Romano, como Júpiter, não sofre da simples crítica de ignorância, que é feita por críticos de Peele, convenientemente ignorantes. Ao colocar nas palavras de Mulei Mohamed:

(...) Be Pluto, then, in hell, and bar the fiends,
Take Neptune’s force to thee and calm the seas,
And execute Jove’s justice on the world (...)

Peele saberia perfeitamente que os mouros não se refeririam aos deuses do panteão romano, mas decidiu inserir esse discurso no Mouro, aliado de D. Sebastião, que assim se rebelava contra o destino que lhe preparavam os deuses do panteão clássico.
Apesar de se pretender reduzir o interesse inglês na batalha à participação de Thomas Stukeley, um personagem controverso na Corte da Rainha Isabel, que alguns diziam ser seu irmão ilegítimo... é óbvio que a Batalha de Alcácer-Quibir só foi desvalorizada por algumas censuras explícitas, mas depois foi-no por censuras muito mais poderosas - as implícitas, que levaram o posterior Shakespeare a aparecer como fundador do Teatro Inglês, esquecendo estas obras de George Peele, aliás supostamente anónimas. Shakespeare emerge como encenador no teatro inglês apenas após a morte de George Peele, e só traz uma particularidade efectivamente nova - o não abordar explicitamente assuntos incómodos nas suas peças.

O argumento estava definido para as peças seguintes:
- a fama seria bondosa com temas abstractos ou ligeiros, mas severa com representações explícitas!
O argumento desta peça... o argumento desta grande peça encontra-se desde então em exibição por todas as salas de teatro, por todas as salas de cinema, por todas as nossas salas através da televisão.


___________
(*) Curiosamente o título "Prisioneiro de Veneza" será depois usado como título numa obra de um soldado metereologista, que decide publicar um "Panfleto sobre a contingência"... obra depois renomeada como "A Náusea", ou seja falamos de Jean Paul Sartre.

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publicado às 07:59

Peça por Peça

18.09.11
- Uma Peça, de Teatro Isabelino: - The Battle of Alcazar, de George Peele (1591)
Peça por outra peça - e do pedido sai nova peça:
- Uma Peça, de Teatro Carolino: - Believe as you list, de Philip Massinger (1631).

Há mais peças... e peça por peça vão colando uma história diversa, neste caso de D. Sebastião.

Em 13 de Dezembro de 2009 foi iniciado o tópico Alvor-Silves com um texto sobre D. Sebastião, que seria o primeiro de sete textos, finalizados a 31... Alguns argumentos colocados nesse texto inicial podiam ser considerados especulativos, e acabei por deixar cair parcialmente o assunto.

Não deixa de ser coincidência que D. João de Áustria desapareça, tal como D. Sebastião, no ano de 1578!
Ambos eram jovens, ver-se-iam como guerreiros no modelo de Aquiles, e o brilhante cometa que apareceu no início desse ano (mais precisamente entre Novembro de 1577 e Janeiro de 1578), concretizaria alguns presságios de sorte funesta.

Sebastião foi levado no coração da batalha, João de Áustria foi levado pelo tifo... mas que necessidade haveria de dissecar o corpo do herói de Lepanto, no transporte para o Escorial, sendo só depois juntadas as partes? Recebia ambos os corpos, Filipe II, irmão de João e tio de Sebastião.

D. João de Áustria, morto em 1578

Acerca de Lepanto, que em 1571 terá catapultado D. João de Áustria para a celebridade, o Grão-Vizir de Selim II, Mahamet Sokulu, terá afirmado:  
- Ao tomarmos Chipre, ficaram sem um braço, enquanto ao derrotarem a nossa armada [em Lepanto], só apararam a nossa barba

Foi desta forma que os Otomanos desvalorizaram o resultado de Lepanto.
A Sagrada Aliança, que reunia o Império Habsburgo Espanhol, Veneza e Génova, a Savóia, Malta e os Estados Papais, tinha vencido os Otomanos, mas dificilmente essa vitória permitira alterar a disposição das peças no terreno... e Chipre teria caído definitivamente.

Numa luta que carregava o epíteto sagrado, seria natural ver um "fervoroso rei católico" juntar as forças nacionais nesse empreendimento pela cristandade. Porém, não será esse rei D. Sebastião, que já governava o reino há três anos. O rei de Portugal não estará representado na coligação naval de Lepanto. Convém notar que o Infante D. Luís (tio de D. Sebastião) tinha estado presente na Conquista de Tunis, em 1535, comandada por Carlos V, pai de Filipe II. Era habitual uma colaboração cristã contra os otomanos...

Quando falha a potência militar, entra em jogo a diplomacia... os acordos em jogos de bastidores.
Se Lepanto não travava a expansão Otomana já consolidada na Europa, por onde poderia ela progredir sem apoquentar mais os Estados Italianos e Austríacos? 
- Um caminho claro seriam os outros estados islâmicos do Norte de África.
Assim, apesar do resultado de Lepanto, três anos depois, em 1574, a cidade de Tunis volta a cair em mãos otomanas.
Será neste contexto que aparece a ameaça de implantação otomana em Marrocos, e consequente perturbação da vizinhança ibérica, não apenas nas navegações, mas até num eventual reeditar de desembarques muçulmanos - a queda de Granada faria em breve um século e seria natural inflamar um espírito de reconquista pelo outro lado.

Se D. Sebastião pareceu preocupado com o problema, a ponto de oferecer ajuda a Mulei Mohamed, já Filipe II pareceu negligenciar a ameaça turca das suas fronteiras a sul.
Convém notar que num avanço dessa forma, os primeiros pontos vulneráveis seriam as possessões espanholas no Norte de África. Tunis fora logo perdida em 1574, mas havia várias outras... antes de chegar aos fortes portugueses, que começavam apenas em Ceuta.

Uma derrota pesada, que envolveu a morte do Rei, deixaria as possessões portuguesas em Marrocos como desígnio apetecível de embalo na reconquista. Porém, com Filipe II no trono português esse perigo muçulmano sob influência turca nunca se efectivou... aliás Filipe II será particularmente expediente na forma como irá tratar de aparecer como parte intermédia na resolução do problema de resgate dos sobreviventes de Alcácer-Quibir.

Os contactos de Filipe II com o lado vencedor na contenda de Alcácer-Quibir são particularmente proveitosos. Às expensas de fortunas enviadas para este intermediário no resgate, regressa alguma da nobreza e fidalguia nacional. Aparece como salvador de famílias dos cárceres dos infiéis, e certamente que tais famílias lhe ficam gratas apesar das somas dispendidas. Um dos prisioneiros resgatados era o Conde de Barcelos, filho do Duque de Bragança... tinha então apenas 10 anos de idade.
Os franceses chamavam a Filipe II "demónio do meio-dia"... mas não foi assim encarado em Lisboa, e a prova disso foi a Monumentalia Filipina - dezenas de grandes Arcos de Triunfo erigidos em Lisboa em 1581 (... dos quais nenhum sobreviveu!). A reacção da fidalguia à invasão filipina foi muito moderada, como pôde constatar o Prior do Crato... que teve entre os portugueses os seus principais amigos de Peniche!

Quando falamos de Filipe II, de D. Sebastião, e de D. João de Áustria, convém não esquecer o problema interno que se desenrolava em Espanha, entre Albistas e Ebolistas!
Esta luta interna, nos meandros da corte espanhola, teve uma clara vitória pelo lado Albista, do Duque de Alba, afinal o vencedor contra D. António. Do lado dos Ebolistas, e como Rui Gomes morre em 1573, será a sua jovem mulher, a notável Ana Mendonza de La Cerda, que procurará liderar o partido do seu marido - um português da Chamusca que, de tutor de Filipe II, ascendeu a Príncipe de Eboli, e Duque de Pastrana.

Ana de Mendonza y de La Cerda, Princesa de Eboli, com o devido olhar.  

A Princesa de Eboli acabou por ser denunciada em conspiração com Antonio Perez, sendo presa em 1579... estavam abertas todas as portas para a anexação portuguesa que o rival Duque de Alba concretizou no ano seguinte. O motivo principal da acusação seria a morte do secretário de D. João de Áustria, em Março de 1578, mas ligava-se primeiro o problema de D. Sebastião e depois o da sucessão,  que envolviam "segredos de estado".  

As versões que dispomos tiveram de sobreviver à forte censura que imperou nos reinados filipinos.
Não apenas nessas regências... afinal é sabido que o Marquês de Pombal fez queimar publicações que evidenciassem um teor sebastianista! 
Foi mesmo um pouco mais longe... sendo claro que o Duque de Aveiro e os Távoras foram protagonistas ao lado de D. Sebastião em batalha, foram também esses as vítimas principais do Processo de 1758, que condenou essas famílias a uma cruel execução pública.
- Coincidência?... Para quem gosta de numerologia, reparará ainda que 1578 e 1758 têm os mesmos dígitos!
Para quem não gosta, é claro que a Casa de Bragança não foi uma escolha consensual na Restauração!
Estaria demasiado ligada ao partido de Filipe II, a quem Catarina de Bragança acabou por abdicar o direito do trono, e essa foi também a Casa que mais beneficiou sob domínio filipino. 
D. João IV teve pois que admitir abdicar num eventual regresso de D. Sebastião. O episódio de Luísa de Gusmão, preferindo ser "Rainha por um dia...", reflecte implicitamente a parte da Casa onde Portugal queria rever-se. Não era na linha do anterior Duque de Bragança - que tomado por febres, se tinha escusado a partir com o Rei.... seria talvez mais na linha de Luísa, a bisneta da Princesa de Eboli.
O Duque de Aveiro ainda era, à época do Marquês de Pombal, um candidato ao trono, pela linha mais antiga... que vinha da descendência de D. João II pelo filho D. Jorge, preterido a D. Manuel.
As três casas ducais formadas por Afonso V, ou seja Coimbra, Viseu e Bragança... tinham-se enfrentado desde a Batalha de Alfarrobeira. 
E se o ducado de Viseu foi vencedor na sucessão de D. João II, obrigando o ducado de Coimbra a mudar de nome para Aveiro; após a extinção da linha com D. Sebastião, a sucessão pela via de D. Jorge permaneceu como ameaça à casa de Bragança até à execução definida em 1758. O problema era de tal forma evidente que o filho do Duque de Aveiro só escapou à morte com a promessa de não ter sucessores. 


Prisioneiro de Veneza
Por isso, é importante encontrar registos um pouco mais longínquos... na Inglaterra!
Há uma excelente compilação de escritos (que encontrei agora), publicada em 1985, pelo Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, do Ministério da Educação:
D. Sebastião na Literatura Inglesa
... e parece ser um dos poucos registos onde se fala das importantes obras inglesas que abordaram o assunto da Batalha de Alcácer-Quibir e do destino de D. Sebastião.

Uma dessas obras é Believe as you list, de Philip Massinger (1631), que foi censurada!
"Acreditem enquanto ouvem" só teve autorização de publicação depois do autor mudar por completo o enquadramento! Ao invés de falar do reaparecimento de D. Sebastião, colocou-o como reaparecimento de Antíoco, rei da Síria no Séc. II a.C.

O motivo da peça era o aparecimento de D. Sebastião enquanto o "Cavaleiro da Cruz", em Veneza, em Junho de 1598. Consegue convencer portugueses aí sediados, e por isso o homem é preso pelo Doge de Veneza em Novembro de 1598, a pedido do embaixador espanhol. É libertado por intervenção do filho do Prior do Crato, e consegue escapar até Florença onde volta a ser preso pelo Duque da Toscana, mais uma vez a pedido do embaixador espanhol. É visitado pelo Conde de Lemos em 1601, mas acaba por ser primeiro condenado perpetuamente às galés e finalmente executado em 1603. 
Esta história contada por Frei José Teixeira e usada por Massinger, está bem documentada no artigo de Isabel Oliveira Martins (ver pág. 121-145), incluso no dito livro de 1985.

É claro que o "Prisioneiro de Veneza"(*) aparenta ser apenas mais um caso de reaparcimento, após os de Penamacor, Ericeira e Madrigal, com desfecho funesto para os pretendentes. Havendo interesses em depor a linha espanhola, também é natural pensar que alguns portugueses alinhassem nesta solução alternativa. O prisioneiro de Veneza, talvez um certo Marco Tulio Catizone, acabou por ter repercursão ao ponto da peça ter sido proibida no reinado de Carlos I, rei inglês que teve depois destino igualmente funesto!


Moluco
Um aspecto que se mantém particularmente intrigante é a designação Mulei Moluco para Abd-al-Malik (ou Abdilmelec), especialmente se o conectarmos a um período em que as Ilhas Molucas estiveram sob disputa no Anti-Meridiano das Tordesilhas, desde D. João III. 
A fundação de Manila após 1571, e subsequente renomeação daquelas ilhas como Filipinas, em honra a Filipe II, mostram que se mantinham questões territoriais a resolver naquela parte oriental, entre Filipe II e D. Sebastião. Essa questão é especialmente notória pela oferta dessas mesmas ilhas como dote da filha de Filipe II, se D. Sebastião tivesse aceite esse casamento! Porém, obstinadamente, D. Sebastião sempre recusou essa proposta de casamento espanhol.
As ilhas eram inicialmente denominadas Malucas, e a conotação do termo "Maluco" só tem um significado de loucura posteriormente. Convém a este propósito referir que, na Jornada de África, Jerónimo de Mendonça diz:
(...) e Mulei Audelmelic, vendo isto se passou ao Gram Turco, o qual vulgarmente se chama Mulei Moluco, porque sendo pequeno era tão afeiçoado aos Christãos, que seu pay lhe mandou fazer huma bragua d'ouro chea de muitas pedras ricas, e lha pôs hum dia chamando-lhe Moluco (como quem diz servo) donde lhe ficou o sobrenome tambem assentado, que muitos lhe não sabem o nome verdadeiro. Andou pois Mulei Molucco em Constantinopla muito tempo, sem poder alcançar socorro do Gram Turco contra seu sobrinho (como tambem del Rey de Espanha , não havia podido alcançar, fazendo primeiro os mesmos ofícios).
O significado de Moluco é assim explicado como sinónimo de "servo", e de forma clara é estabelecida a tentativa de contacto de Mulei Moluco ao rei de Espanha, antes de obter o apoio de Murad III, o Sultão Turco, que lhe concederá uma tropa de janízaros.

Portanto, o combate de D. Sebastião foi contra uma ameaça otomana, entretanto colorida como uma questiúncula interna de legitimidade de sucessão marroquina, por diversas interpretações testamentárias.
Se não há nada que aponte para uma participação espanhola contra a incursão portuguesa em Alcácer-Quibir, há muito que aponta para um combate directo contra uma coligação com forças otomanas em solo de Marrocos, e não apenas contra uma facção do exército marroquino. Pior do que isso, há algumas suspeitas sobre como uma batalha, aparentemente ganha numa primeira fase, e em que o próprio Mulei Moluco morre no seu decurso, se vai desenrolar com uma desastrosa descoordenação posterior, não do lado marroquino, mas sim indiciando problemas internos no lado português.

Foram à época colocadas dúvidas sobre o papel de Filipe II, sobre o conselho ao sobrinho de não participar, sobre a falha de envio de tropas, sobre a oferenda do Elmo que o pai, Carlos V, teria usado na Conquista de Tunis. Ou ainda, sobre o pedido do próprio Mulei Moluco a D. Sebastião, com o compromisso de não usar o apoio turco como ameaça às possessões portuguesas. Essas dúvidas podem fazer sentido, na sequência de acontecimentos, dado que Filipe II obteria vantagens com a vitória de D. Sebastião, ao afastar a ameaça turca... mas também com a derrota, pela sua pretensão à sucessão do trono português.
Porém, a derrota de D. Sebastião não afastaria a ameaça turca...
Onde ficou a ameaça turca após a derrota de Alcácer-Quibir?
Teria sido travada pelos marroquinos?
Pelo partido dos mesmos marroquinos que juravam fidelidade ao Sultão Murad III?
O plano de Filipe II só seria perfeito com uma prévia negociação com os turcos...

De facto, durante o período seguinte a Europa vai entrar numa grande guerra interna, a Guerra dos Trinta Anos... quase esquecendo a ameaça turca, ameaça que parece evaporar-se após Alcácer-Quibir.
Assim sendo, como não pensar num extenso acordo entre os beligerantes de Lepanto?
- Constatado o equilíbrio tácito, há uma certa aceitação da presença turca.
O espírito de Cruzada, de reconquista da Terra Santa tinha sido perdido por completo e a conquista de Jerusalém deixa de ter importância como tema europeu.
Curiosamente, os Otomanos ocupam o papel de Constantinopla... não apenas com a renomeação da capital para Istambul, também porque os seus domínios vão concentrar-se nos domínios do Império Romano do Oriente.
A Europa Ocidental parece assim conformar-se ao império ocidental e deixa o oriental para os Turcos.

O Quinto Império
O Império Ocidental era do tio, Filipe II, mas D. Sebastião ousa pela primeira vez colocar uma Coroa Imperial num rei português.


As coroas dos seus antecessores, mesmo de D. João II ou D. Manuel, tinham sido sempre abertas... em obediência a Roma e ao Sacro-Império, porém a atitude de D. Sebastião parece unilateral.
Tal atitude seria semelhante a uma cisão do Império Romano Ocidental, não passaria facilmente despercebida. Como o Sacro-Império será colocado em causa durante a Guerra dos Trinta Anos, a atitude poderá depois não ser tão notória, e até vista como uma questão de moda... mas o fecho da coroa significava implicitamente não estar sob o Sacro-Império.

A empresa de D. Sebastião é representada pela junção de vários componentes cristãos, que podemos ver na moeda seguinte:
Moeda de D. Sebastião

Há uma vieira sobre um peixe acima do mar, e uma lua (crescente) que abre sobre algumas estrelas (quatro aqui, embora haja quem desenhe 7 invocando a Ursa Maior... poderiam ser ainda as Pleiades).
Este símbolo pode ser encarado como uma reencarnação no seio do amor de Cristo, excepto no que se refere especificamente à configuração da Lua e estrelas.
O moto - Serena Celsa Favent... algo como o esclarecimento (ou a serenidade) favorece a excelência, parece sugerir que D. Sebastião, o Desejado, estava em sintonia com uma filosofia que o veria como executante escolhido para nova missão divina.

Essa mesma ideia de um Novo Império acaba por passar no mito que é gerado em torno do seu desaparecimento.
Conforme notado por alguns autores (ver Lucette Valensi), a batalha de Alcácer-Quibir não será alvo de efusivas comemorações pelo lado marroquino, apesar do seu aparente desfecho glorioso, e é ao contrário um símbolo de união portuguesa, em torno da ideia do Quinto Império.
É afinal uma derrota que parece motivar um desígnio imperial, nunca antes explícito!


Nesta ilustração podemos ver o pensamento dessa saudade sebastianista, nas frases:
Dois retratos vês q são.
Hum velho só na aparência
Do Rey D. SEBASTIÃO.
Repara q têm mistério
Pois a mão da Providência o guarda
Para o V Império
 
SI  VERA  EST  FAMA  SEBASTIUS
O Incoberto. Esperado. Sebastião. O dezejado.
O Quinto Império está alegoricamente representado na incompletude dos degraus da pirâmide... há quatro degraus bem definidos, e um quinto malforme que se parecia desenhar, e onde fica explícita uma intenção de construção ao colocar-se sobre a pedra uma coroa imperial.
Se na mão do jovem Sebastião está aberto o bastão...
... na mão do mais velho o bastão aparece já sem ponta solta.
De bastão passa a bastião, num outro Sebastião!
As figuras estão ainda em reflexão, em orientações opostas, mas exibindo em ambos os casos coroas imperiais, só ligeiramente diferentes.

Importa assim notar que não é um Rei que parte para Alcácer-Quibir, é um assumido imperador.
As pretensões imperiais poderia tê-las tentado D. Sebastião pela união com a filha de Filpe II, seguindo o plano Habsburgo, uma Casa que cumpria as regras, crescendo por casamentos planeados que foram eliminando sucessores até que a família austríaca detivesse a coroa imperial.
Porém, parece claro que D. Sebastião pretendia outra via... um novo Império.
Num mapa do Museu da Marinha, feito em 1970, que já aqui apresentámos, surge uma mistura entre linhas de costa actuais, e símbolos de posse antigos:

O mapa foi certamente inspirado num outro mapa que desconhecemos...
O notável é aparecerem bandeiras portuguesas numa extensão que cobre toda a parte leste da América do Sul, numa área da Argentina, bem como um escudo sobre o Canadá/Labrador/Terra Nova.
Esta pretensão sobre a zona da Terra Nova (aí denominada Terra de Corte-Real) foi claramente assumida por D. Sebastião, pelo que nos parece que este mapa terá inspiração nalgum documento desse período.
D. Sebastião estaria convencido em bastar impor a legitimidade de pretensões territoriais sem uma necessidade de chancela de Roma, e por isso definia-se como imperador por direito autónomo. Isso causaria enormes dificuldades, não apenas contra o Imperador designado, o seu tio Filipe II, mas também contra as pretensões marítimas francesas e até inglesas. Isso colocava Portugal praticamente isolado, conduzindo quase sem alianças um império mundial. Foi uma pretensão elevada, que teve um preço correspondente.
Porém, se o poder centralizado no Sacro-Império Romano acabou por cair definitivamente na Guerra dos Trinta Anos, assinado o Tratado de Vestfália (70 anos depois de Alcácer-Quibir), esta iniciativa de D. Sebastião é a única nacional que segue para além da linha da actuação de Henrique VIII, em Inglaterra (quando os Tudor passam a invocar a coroa fechada), e que marca o início do movimento para um outro Império Europeu, definido por nações independentes do poder central de Roma.



Batalha dos Três Reis
A Batalha de Austerlitz é também conhecida como a Batalha dos Três Imperadores, onde o conceito imperial já se havia difundido, e se confrontam os Impérios Francês, Russo e Austríaco (o que resta do Sacro-Império Germânico após Vestfália havia ficado na linha Habsburgo de Viena). A derrota austríaca vai marcar decisivamente o fim dessa linha imperial que remontava a Carlos Magno. O conceito imperial era já mais difuso, mas não ao ponto da iniciativa imperial de Napoleão que ignora um Papa que é forçado a assistir à sua auto-coroação. Napoleão acaba por sucumbir às suas pretensões de esmagar também o Império Russo e aparecer como imperador único. O ressuscitar de um Sacro-Império Germânico ficará ainda marcado pelas derrotas alemãs nas duas Grandes Guerras do Séc. XX... Porém essa reorganização europeia em torno de um poder centralizador, fazendo reviver o velho império germânico, não deixou de fazer parte da agenda política.

Antes da Batalha dos Três Imperadores, onde não morreu nenhum imperador, a Batalha de Alcácer-Quibir ficou conhecida como Batalha dos Três Reis, quer na nomenclatura marroquina, quer na inglesa.
O nome pretende invocar a morte de D. Sebastião, de Mulei Mohamad, o Rei de Marrocos deposto, e também de Mulei Moluco, o tio que o depôs, um vencedor que morre no decurso da batalha.
Estas três mortes numa batalha foram algo de único, e justificaram o nome adoptado.
É ainda particularmente estranho o monumento marroquino que marca a Batalha dos Três Reis:
À esquerda: Monumento marroquino à Batalha dos Três Reis, 
duas estrelas marroquinas certamente lembrando os Muleis,
e sobre elas uma invocação a Allah, conforme se confirma na figura à direita.
Falta D. Sebastião... ou o que representa afinal o terceiro círculo?
(observação devida a Carlos S. Silva)

Com Lucette Valensi vemos que as comemorações da derrota portuguesa são especialmente celebradas pela comunidade judaica marroquina, expulsa de Portugal... ao ponto de terem visto D. Sebastião como uma ameaça ao nível de um Holocausto:
Disputée entre le monarque et le saint [Sebastião], la mémoire de la bataille des Trois Rois suscite en terre marocaine une pluralité de récits: historiques, hagiographiques, folkloriques. Mais elle ne fait l'objet d'aucune célébration. Seules les communautés juives établies dans le nord du pays et habitées par le ressentiment contre ceux qui les ont expulsées de la Péninsule ibérique fêtent la défaite du roi Sébastien lors du Pûrim de los cristianos, le premier eloul de chaque année. Le texte biblique est mobilisé pour donner la signification de l'événement: la dévastation de la communauté juive de Marrakech par Muhammad al-Mutawakkil est identifiée à la destruction du Temple, le roi Sébastien au Haman du Livre d'Esther qui a décidé l'extermination de tous les juifs, sa défaite et l'exécution de ce dernier. Comme Pûrim célèbre l'éloignement de la menace de destruction qui pesait sur Mardochée et les siens, le nouveau pûrim, institué par les rabbins après la bataille de 1578 (5338 dans le calendrier juif), rend grâce à Dieu d'avoir détourné un péril mortel. (cf. wiki)
Assim, se por um lado se instituiu em Portugal uma visão Messiânica ligada a D. Sebastião, a opinião é absolutamente oposta pelo lado judeu! Para além de um ressentimento difuso, talvez houvesse uma noção de perigo por uma "falsa identificação messiânica", algo explícita no símbolo da empresa de D. Sebastião. Esse perigo seria tanto maior se as comunidades muçulmanas não o vissem como um inimigo cristão, e antes o acolhessem como um novo Messias. Assim, uma infiltração de Sebastião com adesão na comunidade magrebina poderia ter efeitos revolucionários na geografia política.

É conveniente referir que na obra de George Peele transparece claramente que o lado certo, o lado dos deuses, é o lado de Mulei Moluco. D. Sebastião aparece aí como um rei levado no engano, para o mau partido de Mulei Mohamed...
Mulei Moluco tem o apoio de Murad III, que é designado como "deus dos reis terrenos":
Abdil Reyes: Long live my lord, the sovereign of my heart, Lord Abdilmelec, whom the God of kings, The mighty Amurath hath happy made; And long live Amurath for this good deed. 
[Nota: Abdilmelec: Mulei Moluco; Amurath: Murad III]
O poder do Sultão Murad III é sempre enfatizado, colocado ao nível da expressão do poder divino na Terra... e se podemos ver isso como uma natural visão parcial do personagens, a invocação de deuses do panteão Romano, como Júpiter, não sofre da simples crítica de ignorância, que é feita por críticos de Peele, convenientemente ignorantes. Ao colocar nas palavras de Mulei Mohamed:

(...) Be Pluto, then, in hell, and bar the fiends,
Take Neptune’s force to thee and calm the seas,
And execute Jove’s justice on the world (...)

Peele saberia perfeitamente que os mouros não se refeririam aos deuses do panteão romano, mas decidiu inserir esse discurso no Mouro, aliado de D. Sebastião, que assim se rebelava contra o destino que lhe preparavam os deuses do panteão clássico.
Apesar de se pretender reduzir o interesse inglês na batalha à participação de Thomas Stukeley, um personagem controverso na Corte da Rainha Isabel, que alguns diziam ser seu irmão ilegítimo... é óbvio que a Batalha de Alcácer-Quibir só foi desvalorizada por algumas censuras explícitas, mas depois foi-no por censuras muito mais poderosas - as implícitas, que levaram o posterior Shakespeare a aparecer como fundador do Teatro Inglês, esquecendo estas obras de George Peele, aliás supostamente anónimas. Shakespeare emerge como encenador no teatro inglês apenas após a morte de George Peele, e só traz uma particularidade efectivamente nova - o não abordar explicitamente assuntos incómodos nas suas peças.

O argumento estava definido para as peças seguintes:
- a fama seria bondosa com temas abstractos ou ligeiros, mas severa com representações explícitas!
O argumento desta peça... o argumento desta grande peça encontra-se desde então em exibição por todas as salas de teatro, por todas as salas de cinema, por todas as nossas salas através da televisão.


___________
(*) Curiosamente o título "Prisioneiro de Veneza" será depois usado como título numa obra de um soldado metereologista, que decide publicar um "Panfleto sobre a contingência"... obra depois renomeada como "A Náusea", ou seja falamos de Jean Paul Sartre.

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publicado às 07:59

Peça por Peça

17.09.11
- Uma Peça, de Teatro Isabelino: - The Battle of Alcazar, de George Peele (1591)
Peça por outra peça - e do pedido sai nova peça:
- Uma Peça, de Teatro Carolino: - Believe as you list, de Philip Massinger (1631).

Há mais peças... e peça por peça vão colando uma história diversa, neste caso de D. Sebastião.

Em 13 de Dezembro de 2009 foi iniciado o tópico Alvor-Silves com um texto sobre D. Sebastião, que seria o primeiro de sete textos, finalizados a 31... Alguns argumentos colocados nesse texto inicial podiam ser considerados especulativos, e acabei por deixar cair parcialmente o assunto.

Não deixa de ser coincidência que D. João de Áustria desapareça, tal como D. Sebastião, no ano de 1578!
Ambos eram jovens, ver-se-iam como guerreiros no modelo de Aquiles, e o brilhante cometa que apareceu no início desse ano (mais precisamente entre Novembro de 1577 e Janeiro de 1578), concretizaria alguns presságios de sorte funesta.

Sebastião foi levado no coração da batalha, João de Áustria foi levado pelo tifo... mas que necessidade haveria de dissecar o corpo do herói de Lepanto, no transporte para o Escorial, sendo só depois juntadas as partes? Recebia ambos os corpos, Filipe II, irmão de João e tio de Sebastião. 

D. João de Áustria, morto em 1578

Acerca de Lepanto, que em 1571 terá catapultado D. João de Áustria para a celebridade, o Grão-Vizir de Selim II, Mahamet Sokulu, terá afirmado:  
- Ao tomarmos Chipre, ficaram sem um braço, enquanto ao derrotarem a nossa armada [em Lepanto], só apararam a nossa barba

Foi desta forma que os Otomanos desvalorizaram o resultado de Lepanto.
A Sagrada Aliança, que reunia o Império Habsburgo Espanhol, Veneza e Génova, a Savóia, Malta e os Estados Papais, tinha vencido os Otomanos, mas dificilmente essa vitória permitira alterar a disposição das peças no terreno... e Chipre teria caído definitivamente.

Numa luta que carregava o epíteto sagrado, seria natural ver um "fervoroso rei católico" juntar as forças nacionais nesse empreendimento pela cristandade. Porém, não será esse rei D. Sebastião, que já governava o reino há três anos. O rei de Portugal não estará representado na coligação naval de Lepanto. Convém notar que o Infante D. Luís (tio de D. Sebastião) tinha estado presente na Conquista de Tunis, em 1535, comandada por Carlos V, pai de Filipe II. Era habitual uma colaboração cristã contra os otomanos...

Quando falha a potência militar, entra em jogo a diplomacia... os acordos em jogos de bastidores.
Se Lepanto não travava a expansão Otomana já consolidada na Europa, por onde poderia ela progredir sem apoquentar mais os Estados Italianos e Austríacos? 
- Um caminho claro seriam os outros estados islâmicos do Norte de África.
Assim, apesar do resultado de Lepanto, três anos depois, em 1574, a cidade de Tunis volta a cair em mãos otomanas.
Será neste contexto que aparece a ameaça de implantação otomana em Marrocos, e consequente perturbação da vizinhança ibérica, não apenas nas navegações, mas até num eventual reeditar de desembarques muçulmanos - a queda de Granada faria em breve um século e seria natural inflamar um espírito de reconquista pelo outro lado.

Se D. Sebastião pareceu preocupado com o problema, a ponto de oferecer ajuda a Mulei Mohamed, já Filipe II pareceu negligenciar a ameaça turca das suas fronteiras a sul.
Convém notar que num avanço dessa forma, os primeiros pontos vulneráveis seriam as possessões espanholas no Norte de África. Tunis fora logo perdida em 1574, mas havia várias outras... antes de chegar aos fortes portugueses, que começavam apenas em Ceuta.

Uma derrota pesada, que envolveu a morte do Rei, deixaria as possessões portuguesas em Marrocos como desígnio apetecível de embalo na reconquista. Porém, com Filipe II no trono português esse perigo muçulmano sob influência turca nunca se efectivou... aliás Filipe II será particularmente expediente na forma como irá tratar de aparecer como parte intermédia na resolução do problema de resgate dos sobreviventes de Alcácer-Quibir.

Os contactos de Filipe II com o lado vencedor na contenda de Alcácer-Quibir são particularmente proveitosos. Às expensas de fortunas enviadas para este intermediário no resgate, regressa alguma da nobreza e fidalguia nacional. Aparece como salvador de famílias dos cárceres dos infiéis, e certamente que tais famílias lhe ficam gratas apesar das somas dispendidas. Um dos prisioneiros resgatados era o Conde de Barcelos, filho do Duque de Bragança... tinha então apenas 10 anos de idade.
Os franceses chamavam a Filipe II "demónio do meio-dia"... mas não foi assim encarado em Lisboa, e a prova disso foi a Monumentalia Filipina - dezenas de grandes Arcos de Triunfo erigidos em Lisboa em 1581 (... dos quais nenhum sobreviveu!). A reacção da fidalguia à invasão filipina foi muito moderada, como pôde constatar o Prior do Crato... que teve entre os portugueses os seus principais amigos de Peniche!

Quando falamos de Filipe II, de D. Sebastião, e de D. João de Áustria, convém não esquecer o problema interno que se desenrolava em Espanha, entre Albistas e Ebolistas!
Esta luta interna, nos meandros da corte espanhola, teve uma clara vitória pelo lado Albista, do Duque de Alba, afinal o vencedor contra D. António. Do lado dos Ebolistas, e como Rui Gomes morre em 1573, será a sua jovem mulher, a notável Ana Mendonza de La Cerda, que procurará liderar o partido do seu marido - um português da Chamusca que, de tutor de Filipe II, ascendeu a Príncipe de Eboli, e Duque de Pastrana.
 
Ana de Mendonza y de La Cerda, Princesa de Eboli, com o devido olhar.  

A Princesa de Eboli acabou por ser denunciada em conspiração com Antonio Perez, sendo presa em 1579... estavam abertas todas as portas para a anexação portuguesa que o rival Duque de Alba concretizou no ano seguinte. O motivo principal da acusação seria a morte do secretário de D. João de Áustria, em Março de 1578, mas ligava-se primeiro o problema de D. Sebastião e depois o da sucessão,  que envolviam "segredos de estado".  

As versões que dispomos tiveram de sobreviver à forte censura que imperou nos reinados filipinos.
Não apenas nessas regências... afinal é sabido que o Marquês de Pombal fez queimar publicações que evidenciassem um teor sebastianista! 
Foi mesmo um pouco mais longe... sendo claro que o Duque de Aveiro e os Távoras foram protagonistas ao lado de D. Sebastião em batalha, foram também esses as vítimas principais do Processo de 1758, que condenou essas famílias a uma cruel execução pública.
- Coincidência?... Para quem gosta de numerologia, reparará ainda que 1578 e 1758 têm os mesmos dígitos!
Para quem não gosta, é claro que a Casa de Bragança não foi uma escolha consensual na Restauração!
Estaria demasiado ligada ao partido de Filipe II, a quem Catarina de Bragança acabou por abdicar o direito do trono, e essa foi também a Casa que mais beneficiou sob domínio filipino. 
D. João IV teve pois que admitir abdicar num eventual regresso de D. Sebastião. O episódio de Luísa de Gusmão, preferindo ser "Rainha por um dia...", reflecte implicitamente a parte da Casa onde Portugal queria rever-se. Não era na linha do anterior Duque de Bragança - que tomado por febres, se tinha escusado a partir com o Rei.... seria talvez mais na linha de Luísa, a bisneta da Princesa de Eboli.
O Duque de Aveiro ainda era, à época do Marquês de Pombal, um candidato ao trono, pela linha mais antiga... que vinha da descendência de D. João II pelo filho D. Jorge, preterido a D. Manuel.
As três casas ducais formadas por Afonso V, ou seja Coimbra, Viseu e Bragança... tinham-se enfrentado desde a Batalha de Alfarrobeira. 
E se o ducado de Viseu foi vencedor na sucessão de D. João II, obrigando o ducado de Coimbra a mudar de nome para Aveiro; após a extinção da linha com D. Sebastião, a sucessão pela via de D. Jorge permaneceu como ameaça à casa de Bragança até à execução definida em 1758. O problema era de tal forma evidente que o filho do Duque de Aveiro só escapou à morte com a promessa de não ter sucessores. 


Prisioneiro de Veneza
Por isso, é importante encontrar registos um pouco mais longínquos... na Inglaterra!
Há uma excelente compilação de escritos (que encontrei agora), publicada em 1985, pelo Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, do Ministério da Educação:
D. Sebastião na Literatura Inglesa
... e parece ser um dos poucos registos onde se fala das importantes obras inglesas que abordaram o assunto da Batalha de Alcácer-Quibir e do destino de D. Sebastião.

Uma dessas obras é Believe as you list, de Philip Massinger (1631), que foi censurada!
"Acreditem enquanto ouvem" só teve autorização de publicação depois do autor mudar por completo o enquadramento! Ao invés de falar do reaparecimento de D. Sebastião, colocou-o como reaparecimento de Antíoco, rei da Síria no Séc. II a.C.

O motivo da peça era o aparecimento de D. Sebastião enquanto o "Cavaleiro da Cruz", em Veneza, em Junho de 1598. Consegue convencer portugueses aí sediados, e por isso o homem é preso pelo Doge de Veneza em Novembro de 1598, a pedido do embaixador espanhol. É libertado por intervenção do filho do Prior do Crato, e consegue escapar até Florença onde volta a ser preso pelo Duque da Toscana, mais uma vez a pedido do embaixador espanhol. É visitado pelo Conde de Lemos em 1601, mas acaba por ser primeiro condenado perpetuamente às galés e finalmente executado em 1603. 
Esta história contada por Frei José Teixeira e usada por Massinger, está bem documentada no artigo de Isabel Oliveira Martins (ver pág. 121-145), incluso no dito livro de 1985.

É claro que o "Prisioneiro de Veneza"(*) aparenta ser apenas mais um caso de reaparcimento, após os de Penamacor, Ericeira e Madrigal, com desfecho funesto para os pretendentes. Havendo interesses em depor a linha espanhola, também é natural pensar que alguns portugueses alinhassem nesta solução alternativa. O prisioneiro de Veneza, talvez um certo Marco Tulio Catizone, acabou por ter repercursão ao ponto da peça ter sido proibida no reinado de Carlos I, rei inglês que teve depois destino igualmente funesto!


Moluco
Um aspecto que se mantém particularmente intrigante é a designação Mulei Moluco para Abd-al-Malik (ou Abdilmelec), especialmente se o conectarmos a um período em que as Ilhas Molucas estiveram sob disputa no Anti-Meridiano das Tordesilhas, desde D. João III. 
A fundação de Manila após 1571, e subsequente renomeação daquelas ilhas como Filipinas, em honra a Filipe II, mostram que se mantinham questões territoriais a resolver naquela parte oriental, entre Filipe II e D. Sebastião. Essa questão é especialmente notória pela oferta dessas mesmas ilhas como dote da filha de Filipe II, se D. Sebastião tivesse aceite esse casamento! Porém, obstinadamente, D. Sebastião sempre recusou essa proposta de casamento espanhol.
As ilhas eram inicialmente denominadas Malucas, e a conotação do termo "Maluco" só tem um significado de loucura posteriormente. Convém a este propósito referir que, na Jornada de África, Jerónimo de Mendonça diz:
(...) e Mulei Audelmelic, vendo isto se passou ao Gram Turco, o qual vulgarmente se chama Mulei Moluco, porque sendo pequeno era tão afeiçoado aos Christãos, que seu pay lhe mandou fazer huma bragua d'ouro chea de muitas pedras ricas, e lha pôs hum dia chamando-lhe Moluco (como quem diz servo) donde lhe ficou o sobrenome tambem assentado, que muitos lhe não sabem o nome verdadeiro. Andou pois Mulei Molucco em Constantinopla muito tempo, sem poder alcançar socorro do Gram Turco contra seu sobrinho (como tambem del Rey de Espanha , não havia podido alcançar, fazendo primeiro os mesmos ofícios).
O significado de Moluco é assim explicado como sinónimo de "servo", e de forma clara é estabelecida a tentativa de contacto de Mulei Moluco ao rei de Espanha, antes de obter o apoio de Murad III, o Sultão Turco, que lhe concederá uma tropa de janízaros.

Portanto, o combate de D. Sebastião foi contra uma ameaça otomana, entretanto colorida como uma questiúncula interna de legitimidade de sucessão marroquina, por diversas interpretações testamentárias.
Se não há nada que aponte para uma participação espanhola contra a incursão portuguesa em Alcácer-Quibir, há muito que aponta para um combate directo contra uma coligação com forças otomanas em solo de Marrocos, e não apenas contra uma facção do exército marroquino. Pior do que isso, há algumas suspeitas sobre como uma batalha, aparentemente ganha numa primeira fase, e em que o próprio Mulei Moluco morre no seu decurso, se vai desenrolar com uma desastrosa descoordenação posterior, não do lado marroquino, mas sim indiciando problemas internos no lado português.

Foram à época colocadas dúvidas sobre o papel de Filipe II, sobre o conselho ao sobrinho de não participar, sobre a falha de envio de tropas, sobre a oferenda do Elmo que o pai, Carlos V, teria usado na Conquista de Tunis. Ou ainda, sobre o pedido do próprio Mulei Moluco a D. Sebastião, com o compromisso de não usar o apoio turco como ameaça às possessões portuguesas. Essas dúvidas podem fazer sentido, na sequência de acontecimentos, dado que Filipe II obteria vantagens com a vitória de D. Sebastião, ao afastar a ameaça turca... mas também com a derrota, pela sua pretensão à sucessão do trono português.
Porém, a derrota de D. Sebastião não afastaria a ameaça turca...
Onde ficou a ameaça turca após a derrota de Alcácer-Quibir?
Teria sido travada pelos marroquinos?
Pelo partido dos mesmos marroquinos que juravam fidelidade ao Sultão Murad III?
O plano de Filipe II só seria perfeito com uma prévia negociação com os turcos...

De facto, durante o período seguinte a Europa vai entrar numa grande guerra interna, a Guerra dos Trinta Anos... quase esquecendo a ameaça turca, ameaça que parece evaporar-se após Alcácer-Quibir.
Assim sendo, como não pensar num extenso acordo entre os beligerantes de Lepanto?
- Constatado o equilíbrio tácito, há uma certa aceitação da presença turca.
O espírito de Cruzada, de reconquista da Terra Santa tinha sido perdido por completo e a conquista de Jerusalém deixa de ter importância como tema europeu.
Curiosamente, os Otomanos ocupam o papel de Constantinopla... não apenas com a renomeação da capital para Istambul, também porque os seus domínios vão concentrar-se nos domínios do Império Romano do Oriente.
A Europa Ocidental parece assim conformar-se ao império ocidental e deixa o oriental para os Turcos.

O Quinto Império
O Império Ocidental era do tio, Filipe II, mas D. Sebastião ousa pela primeira vez colocar uma Coroa Imperial num rei português.
D. Sebastião com a Coroa Imperial (coroa fechada)

As coroas dos seus antecessores, mesmo de D. João II ou D. Manuel, tinham sido sempre abertas... em obediência a Roma e ao Sacro-Império, porém a atitude de D. Sebastião parece unilateral.
Tal atitude seria semelhante a uma cisão do Império Romano Ocidental, não passaria facilmente despercebida. Como o Sacro-Império será colocado em causa durante a Guerra dos Trinta Anos, a atitude poderá depois não ser tão notória, e até vista como uma questão de moda... mas o fecho da coroa significava implicitamente não estar sob o Sacro-Império.

A empresa de D. Sebastião é representada pela junção de vários componentes cristãos, que podemos ver na moeda seguinte:
Moeda de D. Sebastião

Há uma vieira sobre um peixe acima do mar, e uma lua (crescente) que abre sobre algumas estrelas (quatro aqui, embora haja quem desenhe 7 invocando a Ursa Maior... poderiam ser ainda as Pleiades).
Este símbolo pode ser encarado como uma reencarnação no seio do amor de Cristo, excepto no que se refere especificamente à configuração da Lua e estrelas.
O moto - Serena Celsa Favent... algo como o esclarecimento (ou a serenidade) favorece a excelência, parece sugerir que D. Sebastião, o Desejado, estava em sintonia com uma filosofia que o veria como executante escolhido para nova missão divina.

Essa mesma ideia de um Novo Império acaba por passar no mito que é gerado em torno do seu desaparecimento.
Conforme notado por alguns autores (ver Lucette Valensi), a batalha de Alcácer-Quibir não será alvo de efusivas comemorações pelo lado marroquino, apesar do seu aparente desfecho glorioso, e é ao contrário um símbolo de união portuguesa, em torno da ideia do Quinto Império.
É afinal uma derrota que parece motivar um desígnio imperial, nunca antes explícito!

Nesta ilustração podemos ver o pensamento dessa saudade sebastianista, nas frases:
Dois retratos vês q são.
Hum velho só na aparência
Do Rey D. SEBASTIÃO.
Repara q têm mistério
Pois a mão da Providência o guarda
Para o V Império
 
SI  VERA  EST  FAMA  SEBASTIUS
O Incoberto. Esperado. Sebastião. O dezejado.
O Quinto Império está alegoricamente representado na incompletude dos degraus da pirâmide... há quatro degraus bem definidos, e um quinto malforme que se parecia desenhar, e onde fica explícita uma intenção de construção ao colocar-se sobre a pedra uma coroa imperial.
Se na mão do jovem Sebastião está aberto o bastão...
... na mão do mais velho o bastão aparece já sem ponta solta.
De bastão passa a bastião, num outro Sebastião!
As figuras estão ainda em reflexão, em orientações opostas, mas exibindo em ambos os casos coroas imperiais, só ligeiramente diferentes.

Importa assim notar que não é um Rei que parte para Alcácer-Quibir, é um assumido imperador.
As pretensões imperiais poderia tê-las tentado D. Sebastião pela união com a filha de Filpe II, seguindo o plano Habsburgo, uma Casa que cumpria as regras, crescendo por casamentos planeados que foram eliminando sucessores até que a família austríaca detivesse a coroa imperial.
Porém, parece claro que D. Sebastião pretendia outra via... um novo Império.
Num mapa do Museu da Marinha, feito em 1970, que já aqui apresentámos, surge uma mistura entre linhas de costa actuais, e símbolos de posse antigos:

O mapa foi certamente inspirado num outro mapa que desconhecemos...
O notável é aparecerem bandeiras portuguesas numa extensão que cobre toda a parte leste da América do Sul, numa área da Argentina, bem como um escudo sobre o Canadá/Labrador/Terra Nova.
Esta pretensão sobre a zona da Terra Nova (aí denominada Terra de Corte-Real) foi claramente assumida por D. Sebastião, pelo que nos parece que este mapa terá inspiração nalgum documento desse período.
D. Sebastião estaria convencido em bastar impor a legitimidade de pretensões territoriais sem uma necessidade de chancela de Roma, e por isso definia-se como imperador por direito autónomo. Isso causaria enormes dificuldades, não apenas contra o Imperador designado, o seu tio Filipe II, mas também contra as pretensões marítimas francesas e até inglesas. Isso colocava Portugal praticamente isolado, conduzindo quase sem alianças um império mundial. Foi uma pretensão elevada, que teve um preço correspondente.
Porém, se o poder centralizado no Sacro-Império Romano acabou por cair definitivamente na Guerra dos Trinta Anos, assinado o Tratado de Vestfália (70 anos depois de Alcácer-Quibir), esta iniciativa de D. Sebastião é a única nacional que segue para além da linha da actuação de Henrique VIII, em Inglaterra (quando os Tudor passam a invocar a coroa fechada), e que marca o início do movimento para um outro Império Europeu, definido por nações independentes do poder central de Roma.



Batalha dos Três Reis
A Batalha de Austerlitz é também conhecida como a Batalha dos Três Imperadores, onde o conceito imperial já se havia difundido, e se confrontam os Impérios Francês, Russo e Austríaco (o que resta do Sacro-Império Germânico após Vestfália havia ficado na linha Habsburgo de Viena). A derrota austríaca vai marcar decisivamente o fim dessa linha imperial que remontava a Carlos Magno. O conceito imperial era já mais difuso, mas não ao ponto da iniciativa imperial de Napoleão que ignora um Papa que é forçado a assistir à sua auto-coroação. Napoleão acaba por sucumbir às suas pretensões de esmagar também o Império Russo e aparecer como imperador único. O ressuscitar de um Sacro-Império Germânico ficará ainda marcado pelas derrotas alemãs nas duas Grandes Guerras do Séc. XX... Porém essa reorganização europeia em torno de um poder centralizador, fazendo reviver o velho império germânico, não deixou de fazer parte da agenda política.

Antes da Batalha dos Três Imperadores, onde não morreu nenhum imperador, a Batalha de Alcácer-Quibir ficou conhecida como Batalha dos Três Reis, quer na nomenclatura marroquina, quer na inglesa.
O nome pretende invocar a morte de D. Sebastião, de Mulei Mohamad, o Rei de Marrocos deposto, e também de Mulei Moluco, o tio que o depôs, um vencedor que morre no decurso da batalha.
Estas três mortes numa batalha foram algo de único, e justificaram o nome adoptado.
É ainda particularmente estranho o monumento marroquino que marca a Batalha dos Três Reis:
À esquerda: Monumento marroquino à Batalha dos Três Reis, 
duas estrelas marroquinas certamente lembrando os Muleis,
e sobre elas uma invocação a Allah, conforme se confirma na figura à direita.
Falta D. Sebastião... ou o que representa afinal o terceiro círculo?
(observação devida a Carlos S. Silva)

Com Lucette Valensi vemos que as comemorações da derrota portuguesa são especialmente celebradas pela comunidade judaica marroquina, expulsa de Portugal... ao ponto de terem visto D. Sebastião como uma ameaça ao nível de um Holocausto:
Disputée entre le monarque et le saint [Sebastião], la mémoire de la bataille des Trois Rois suscite en terre marocaine une pluralité de récits: historiques, hagiographiques, folkloriques. Mais elle ne fait l'objet d'aucune célébration. Seules les communautés juives établies dans le nord du pays et habitées par le ressentiment contre ceux qui les ont expulsées de la Péninsule ibérique fêtent la défaite du roi Sébastien lors du Pûrim de los cristianos, le premier eloul de chaque année. Le texte biblique est mobilisé pour donner la signification de l'événement: la dévastation de la communauté juive de Marrakech par Muhammad al-Mutawakkil est identifiée à la destruction du Temple, le roi Sébastien au Haman du Livre d'Esther qui a décidé l'extermination de tous les juifs, sa défaite et l'exécution de ce dernier. Comme Pûrim célèbre l'éloignement de la menace de destruction qui pesait sur Mardochée et les siens, le nouveau pûrim, institué par les rabbins après la bataille de 1578 (5338 dans le calendrier juif), rend grâce à Dieu d'avoir détourné un péril mortel. (cf. wiki)
Assim, se por um lado se instituiu em Portugal uma visão Messiânica ligada a D. Sebastião, a opinião é absolutamente oposta pelo lado judeu! Para além de um ressentimento difuso, talvez houvesse uma noção de perigo por uma "falsa identificação messiânica", algo explícita no símbolo da empresa de D. Sebastião. Esse perigo seria tanto maior se as comunidades muçulmanas não o vissem como um inimigo cristão, e antes o acolhessem como um novo Messias. Assim, uma infiltração de Sebastião com adesão na comunidade magrebina poderia ter efeitos revolucionários na geografia política.

É conveniente referir que na obra de George Peele transparece claramente que o lado certo, o lado dos deuses, é o lado de Mulei Moluco. D. Sebastião aparece aí como um rei levado no engano, para o mau partido de Mulei Mohamed...
Mulei Moluco tem o apoio de Murad III, que é designado como "deus dos reis terrenos":
Abdil Reyes: Long live my lord, the sovereign of my heart, Lord Abdilmelec, whom the God of kings, The mighty Amurath hath happy made; And long live Amurath for this good deed. 
[Nota: Abdilmelec: Mulei Moluco; Amurath: Murad III]
O poder do Sultão Murad III é sempre enfatizado, colocado ao nível da expressão do poder divino na Terra... e se podemos ver isso como uma natural visão parcial do personagens, a invocação de deuses do panteão Romano, como Júpiter, não sofre da simples crítica de ignorância, que é feita por críticos de Peele, convenientemente ignorantes. Ao colocar nas palavras de Mulei Mohamed:

(...) Be Pluto, then, in hell, and bar the fiends,
Take Neptune’s force to thee and calm the seas,
And execute Jove’s justice on the world (...)

Peele saberia perfeitamente que os mouros não se refeririam aos deuses do panteão romano, mas decidiu inserir esse discurso no Mouro, aliado de D. Sebastião, que assim se rebelava contra o destino que lhe preparavam os deuses do panteão clássico.
Apesar de se pretender reduzir o interesse inglês na batalha à participação de Thomas Stukeley, um personagem controverso na Corte da Rainha Isabel, que alguns diziam ser seu irmão ilegítimo... é óbvio que a Batalha de Alcácer-Quibir só foi desvalorizada por algumas censuras explícitas, mas depois foi-no por censuras muito mais poderosas - as implícitas, que levaram o posterior Shakespeare a aparecer como fundador do Teatro Inglês, esquecendo estas obras de George Peele, aliás supostamente anónimas. Shakespeare emerge como encenador no teatro inglês apenas após a morte de George Peele, e só traz uma particularidade efectivamente nova - o não abordar explicitamente assuntos incómodos nas suas peças.

O argumento estava definido para as peças seguintes:
- a fama seria bondosa com temas abstractos ou ligeiros, mas severa com representações explícitas!
O argumento desta peça... o argumento desta grande peça encontra-se desde então em exibição por todas as salas de teatro, por todas as salas de cinema, por todas as nossas salas através da televisão.


___________
(*) Curiosamente o título "Prisioneiro de Veneza" será depois usado como título numa obra de um soldado metereologista, que decide publicar um "Panfleto sobre a contingência"... obra depois renomeada como "A Náusea", ou seja falamos de Jean Paul Sartre.

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