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Tendo em conta dois comentários recentes, um do José Manuel sobre os alfacinhas, e outro da Maria da Fonte sobre a realeza de linha bastarda, podemos juntar os temas.

Quem quiser acreditar que a terminologia "alfacinha" resulta de um gosto lisboeta por alfaces, pode terminar aqui a leitura.
O resto do texto destina-se apenas aos que não se contentam com essa explicação. Essa é, aliás, uma linha principal deste blog... para além de procurar mostrar contradições das versões habituais, procura uma visão com nexo alargado. 
Ora não há contradição nenhuma em associar alfaces ao lisboetas, podiam ser tomates... mas, à falta de tomates, ficaram as alfaces. Portanto, não havendo aqui contradição, não podemos dizer que a salada está mal feita... a única coisa que fazemos é, digamos, juntar tomates à história. E sim, por vezes, exageramos na quantidade de sal e azeite, e até juntamos cebola.

Adiante. 
A história vai começar nos campos de Alvalade, com ou sem alfaces. 
Será longa, porque o nexo mereceu-me a pena de ser estabelecido.

A ocorrência de bastardos reais deve ser tão velha quanto a existência de reis... no entanto, só seria um problema se alguma força apoiasse uma linha não legítima, de acordo com a tradição real.
Certamente por acaso, isso ocorreu assim que os templários se estabeleceram em Portugal, acolhidos por D. Dinis.

Aldonça Talha - Afonso Sanches
De entre muitos bastardos, D. Dinis reconheceu um, Afonso Sanches como legítimo, o que colocaria em causa a sucessão de D. Afonso IV, o único filho da Rainha Santa Isabel, dois anos mais novo que o irmão bastardo. A agravar a situação, D. Dinis colocava-o mesmo no testamento de sucessão...

D. Afonso IV, o Bravo, que foi decisivo para a histórica Batalha do Salado... montou arraiais nos campos do Lumiar,  juntando exército contra o pai, e a batalha esteve às portas de Lisboa, nos campos de Alvalade. Sendo incerto saber qual dos campos tinha tomates ou alfaces, temos a nossa opinião sobre esta outra salada, antes da batalha do Salado.
Consta que uma intervenção algo miraculosa da Rainha Santa Isabel teria evitado que o confronto prosseguisse... e, entre o mito e a realidade, é colocada sozinha a atravessar a linha de fogo, montada num burro. Afonso Sanches teve depois que se exilar.

A situação da bastardia poder ameaçar a linha legítima deve ter servido de lição a Afonso IV, que não tolerou que a cena do pai se viesse a repetir com o filho... perdido de amores por Inês de Castro.
Como "coincidência", Inês de Castro terá vivido no castelo de Albuquerque, com a tia, que era afinal Teresa Martins, mulher do bastardo Afonso Sanches. Teresa era filha do Conde de Barcelos... como veremos, os galináceos de Barcelos vão procurar sempre poleiro mais alto.

Teresa Lourenço - D. João I
Porém, a história não segue pelo lado de Inês de Castro, apesar da pretensão dos seus filhos, segue pelo lado doutra amante de D. Pedro I, uma certa Teresa Lourenço, algo incógnita, que é referida como acompanhante de Inês de Castro, ou como filha de um comerciante lisboeta.
Aljubarrota vai levar o seu filho bastardo, já promovido a Mestre de Avis, à situação de rei. A juba rota pela bastardia conseguiria a primeira juba de rei, D. João I.
Não estava em causa o valor humano, pois nada diminui um ser humano, estava em causa a lógica da legitimidade monárquica... os bastardos afinal podiam passar a reis. Tinha sido tentado com Afonso Sanches, e era conseguido com o Mestre de Avis.
Para as cortes de Coimbra contribuíram mais as Ordens Militares (de Avis, Cristo, Santiago) do que a retórica de João das Regras, já que a legitimidade de D. Beatriz era clara, apesar de estar casada com D. Juan... esse problema ocorria sempre nestas coisas! Mas, mesmo havendo a questão de independência, dificilmente o Mestre de Avis se sobrepunha em legitimidade a João de Portugal, filho de Inês de Castro, que tinha sido consagrada rainha em morte, reabilitando assim a legitimidade dos filhos. 

Inês Pires - Afonso de Bragança
Só que o precedente criado causaria uma ferida de legitimidade nos séculos seguintes. A nobreza, que tinha alinhado pela legitimidade, era substituída por nova nobreza.
Novos actores, o mesmo guião.
A bastardia voltava a colocar-se com Afonso, filho do Mestre de Avis com Inês Pires.
O pai passava de bastardo a rei, e certamente que o filho do Mestre poderia ser opção na sucessão... era uma questão do pai se empenhar tanto quanto tinha feito D. Dinis por Afonso Sanches.
Só que D. João vai casar-se com Filipa de Lencastre, e as esperanças de Afonso resumem-se ao casamento arranjado com a filha de Nun'Álvares, então já tornado poderoso Conde de Barcelos, com domínios de terras que rivalizavam com os reais.
Por muito que tente... e o galo de Barcelos vai cantar muito, conseguindo depois criar o ducado de Bragança, a casa do bastardo Afonso só irá tomar o poder muito depois: - Após ter trazido os espanhóis e ter-se livre deles, em 1640.
Afonso vai destabilizar a corte até Alfarrobeira, provocando a morte do meio-irmão, Infante D. Pedro, que o tinha feito duque... Pedro, duque de Coimbra, pensara que igual tratamento seria suficiente para Afonso, criando o ducado de Bragança, mas não era. A influência dos Bragança já estava em Castela, e a aposta na neta - Isabel, a Católica, seria ganha contra D. Afonso V e D. João II, que apoiavam Joana.

Ana Mendonça - Jorge Lancastre
D. João II procurará eliminar a questão Bragança, ou dos galos de Barcelos, executando o filho de Afonso, Fernando, mas o problema da bastardia voltaria a colocar-se com a morte do príncipe Afonso.
D. João II procura legitimar o seu bastardo Jorge (filho de Ana Mendonça), algo que seria perfeitamente natural no quadro ilegítimo que iniciara a própria dinastia de Avis, uma vez que não havia sucessores... porém, afastados pela bastardia, os Bragança não iriam agora tolerar excepções. 
Assim, a linha segue com o primo, D. Manuel, mas há uma efectiva quebra de Dinastia. 
Manuel não sucede a D. Afonso V, nem a D. João II. No panteão da Batalha só teria o avô D. Duarte, e o bisavô D. João I, e por isso constrói um novo panteão nos Jerónimos.
Será na Dinastia Avis-Beja a continuação do ducado de Viseu, iniciado com o Infante D. Henrique. O ducado de Coimbra teria em D. João II um rei único. Depois de Viseu, chegaria a vez dos Bragança, não sem antes convidarem os espanhóis.

Violante Gomes - D. António
Quando volta a colocar-se o problema da bastardia?
Tal como D. Manuel era primo de D. João II, também depois o eram os seus netos, Filipe II de Espanha e o Cardeal D. Henrique. Assim, pela morte de D. Sebastião, a questão da legitimidade apontava de novo para a vizinha Espanha quando morre o velho cardeal... 
O cenário repetia-se. A nova nobreza, pela questão legitimista, ainda que tivesse toda resultado dessa quebra de legitimidade, alinharia pela lógica intrínseca ao seu poder... o poder legal. Os Bragança, excluídos pela bastardia, alinhariam nessa lógica, com promessas de terras, mais do que haviam perdido com D. João II. 
Do outro lado estava D. António I, Prior do Crato - mais um bastardo... também neto de D. Manuel, filho do Infante Luís com Violante Gomes (dita "a Pelicana", dita judia). Obteve algum apoio, pouco, tentou resistir ao Duque de Alba, desembarcado em Cascais sem problemas, mas perdeu a Batalha de Alcântara. Filipe II poderia fazer a sua entrada triunfal em Lisboa.

Alfacinhas de gema, amigos da onça, e os amigos de Peniche, a ver navios
Chegamos assim ao período em que "andava o diabo em casa do Alfacinha".
"Demon-du-midi", ou diabo, foi designação colada a Filipe II pelos franceses, ameaçados pelo seu poder crescente. Quanto à alfacinha...
Alfacinha (Lechuguilla): certo género de cabeções e de punhos de camisa muito grandes e bem engomados, frisado com ferro em forma de folhas de alface, e que se usavam muito no tempo de Filipe II de Espanha.
Dicionário espanhol-português (pg. 1004) de Manuel Mascarenhas Valdez (1864)
Não é difícil encontrar esses exemplares de "alfacinhas" em quadros da época, era moda usada pela burguesia e pela aristocracia. Os que usavam alfacinhas estavam na elite lisboeta.
Quanto às gemas preciosas e às onças de ouro... (como bem salientou o José Manuel), podem ser ilustradas pelo monumental Arco dos Ourives e Lapidários
a imagem do centro é do Filipe II (III), alfacinha, conforme é ilustrado
no blog "do Porto e não só"... 

A grande alface abria a sua face, recebendo Filipe II com múltiplos Arcos Triunfais, conforme ilustrado no antigo postal que fizemos sobre a Monumentália Filipina Lisboeta, e depois ainda melhor ilustrado no blog "do Porto e não só".
O que aconteceu a tantos arcos? - foram destruídos. Porque a memória era algo inconveniente. 
Por exemplo, o "Arco do Ouro" e o "Arco do Espinho" caíram em 1754... o terramoto, relembramos, foi em 1755. Ficou um só Arco, sobre a Rua Augusta... acho que esse e todos os outros podem ser vistos simbolicamente na designação "Arco do Cego" (zona de Lisboa, onde não há hoje nenhum arco, diz-se que foi demolido para facilitar a passagem do coche de D. João V quando ia a banhos às Caldas).

D. António I não deixou de procurar apoios para recuperar o trono que lhe fora fugaz... conseguiu convencer Isabel I de Inglaterra, e uma frota de Francis Drake entraria por Cascais isolando a cidade, enquanto outra, de Norris, desembarcaria em Peniche.

Uma parte do plano não funcionou... contava-se que Lisboa se revoltasse, e apoiasse D. António. E parecendo querer puxar a imagem do Mestre de Avis, que entrara em 28 de Maio de 1384, pelas portas de Santa Cantarina, D. António ataca aí, também junto à contígua Porta da Trindade:
 "D. António atacou Lisboa aos 3 de Junho de 1589, com o exercito Inglez que o auxiliava, fazendo grande destruição, e pondo fogo a todos os edifícios exteriores do seu muro, e das circumvizinhas". (Revista Panorama, 1838, vol. 1-2, pág. 339).
Porém, D. António terá "ficado a ver navios do alto de Santa Catarina".
Drake aguardava, e parece não ter investido o suficiente, pois esperava-se que a alface se abrisse com a coragem de D. António, mas isso parece não ter bastado à salada.
Os alfacinhas revoltaram-se? 
Abriram as portas ao rei português e libertaram-se do jugo espanhol?
Os alfacinhas de gema, mais amigos da onça, parece que não... 

Poderiam queixar-se de não ver os "amigos de Peniche", ou seja, um exército inglês ainda maior, mas de facto Lisboa já não alinhava com os ingleses. Foi de Lisboa que zarpara a Armada Invencível, um ano antes, em 1588, e o lado português, pelo menos lisboeta, era o lado espanhol, ibérico.
A designação "gema" pode até ser mais "gémea", pois Lisboa via-se como gémea de Madrid, e os lisboetas estavam mais preocupados em convencer Filipe II a trazer a capital para Lisboa. Essa alusão está aliás no arco dos ourives.

A guerra de D. António, filho da "Pelicana" (em clara alusão a D. João II), era também uma guerra contra os Bragança, altamente favorecidos por Filipe II, e dificilmente uma revolta aconteceria fora da teia cortesã montada por uma casa que nunca reconheceria outros bastardos. Para bastardos, estavam lá eles... e por isso a Restauração só foi feita com os descendentes do Barbadão, em 1640. A desonra do pai de Inês Pires, sapateiro que não cortara as barbas devido ao "deslize" da filha, tinha honras de comandar um Império de Timor ao Brasil. Sobre alguma honrada irmã de Inês Pires... pois, é óbvio que não sabemos o destino da descendência popular.

Esse enguiço da casa de Bragança, que os perturbou além do racional, durante séculos, levou à extinção da concorrente Casa de Aveiro, da descendência do bastardo pelicano, D. Jorge. Foi o conhecido Processo dos Távoras, onde, para além dos Távoras, se eliminou o último duque e se extinguiu a casa que de Coimbra fora forçada a chamar-se Aveiro por D. Manuel. Curiosamente, o nome ligado ainda a essa descendência é Abrantes... local onde D. João II simulara a execução do Bragança fugitivo, e convém não esquecer a expressão "tudo como dantes, quartel-general em Abrantes"... aplicada à invasão francesa de Junot, mas em que a escolha de quartel pode não ser tão mole quanto parecem os ovos.

Poderia continuar... mas o texto já vai longo. 
Há muitos detalhes que ficam sempre por dizer. 
Escolho alguns sortidos.

A lista da Revista Panorama, de 27 de Outubro de 1838, vol. 1-2, pág. 337 ... comunicada por um "anónimo", é excelente. Aprende-se muito sobre o que existiu e desapareceu na cidade de Lisboa. As referências às destruições pelo "terramoto" de 1755 são nalguns casos deliciosamente subtis, invocando explícita ou implicitamente outra origem na destruição.

Podemos ver que "Abaixo da Porta Moniz, na Costa do Castelo, existiu uma povoação chamada Villa Quente, que foi submergida pelo lastimoso terremoto que sucedeu em Lisboa a 26 de Janeiro de 1531".
Portanto, o famoso maremoto foi mesmo em 1531... quando se construiu o Bairro Alto.

Outro exemplo, é pouco conhecido - e nada divulgado - que a Universidade fundada em Lisboa por D. Dinis esteve sediada no Pátio dos Quintalinhos... não fui lá, não sei se estas imagens correspondem ou não a essa glória da cultura nacional:
Onde foi a primeira universidade? 1290 - Pátio dos Quintalinhos, Lisboa.
... ou como os alfacinhas de gema guardaram o seu património histórico.
À atenção dos responsáveis camarários, a bem do turismo ou cultura... 
... que façam uso dos seus instrumentos de maçonaria fora das negociatas.

Conforme é dito na Revista Panorama, houve aí a velha Casa da Moeda, onde D. Dinis teria instalado inicialmente a Universidade, e acrescentamos, onde depois D. Manuel colocou os Estudos-Gerais.
Apesar da página no CNC, tem sido apontado para local da universidade o Largo do Carmo... mas para esse, há outras comemorações, ao que parece de uma revolução que, como o nome indica - na revolta, a volta repete-se. 
Afinal entre o Quartel do Carmo e a Porta da Trindade (de D. António), será tudo como dantes, Quartel-General em Abrantes?

Serão detalhes do arco-da-velha (expressão antiga usada para o arco-íris, por invocar lei velha do acordo entre Deus e os homens), e assim termino com o diálogo entre "Archia" e "Íris", da peça/ópera "Encantos de Circe" (1756), que ilustra diversos arcos... e praças.

Íris: Na verdade, tão cativo estás de mim?
Arch: E tão cativo, que se me viessem resgatar, me faria um renegado de Grécia, só por estar na masmorra da tua graça.
Íris: Tão bem te pareço?
Arch: Já que és Íris, por arcos te explico a tua beleza; porque comparo as tuas sobrancelhas aos Arcos da Capella; os teus olhos ao Arco do Cego; o nariz ao Arco dos Pregos; a boca ao Arco das Mentiras; o pescoço ao Arco do Espinho; o corpo ao Arco do Garajão; e toda tu és um arco da velha, e sendo toda arco, não vi coisa mais desarcada.
Íris: Não te pareça que menos agradada estou de ti; e por praças te retratarei: e assim é a tua testa praça vazia, os teus olhos Praça do Remolares; o nariz Praça do Castelo; a boca Praça da Palha; o pescoço Praça do Pelourinho; o corpo praça morta; e sendo tu homem de tantas praças, não vi homem de menos praça.
Íris vai-se.
Arch: Parece que lhe não agradou o retrato, se já não é que por ser já noite, não deve aparecer este arco da velha.

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publicado às 05:51

Tendo em conta dois comentários recentes, um do José Manuel sobre os alfacinhas, e outro da Maria da Fonte sobre a realeza de linha bastarda, podemos juntar os temas.

Quem quiser acreditar que a terminologia "alfacinha" resulta de um gosto lisboeta por alfaces, pode terminar aqui a leitura.
O resto do texto destina-se apenas aos que não se contentam com essa explicação. Essa é, aliás, uma linha principal deste blog... para além de procurar mostrar contradições das versões habituais, procura uma visão com nexo alargado. 
Ora não há contradição nenhuma em associar alfaces ao lisboetas, podiam ser tomates... mas, à falta de tomates, ficaram as alfaces. Portanto, não havendo aqui contradição, não podemos dizer que a salada está mal feita... a única coisa que fazemos é, digamos, juntar tomates à história. E sim, por vezes, exageramos na quantidade de sal e azeite, e até juntamos cebola.

Adiante. 
A história vai começar nos campos de Alvalade, com ou sem alfaces. 
Será longa, porque o nexo mereceu-me a pena de ser estabelecido.

A ocorrência de bastardos reais deve ser tão velha quanto a existência de reis... no entanto, só seria um problema se alguma força apoiasse uma linha não legítima, de acordo com a tradição real.
Certamente por acaso, isso ocorreu assim que os templários se estabeleceram em Portugal, acolhidos por D. Dinis.

Aldonça Talha - Afonso Sanches
De entre muitos bastardos, D. Dinis reconheceu um, Afonso Sanches como legítimo, o que colocaria em causa a sucessão de D. Afonso IV, o único filho da Rainha Santa Isabel, dois anos mais novo que o irmão bastardo. A agravar a situação, D. Dinis colocava-o mesmo no testamento de sucessão...

D. Afonso IV, o Bravo, que foi decisivo para a histórica Batalha do Salado... montou arraiais nos campos do Lumiar,  juntando exército contra o pai, e a batalha esteve às portas de Lisboa, nos campos de Alvalade. Sendo incerto saber qual dos campos tinha tomates ou alfaces, temos a nossa opinião sobre esta outra salada, antes da batalha do Salado.
Consta que uma intervenção algo miraculosa da Rainha Santa Isabel teria evitado que o confronto prosseguisse... e, entre o mito e a realidade, é colocada sozinha a atravessar a linha de fogo, montada num burro. Afonso Sanches teve depois que se exilar.

A situação da bastardia poder ameaçar a linha legítima deve ter servido de lição a Afonso IV, que não tolerou que a cena do pai se viesse a repetir com o filho... perdido de amores por Inês de Castro.
Como "coincidência", Inês de Castro terá vivido no castelo de Albuquerque, com a tia, que era afinal Teresa Martins, mulher do bastardo Afonso Sanches. Teresa era filha do Conde de Barcelos... como veremos, os galináceos de Barcelos vão procurar sempre poleiro mais alto.

Teresa Lourenço - D. João I
Porém, a história não segue pelo lado de Inês de Castro, apesar da pretensão dos seus filhos, segue pelo lado doutra amante de D. Pedro I, uma certa Teresa Lourenço, algo incógnita, que é referida como acompanhante de Inês de Castro, ou como filha de um comerciante lisboeta.
Aljubarrota vai levar o seu filho bastardo, já promovido a Mestre de Avis, à situação de rei. A juba rota pela bastardia conseguiria a primeira juba de rei, D. João I.
Não estava em causa o valor humano, pois nada diminui um ser humano, estava em causa a lógica da legitimidade monárquica... os bastardos afinal podiam passar a reis. Tinha sido tentado com Afonso Sanches, e era conseguido com o Mestre de Avis.
Para as cortes de Coimbra contribuíram mais as Ordens Militares (de Avis, Cristo, Santiago) do que a retórica de João das Regras, já que a legitimidade de D. Beatriz era clara, apesar de estar casada com D. Juan... esse problema ocorria sempre nestas coisas! Mas, mesmo havendo a questão de independência, dificilmente o Mestre de Avis se sobrepunha em legitimidade a João de Portugal, filho de Inês de Castro, que tinha sido consagrada rainha em morte, reabilitando assim a legitimidade dos filhos. 

Inês Pires - Afonso de Bragança
Só que o precedente criado causaria uma ferida de legitimidade nos séculos seguintes. A nobreza, que tinha alinhado pela legitimidade, era substituída por nova nobreza.
Novos actores, o mesmo guião.
A bastardia voltava a colocar-se com Afonso, filho do Mestre de Avis com Inês Pires.
O pai passava de bastardo a rei, e certamente que o filho do Mestre poderia ser opção na sucessão... era uma questão do pai se empenhar tanto quanto tinha feito D. Dinis por Afonso Sanches.
Só que D. João vai casar-se com Filipa de Lencastre, e as esperanças de Afonso resumem-se ao casamento arranjado com a filha de Nun'Álvares, então já tornado poderoso Conde de Barcelos, com domínios de terras que rivalizavam com os reais.
Por muito que tente... e o galo de Barcelos vai cantar muito, conseguindo depois criar o ducado de Bragança, a casa do bastardo Afonso só irá tomar o poder muito depois: - Após ter trazido os espanhóis e ter-se livre deles, em 1640.
Afonso vai destabilizar a corte até Alfarrobeira, provocando a morte do meio-irmão, Infante D. Pedro, que o tinha feito duque... Pedro, duque de Coimbra, pensara que igual tratamento seria suficiente para Afonso, criando o ducado de Bragança, mas não era. A influência dos Bragança já estava em Castela, e a aposta na neta - Isabel, a Católica, seria ganha contra D. Afonso V e D. João II, que apoiavam Joana.

Ana Mendonça - Jorge Lancastre
D. João II procurará eliminar a questão Bragança, ou dos galos de Barcelos, executando o filho de Afonso, Fernando, mas o problema da bastardia voltaria a colocar-se com a morte do príncipe Afonso.
D. João II procura legitimar o seu bastardo Jorge (filho de Ana Mendonça), algo que seria perfeitamente natural no quadro ilegítimo que iniciara a própria dinastia de Avis, uma vez que não havia sucessores... porém, afastados pela bastardia, os Bragança não iriam agora tolerar excepções. 
Assim, a linha segue com o primo, D. Manuel, mas há uma efectiva quebra de Dinastia. 
Manuel não sucede a D. Afonso V, nem a D. João II. No panteão da Batalha só teria o avô D. Duarte, e o bisavô D. João I, e por isso constrói um novo panteão nos Jerónimos.
Será na Dinastia Avis-Beja a continuação do ducado de Viseu, iniciado com o Infante D. Henrique. O ducado de Coimbra teria em D. João II um rei único. Depois de Viseu, chegaria a vez dos Bragança, não sem antes convidarem os espanhóis.

Violante Gomes - D. António
Quando volta a colocar-se o problema da bastardia?
Tal como D. Manuel era primo de D. João II, também depois o eram os seus netos, Filipe II de Espanha e o Cardeal D. Henrique. Assim, pela morte de D. Sebastião, a questão da legitimidade apontava de novo para a vizinha Espanha quando morre o velho cardeal... 
O cenário repetia-se. A nova nobreza, pela questão legitimista, ainda que tivesse toda resultado dessa quebra de legitimidade, alinharia pela lógica intrínseca ao seu poder... o poder legal. Os Bragança, excluídos pela bastardia, alinhariam nessa lógica, com promessas de terras, mais do que haviam perdido com D. João II. 
Do outro lado estava D. António I, Prior do Crato - mais um bastardo... também neto de D. Manuel, filho do Infante Luís com Violante Gomes (dita "a Pelicana", dita judia). Obteve algum apoio, pouco, tentou resistir ao Duque de Alba, desembarcado em Cascais sem problemas, mas perdeu a Batalha de Alcântara. Filipe II poderia fazer a sua entrada triunfal em Lisboa.

Alfacinhas de gema, amigos da onça, e os amigos de Peniche, a ver navios
Chegamos assim ao período em que "andava o diabo em casa do Alfacinha".
"Demon-du-midi", ou diabo, foi designação colada a Filipe II pelos franceses, ameaçados pelo seu poder crescente. Quanto à alfacinha...
Alfacinha (Lechuguilla): certo género de cabeções e de punhos de camisa muito grandes e bem engomados, frisado com ferro em forma de folhas de alface, e que se usavam muito no tempo de Filipe II de Espanha.
Dicionário espanhol-português (pg. 1004) de Manuel Mascarenhas Valdez (1864)
Não é difícil encontrar esses exemplares de "alfacinhas" em quadros da época, era moda usada pela burguesia e pela aristocracia. Os que usavam alfacinhas estavam na elite lisboeta.
Quanto às gemas preciosas e às onças de ouro... (como bem salientou o José Manuel), podem ser ilustradas pelo monumental Arco dos Ourives e Lapidários
a imagem do centro é do Filipe II, alfacinha, conforme é ilustrado
no blog "do Porto e não só"... 

A grande alface abria a sua face, recebendo Filipe II com múltiplos Arcos Triunfais, conforme ilustrado no antigo postal que fizemos sobre a Monumentália Filipina Lisboeta, e depois ainda melhor ilustrado no blog "do Porto e não só".
O que aconteceu a tantos arcos? - foram destruídos. Porque a memória era algo inconveniente. 
Por exemplo, o "Arco do Ouro" e o "Arco do Espinho" caíram em 1754... o terramoto, relembramos, foi em 1755. Ficou um só Arco, sobre a Rua Augusta... acho que esse e todos os outros podem ser vistos simbolicamente na designação "Arco do Cego" (zona de Lisboa, onde não há hoje nenhum arco, diz-se que foi demolido para facilitar a passagem do coche de D. João V quando ia a banhos às Caldas).

D. António I não deixou de procurar apoios para recuperar o trono que lhe fora fugaz... conseguiu convencer Isabel I de Inglaterra, e uma frota de Francis Drake entraria por Cascais isolando a cidade, enquanto outra, de Norris, desembarcaria em Peniche.

Uma parte do plano não funcionou... contava-se que Lisboa se revoltasse, e apoiasse D. António. E parecendo querer puxar a imagem do Mestre de Avis, que entrara em 28 de Maio de 1384, pelas portas de Santa Cantarina, D. António ataca aí, também junto à contígua Porta da Trindade:
 "D. António atacou Lisboa aos 3 de Junho de 1589, com o exercito Inglez que o auxiliava, fazendo grande destruição, e pondo fogo a todos os edifícios exteriores do seu muro, e das circumvizinhas". (Revista Panorama, 1838, vol. 1-2, pág. 339).
Porém, D. António terá "ficado a ver navios do alto de Santa Catarina".
Drake aguardava, e parece não ter investido o suficiente, pois esperava-se que a alface se abrisse com a coragem de D. António, mas isso parece não ter bastado à salada.
Os alfacinhas revoltaram-se? 
Abriram as portas ao rei português e libertaram-se do jugo espanhol?
Os alfacinhas de gema, mais amigos da onça, parece que não... 

Poderiam queixar-se de não ver os "amigos de Peniche", ou seja, um exército inglês ainda maior, mas de facto Lisboa já não alinhava com os ingleses. Foi de Lisboa que zarpara a Armada Invencível, um ano antes, em 1588, e o lado português, pelo menos lisboeta, era o lado espanhol, ibérico.
A designação "gema" pode até ser mais "gémea", pois Lisboa via-se como gémea de Madrid, e os lisboetas estavam mais preocupados em convencer Filipe II a trazer a capital para Lisboa. Essa alusão está aliás no arco dos ourives.

A guerra de D. António, filho da "Pelicana" (em clara alusão a D. João II), era também uma guerra contra os Bragança, altamente favorecidos por Filipe II, e dificilmente uma revolta aconteceria fora da teia cortesã montada por uma casa que nunca reconheceria outros bastardos. Para bastardos, estavam lá eles... e por isso a Restauração só foi feita com os descendentes do Barbadão, em 1640. A desonra do pai de Inês Pires, sapateiro que não cortara as barbas devido ao "deslize" da filha, tinha honras de comandar um Império de Timor ao Brasil. Sobre alguma honrada irmã de Inês Pires... pois, é óbvio que não sabemos o destino da descendência popular.

Esse enguiço da casa de Bragança, que os perturbou além do racional, durante séculos, levou à extinção da concorrente Casa de Aveiro, da descendência do bastardo pelicano, D. Jorge. Foi o conhecido Processo dos Távoras, onde, para além dos Távoras, se eliminou o último duque e se extinguiu a casa que de Coimbra fora forçada a chamar-se Aveiro por D. Manuel. Curiosamente, o nome ligado ainda a essa descendência é Abrantes... local onde D. João II simulara a execução do Bragança fugitivo, e convém não esquecer a expressão "tudo como dantes, quartel-general em Abrantes"... aplicada à invasão francesa de Junot, mas em que a escolha de quartel pode não ser tão mole quanto parecem os ovos.

Poderia continuar... mas o texto já vai longo. 
Há muitos detalhes que ficam sempre por dizer. 
Escolho alguns sortidos.

A lista da Revista Panorama, de 27 de Outubro de 1838, vol. 1-2, pág. 337 ... comunicada por um "anónimo", é excelente. Aprende-se muito sobre o que existiu e desapareceu na cidade de Lisboa. As referências às destruições pelo "terramoto" de 1755 são nalguns casos deliciosamente subtis, invocando explícita ou implicitamente outra origem na destruição.

Podemos ver que "Abaixo da Porta Moniz, na Costa do Castelo, existiu uma povoação chamada Villa Quente, que foi submergida pelo lastimoso terremoto que sucedeu em Lisboa a 26 de Janeiro de 1531".
Portanto, o famoso maremoto foi mesmo em 1531... quando se construiu o Bairro Alto.

Outro exemplo, é pouco conhecido - e nada divulgado - que a Universidade fundada em Lisboa por D. Dinis esteve sediada no Pátio dos Quintalinhos... não fui lá, não sei se estas imagens correspondem ou não a essa glória da cultura nacional:
Onde foi a primeira universidade? 1290 - Pátio dos Quintalinhos, Lisboa.
... ou como os alfacinhas de gema guardaram o seu património histórico.
À atenção dos responsáveis camarários, a bem do turismo ou cultura... 
... que façam uso dos seus instrumentos de maçonaria fora das negociatas.

Conforme é dito na Revista Panorama, houve aí a velha Casa da Moeda, onde D. Dinis teria instalado inicialmente a Universidade, e acrescentamos, onde depois D. Manuel colocou os Estudos-Gerais.
Apesar da página no CNC, tem sido apontado para local da universidade o Largo do Carmo... mas para esse, há outras comemorações, ao que parece de uma revolução que, como o nome indica - na revolta, a volta repete-se. 
Afinal entre o Quartel do Carmo e a Porta da Trindade (de D. António), será tudo como dantes, Quartel-General em Abrantes?

Serão detalhes do arco-da-velha (expressão antiga usada para o arco-íris, por invocar lei velha do acordo entre Deus e os homens), e assim termino com o diálogo entre "Archia" e "Íris", da peça/ópera "Encantos de Circe" (1756), que ilustra diversos arcos... e praças.

Íris: Na verdade, tão cativo estás de mim?
Arch: E tão cativo, que se me viessem resgatar, me faria um renegado de Grécia, só por estar na masmorra da tua graça.
Íris: Tão bem te pareço?
Arch: Já que és Íris, por arcos te explico a tua beleza; porque comparo as tuas sobrancelhas aos Arcos da Capella; os teus olhos ao Arco do Cego; o nariz ao Arco dos Pregos; a boca ao Arco das Mentiras; o pescoço ao Arco do Espinho; o corpo ao Arco do Garajão; e toda tu és um arco da velha, e sendo toda arco, não vi coisa mais desarcada.
Íris: Não te pareça que menos agradada estou de ti; e por praças te retratarei: e assim é a tua testa praça vazia, os teus olhos Praça do Remolares; o nariz Praça do Castelo; a boca Praça da Palha; o pescoço Praça do Pelourinho; o corpo praça morta; e sendo tu homem de tantas praças, não vi homem de menos praça.
Íris vai-se.
Arch: Parece que lhe não agradou o retrato, se já não é que por ser já noite, não deve aparecer este arco da velha.

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publicado às 05:51

"Outros Quinhentos" é uma expressão razoavelmente popular cuja origem parece algo incerta. Uma das várias explicações que vi apontava para uma coima por injúria à elite nobre.

Deveríamos ter entrado este ano com alguma comemoração relativa à primeira notícia da chegada a Timor. Essa notícia remetia para Janeiro de 1514, e portanto estão já quinhentos anos passados. 
Outros quinhentos anos passaram sobre a notícia da chegada à China de Jorge Álvares, em 1513.

Não houve comemoração significativa destes quinhentos, porquê? São precisos outros quinhentos?
É claro que se pode falar da "crise"... a tal crise selectiva que só afecta parte da estrutura, mas como é óbvio não há nenhuma crise económica que impedisse que se falasse abundantemente do assunto.
A menos, é claro, que tal crise impusesse uma qualquer chantagem que impedisse a menção desse período épico português. Bom, mas isso seria alinhar por uma daquelas teorias da conspiração - sei lá, que os judeus não esqueciam a expulsão ibérica, e que do muro das lamentações de Wall Street imporiam um enorme garrote financeiro. Qualquer coisa absurda desse género.
Ora, como isso não parece fazer sentido nenhum, resta a habitual incompetência e insensibilidade governativa... por acaso de um governo da ala mais ligada aos símbolos da história nacional.
Portanto, esta explicação também parece muito incompetente, e ficamos perdidos. 
Serão outros quinhentos?

É claro que se pode argumentar que a vice-regência de Afonso de Albuquerque foi muito traumática no Oriente, e conviria não hostilizar parceiros comerciais com "más lembranças"... mas dificilmente há herdeiros directos desses reinos, e o "politicamente correcto" não chegaria ao ponto de se evitar a comemoração intramuros. 
O "César do Oriente", como foi epitetado, estabeleceu de facto um domínio completo sobre o Índico, abrindo a comunicação directa à China após a conquista de Malaca em 1511, o que libertou a entrada no estreito. Podem-se questionar as datas a partir daqui... logo de seguida, os navios com bandeira portuguesa navegaram pelas diversas ilhas indonésias, até atingirem as Molucas e Timor. Pode ter sido um, dois ou três anos depois, mas é difícil de acreditar que a maioria das ilhas da Indonésia até à Austrália não foi pelo menos avistada, e em grande parte cartografada durante a regência de Afonso de Albuquerque. Quando Pedro Nunes refere que tudo tinha sido descoberto, desde a mais remota ilha ao simples penedo ou baixio, reporta mais de 20 anos depois, mas é natural que o conhecimento global já estivesse presente em 1514 como atesta o Globo do Mapa de Marinharia.

Apesar de haver quem esteja disposto a todo o folclore da negação (e é claro, com espaço de antena para isso), a chegada a Timor em 1514 (pelo menos) é confirmada por Armando Cortesão (Esparsos, Vol. 3, pag. 326, Acta Univ. Conimbrigensis, 1975), que diz o seguinte:
"Na Suma Oriental confirma Tomé Pires esta viagem do junco português à China, quando, escrevendo em Dezembro de 1513, ou começo de Janeiro de 1514, informa: «Lugares onde os nosso juncos e naus foram; as nossas naus a Java, a Banda, a China. Junco é a Pacee(?), a Paleacate(?); agora vão a Timor por sândalos, e vão a outras partes e foi já nosso junco a Pegú ao porto de Martaniane(?)» (fol. 177r) (118). A informação tem ainda o valor especial de nos dizer, de fonte bem autorizada e fidedigna, quem em 1514 foi um junco de Portugueses a Timor, em que iriam Portugueses, como foram nos outros (119).
Na nota (119) menciona-se uma carta de Rui de Brito que diz que não teriam então chegado a Timor, mas o próprio Cortesão esclarece que Brito fala do passado e Pires do presente, 1514. No passado mês de Fevereiro Xanana Gusmão esteve em Portugal, e como podemos ler, não houve menção a esse evento histórico na comunicação social.

Bom, mas este texto não é certamente sobre política, manipulação histórica, nem tão pouco para lamentar a falta de comemorações, sempre muito desligadas da população... Cada macaco no seu galho, e à racionalidade humana só compete distinguir naturais incertezas de evidentes contradições.

Este texto é sobre outros quinhentos: - Nan Madol.
 
Nan Madol - Micronésia (Ilhas Carolinas)

Por lapso, esqueci-me de juntar este conjunto monumental no texto Lemuria, onde referi a pedra-dinheiro de Palau... Foi agora num comentário de Maria da Fonte que relembrei que este monumento ainda não tinha aqui tido nenhuma referência, apesar de ser várias vezes falado nos comentários, ligado à ideia do continente perdido, Mu. 
Não vou falar sobre Mu, porque já de alguma forma foi mencionado no texto sobre a Lemuria, e penso tratar-se do mesmo mito. Há por vezes ideias sobre continentes de dimensões gigantescas, como se isso acrescentasse dimensão à civilização. Na realidade basta reparar na enorme superfície euro-asiática para perceber que é na sua maioria inabitada. O mesmo se passa na América, basta reparar na grande Amazónia ou no enorme Canadá. Mesmo com 6 biliões de pessoas, a nossa concentração dá-se em pontos muito particulares... e ilhas de dimensão menor, como o arquipélago do Japão, podem oferecer um grande desenvolvimento. Por isso, a ideia de continentes de grande dimensão apenas traria mais terra inabitada a um planeta que já tem muita terra inabitada.
Conforme referi no texto sobre Lemuria, o aumento do nível do mar terá submergido uma grande parte da região da Melanésia, então contígua da Malásia até às ilhas da Nova-Guiné. Essa parte era suficientemente extensa para corresponder ao afundamento de uma superfície semelhante à da Austrália, justificando-se perfeitamente essa associação mítica àquelas paragens.

O complexo monumental de Nan Madol não revela nenhum surpreendente esplendor técnico, mas é notável do ponto de vista megalítico, e remete mais uma vez para uma parte da história que parece ter submergido juntamente com Mu. Essa submersão não vem apenas de natural falta de dados, vem de propositada ocultação ou distorção. 

Damos um exemplo ilustrativo. O texto de Armando Cortesão foi encontrado ao procurar informação adicional sobre as Ilhas Carolinas. Essa descoberta é atribuída a Gomes de Sequeira em 1525 (ou Janeiro de 1526, ver pág. 320 de Esparsos, vol. III). Pelo menos a ilha de Palau deverá ter tido o nome de Sequeira, antes de passarem a ser nomeadas Novas-Filipinas, por Álvaro Saavedra em 1529, e depois Carolinas, por respeito ao imperador espanhol Carlos (V?). 
Esta nomeação de Carolinas é encontrada em quase todo o lado, mas há uma versão diferente. Numa tradução de Jacques Arago, viajante francês, lemos ("De um a outro pólo", pág. 177) numa nota de rodapé que afinal teria sido o espanhol Ponce de Léon (!!!) a descobri-las em 1512, e que o nome Carolinas era devido a Carlos IX, rei francês, é claro, e que o nome teria sido mantido por Carlos II, rei inglês. O facto dos nomes reais serem moda numa certa época permite estas variações, em que nomes similares servem vários propósitos ambíguos, só faltava um Karl germânico, para justificar Karolinen sob sua alçada. Só encontrámos na tradução do livro de Arago tal versão afrancesada, mas presumo que tenha origem noutra fonte. Isto mostra suficientemente como as tentativas de alterar o registo histórico foram constantes e tiveram frequentemente origem nas mesmas paragens europeias.

A contrario desta tentativa francesa, Cortesão procura provar que a viagem de Sequeira não teria chegado à Austrália, como entretanto foi pretendido, e dá uma justificação pelos relatos e pelos ventos... De facto a documentação existente não parece ter nenhuma referência directa à Austrália, até porque não seria assim nomeada à época, como é natural. Os mapas que Cortesão conhecia pareciam estar fora de uso para fazer prova. Não parecia haver nome, nem registo da navegação que teria permitido fazê-los. No entanto, esses mapas existem e mostram o conhecimento completo à época de D. Sebastião, pelo menos. Qualquer outra pretensão é apenas pura formalidade burocrática ou cegueira.


Nota adicional (01/04/2014):
Esta referência a Nan Madol foi colocada há já muito tempo num comentário de José Manuel, onde se refere a descoberta de Nan Madol por Pedro Fernandes Queirós e a sua associação à colónia de Nova Jerusalém, por vezes ligada também a Vanuatu.
Mapa de 1612 de Hessel Gerritsz onde se aponta a Australis Incognitae 
a uma descoberta de Queirós.
Este mapa é especialmente relevante por ser holandês...

Já tínhamos aqui mencionado o cartógrafo holandês Gerritsz, que em 1618, ou seja passados 6 anos, já poderá desenhar a costa australiana ocidental com toda a precisão... de Queirós, a Australia terá apenas herdado o nome com que a baptizara - Australia do Espírito Santo.
Qual a diferença entre 1612 e 1618?
Em 1618 é declarada a Guerra dos Trinta Anos, e a Holanda vai aparecer como autónoma reivindicando então o seu quinhão de descobertas, então ocultas, nomeadamente a Australia.

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publicado às 06:24

"Outros Quinhentos" é uma expressão razoavelmente popular cuja origem parece algo incerta. Uma das várias explicações que vi apontava para uma coima por injúria à elite nobre.

Deveríamos ter entrado este ano com alguma comemoração relativa à primeira notícia da chegada a Timor. Essa notícia remetia para Janeiro de 1514, e portanto estão já quinhentos anos passados. 
Outros quinhentos anos passaram sobre a notícia da chegada à China de Jorge Álvares, em 1513.

Não houve comemoração significativa destes quinhentos, porquê? São precisos outros quinhentos?
É claro que se pode falar da "crise"... a tal crise selectiva que só afecta parte da estrutura, mas como é óbvio não há nenhuma crise económica que impedisse que se falasse abundantemente do assunto.
A menos, é claro, que tal crise impusesse uma qualquer chantagem que impedisse a menção desse período épico português. Bom, mas isso seria alinhar por uma daquelas teorias da conspiração - sei lá, que os judeus não esqueciam a expulsão ibérica, e que do muro das lamentações de Wall Street imporiam um enorme garrote financeiro. Qualquer coisa absurda desse género.
Ora, como isso não parece fazer sentido nenhum, resta a habitual incompetência e insensibilidade governativa... por acaso de um governo da ala mais ligada aos símbolos da história nacional.
Portanto, esta explicação também parece muito incompetente, e ficamos perdidos. 
Serão outros quinhentos?

É claro que se pode argumentar que a vice-regência de Afonso de Albuquerque foi muito traumática no Oriente, e conviria não hostilizar parceiros comerciais com "más lembranças"... mas dificilmente há herdeiros directos desses reinos, e o "politicamente correcto" não chegaria ao ponto de se evitar a comemoração intramuros. 
O "César do Oriente", como foi epitetado, estabeleceu de facto um domínio completo sobre o Índico, abrindo a comunicação directa à China após a conquista de Malaca em 1511, o que libertou a entrada no estreito. Podem-se questionar as datas a partir daqui... logo de seguida, os navios com bandeira portuguesa navegaram pelas diversas ilhas indonésias, até atingirem as Molucas e Timor. Pode ter sido um, dois ou três anos depois, mas é difícil de acreditar que a maioria das ilhas da Indonésia até à Austrália não foi pelo menos avistada, e em grande parte cartografada durante a regência de Afonso de Albuquerque. Quando Pedro Nunes refere que tudo tinha sido descoberto, desde a mais remota ilha ao simples penedo ou baixio, reporta mais de 20 anos depois, mas é natural que o conhecimento global já estivesse presente em 1514 como atesta o Globo do Mapa de Marinharia.

Apesar de haver quem esteja disposto a todo o folclore da negação (e é claro, com espaço de antena para isso), a chegada a Timor em 1514 (pelo menos) é confirmada por Armando Cortesão (Esparsos, Vol. 3, pag. 326, Acta Univ. Conimbrigensis, 1975), que diz o seguinte:
"Na Suma Oriental confirma Tomé Pires esta viagem do junco português à China, quando, escrevendo em Dezembro de 1513, ou começo de Janeiro de 1514, informa: «Lugares onde os nosso juncos e naus foram; as nossas naus a Java, a Banda, a China. Junco é a Pacee(?), a Paleacate(?); agora vão a Timor por sândalos, e vão a outras partes e foi já nosso junco a Pegú ao porto de Martaniane(?)» (fol. 177r) (118). A informação tem ainda o valor especial de nos dizer, de fonte bem autorizada e fidedigna, quem em 1514 foi um junco de Portugueses a Timor, em que iriam Portugueses, como foram nos outros (119).
Na nota (119) menciona-se uma carta de Rui de Brito que diz que não teriam então chegado a Timor, mas o próprio Cortesão esclarece que Brito fala do passado e Pires do presente, 1514. No passado mês de Fevereiro Xanana Gusmão esteve em Portugal, e como podemos ler, não houve menção a esse evento histórico na comunicação social.

Bom, mas este texto não é certamente sobre política, manipulação histórica, nem tão pouco para lamentar a falta de comemorações, sempre muito desligadas da população... Cada macaco no seu galho, e à racionalidade humana só compete distinguir naturais incertezas de evidentes contradições.

Este texto é sobre outros quinhentos: - Nan Madol.
 
Nan Madol - Micronésia (Ilhas Carolinas)

Por lapso, esqueci-me de juntar este conjunto monumental no texto Lemuria, onde referi a pedra-dinheiro de Palau... Foi agora num comentário de Maria da Fonte que relembrei que este monumento ainda não tinha aqui tido nenhuma referência, apesar de ser várias vezes falado nos comentários, ligado à ideia do continente perdido, Mu. 
Não vou falar sobre Mu, porque já de alguma forma foi mencionado no texto sobre a Lemuria, e penso tratar-se do mesmo mito. Há por vezes ideias sobre continentes de dimensões gigantescas, como se isso acrescentasse dimensão à civilização. Na realidade basta reparar na enorme superfície euro-asiática para perceber que é na sua maioria inabitada. O mesmo se passa na América, basta reparar na grande Amazónia ou no enorme Canadá. Mesmo com 6 biliões de pessoas, a nossa concentração dá-se em pontos muito particulares... e ilhas de dimensão menor, como o arquipélago do Japão, podem oferecer um grande desenvolvimento. Por isso, a ideia de continentes de grande dimensão apenas traria mais terra inabitada a um planeta que já tem muita terra inabitada.
Conforme referi no texto sobre Lemuria, o aumento do nível do mar terá submergido uma grande parte da região da Melanésia, então contígua da Malásia até às ilhas da Nova-Guiné. Essa parte era suficientemente extensa para corresponder ao afundamento de uma superfície semelhante à da Austrália, justificando-se perfeitamente essa associação mítica àquelas paragens.

O complexo monumental de Nan Madol não revela nenhum surpreendente esplendor técnico, mas é notável do ponto de vista megalítico, e remete mais uma vez para uma parte da história que parece ter submergido juntamente com Mu. Essa submersão não vem apenas de natural falta de dados, vem de propositada ocultação ou distorção. 

Damos um exemplo ilustrativo. O texto de Armando Cortesão foi encontrado ao procurar informação adicional sobre as Ilhas Carolinas. Essa descoberta é atribuída a Gomes de Sequeira em 1525 (ou Janeiro de 1526, ver pág. 320 de Esparsos, vol. III). Pelo menos a ilha de Palau deverá ter tido o nome de Sequeira, antes de passarem a ser nomeadas Novas-Filipinas, por Álvaro Saavedra em 1529, e depois Carolinas, por respeito ao imperador espanhol Carlos (V?). 
Esta nomeação de Carolinas é encontrada em quase todo o lado, mas há uma versão diferente. Numa tradução de Jacques Arago, viajante francês, lemos ("De um a outro pólo", pág. 177) numa nota de rodapé que afinal teria sido o espanhol Ponce de Léon (!!!) a descobri-las em 1512, e que o nome Carolinas era devido a Carlos IX, rei francês, é claro, e que o nome teria sido mantido por Carlos II, rei inglês. O facto dos nomes reais serem moda numa certa época permite estas variações, em que nomes similares servem vários propósitos ambíguos, só faltava um Karl germânico, para justificar Karolinen sob sua alçada. Só encontrámos na tradução do livro de Arago tal versão afrancesada, mas presumo que tenha origem noutra fonte. Isto mostra suficientemente como as tentativas de alterar o registo histórico foram constantes e tiveram frequentemente origem nas mesmas paragens europeias.

A contrario desta tentativa francesa, Cortesão procura provar que a viagem de Sequeira não teria chegado à Austrália, como entretanto foi pretendido, e dá uma justificação pelos relatos e pelos ventos... De facto a documentação existente não parece ter nenhuma referência directa à Austrália, até porque não seria assim nomeada à época, como é natural. Os mapas que Cortesão conhecia pareciam estar fora de uso para fazer prova. Não parecia haver nome, nem registo da navegação que teria permitido fazê-los. No entanto, esses mapas existem e mostram o conhecimento completo à época de D. Sebastião, pelo menos. Qualquer outra pretensão é apenas pura formalidade burocrática ou cegueira.


Nota adicional (01/04/2014):
Esta referência a Nan Madol foi colocada há já muito tempo num comentário de José Manuel, onde se refere a descoberta de Nan Madol por Pedro Fernandes Queirós e a sua associação à colónia de Nova Jerusalém, por vezes ligada também a Vanuatu.
Mapa de 1612 de Hessel Gerritsz onde se aponta a Australis Incognitae 
a uma descoberta de Queirós.
Este mapa é especialmente relevante por ser holandês...

Já tínhamos aqui mencionado o cartógrafo holandês Gerritsz, que em 1618, ou seja passados 6 anos, já poderá desenhar a costa australiana ocidental com toda a precisão... de Queirós, a Australia terá apenas herdado o nome com que a baptizara - Australia do Espírito Santo.
Qual a diferença entre 1612 e 1618?
Em 1618 é declarada a Guerra dos Trinta Anos, e a Holanda vai aparecer como autónoma reivindicando então o seu quinhão de descobertas, então ocultas, nomeadamente a Australia.

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publicado às 06:24

A Associação Portuguesa de Arqueologia, APIA, através de Nuno Ribeiro e Anabela Joaquinito, tem vindo a publicitar várias descobertas nos Açores. Praticamente todos os anos estamos com novidades, e desta vez são estruturas piramidais, denominadas "Maroiços":

 
Maroiços no Pico (Madalena) [esq: foto Expresso, dir: foto Artazores]

É claro que só se tratam de descobertas para quem não sabe... e a questão mais uma vez é atribuir uma autoria, já que ao contrário da Grota do Medo, duvido que alguma sumidade nacional arriscasse uma versão natural para tais construções. Há ainda assim alguns limites para o ridículo. Mais uma vez, há uma versão oficial que atribui tal obra aos agricultores, dentro do quadro da Paisagem da Ilha do Pico.
Já tinhamos mencionado no texto "Degraus da Maia" que os muros da Ilha do Pico tinham sido classificados na lista WHC da UNESCO, o que nos pareceu algo estranho, mas meritório. Estranho, porque não parecia haver nada de tão extraordinário naqueles muros, que não se encontrasse frequentemente em serras portuguesas... conforme já referimos na zona da Serra dos Candeeiros, não longe de Fátima, há vários quilómetros quadrados cheios de muros, que dão ideia de cidadelas abandonadas no tempo.

Ora, uma coisa é haver uma sensação visual, outra coisa é arriscar dizer que se tratam de monumentos arqueológicos. Neste caso dos "Maroiços" é nítido que há uma construção piramidal, a questão é saber se tal obra se pode reportar a período anterior à colonização oficial portuguesa... ou se são apenas construções agrícolas mais recentes. A notícia do Expresso:
http://expresso.sapo.pt/arqueologos-revelam-segredos-das-piramides-da-ilha-do-pico=f827624
dá a entender que há vários factores que podem apontar para ser construção antiga. Nomeadamente a semelhança com estruturas semelhantes noutras ilhas (e.g. dos guanches nas Canárias), o facto de terem câmara interna (falsa abóbada), e a orientação solar. Apenas estes factores estão longe de ser decisivos, e seria fácil rebater tal hipótese... O problema é que também é difícil de acreditar que os agricultores açorianos andaram a copiar construções arqueológicas antigas. Já são pelo menos 3 ou 4 monumentos bem distintos que invocam uma presença anterior à versão oficial portuguesa.

O nome Maroiço não é exclusivo açoriano. Há uma serra perto de Fafe que se chama Serra do Maroiço, e esse nome já foi associado pelo arqueólogo Luis Chaves (1951) à presença de antas:
Luis Chaves, As Antas de Portugal.

Nesse texto, Luis Chaves, faz uma pequena síntese de topónimos que poderiam invocar essa ligação.
Deixo aqui um breve resumo das diversas palavras que ele associou na toponímia nacional:
--------------------
Altar (ex: Anta de Altar, Mamaltar).
Anta (ex: Pedra d'Anta, Vale de Antas, Antadega, Anto).
Antão, Antões: : aumentativos de Antas.
Ante (ex: Penedante, Pedra Dante, Touça Dante, Antemil)
Antela, Antelas, Antaínha, Antoínha : diminuitivos de Antas (Antanhol).
Arca (ex: Fraga de Arcas, Pena de Arcas, Arcã) : montes de terra.
Arcaínha, Arcanha, Arcela, Arcelo, Arquinha : diminuitivos de Arcas.
Arcal, Arcais, Arcão : aumentativos de Arcas.

Casa : "nome comum às antas e às lapas, covas, etc."
Casarelo, Casinola : diminuitivo de Casa.
Cova : similar a Casa, pode não ser Anta.
Covelo : diminuitivo de Cova.

Forno : "por semelhança construtiva com fornos".
Fundo : similar a Cova, Casa.

Lagar : por "sugestão de capacidade e imagem dos lagares".
Lagarão : aumentativo de Lagar.
Lagareta : diminuitivo de Lagar.
Lapa : (gr. lapados) rochedo, "a Anta formada por esteios e coberta" (Lapa dos Mouros, Lapa da Orca)

Madorra: monte de pedras miúdas ou cascalho.
Medorra, Modorra, Mudura, Madorrinha : vem de Madorra.
Mamôa: "monte, colina, ou proeminência de terra", arredondada, "semelhante a peito".
Maroiço, Marouço, Maroço, Meroço, Tulha : "monte de seixos".
Mêda : "monte de pedras".
Monte : "o monte de pedras quando a Anta não tinha cobertura de terra".
Montilhão : aumentativo de Monte.
Moimento : vem de Monumento, Leite de Vasconcelos dizia ser de Antas desaparecidas.

Orca : "grande vaso de barro ... conserva de peixe seco", passou a designar habitação mítica (Casa da Orca, Lapa da Orca, Pedra da Orca, Orca das Orcas).

Padrão, Padrões, Pedrão, Pedrões : "pedra grande, o conjunto da anta" (Anta dos Padrões, Antela da Mamoinha do Senhor do Pedrão)
Pala : "pedra horizontal sobre outras (Pala da Moura).
Pedra : "a pedra formada pelo todo da anta, ou conservada de pé (Pedralta, Pedra do Altar, Pedra da Anta, Pedra da Orca).
Penedos : "associado o nome às antas que os formam" (Penedante, Penedo de Anta, Penedos de Arcas)

Sepultura: "associação ao uso sepulcral".
Touça, Touca, Toutiço ou Touta : toma a forma de cabeça.
Urna : "vaso onde se guardavam as cinzas dos mortos".
--------------------
Esta lista organizada por Luís Chaves é extensa, mas creio que ainda faltam associar outras palavras que se ligam a construções antigas, como por exemplo Fragas, Azambuja, Zambujal, Zambujeiro, etc...
Ainda que não tenham resistido os monumentos, houve um registo de nomes que ainda não se perdeu, e que nos liga a tempos imemoriais.

Aditamento (08/09/2013):
Por lapso ao compor o texto falei dos guanches, mas esqueci-me depois de explicitar a relação destes Maroiços com os Marajos, as pirâmides das Canárias, colocando uma imagem ilustrativa:
Pirâmides de Guímar, Tenerife (Canárias)

Também no caso espanhol é suposto que estas pirâmides sejam já posteriores à ocupação espanhola, não sendo reconhecido oficialmente que remetam aos guanches. No caso das Canárias, como é reconhecido uma habitação anterior pelos guanches, não se coloca a questão das ilhas serem desabitadas, o problema é que a estrutura parece ter sofrido alterações ou reconstrução no Séc. XIX, pondo em causa um registo mais antigo. Também no caso canarinho, foi demonstrada uma orientação solar dos monumentos.

Para quem queira ver nestas construções uma obra agrícola de camponeses europeus, deve explicar por que razão tiveram a mesma ideia os agricultores do Pico e de Tenerife, e porque razão tal construção não tem tradição nos países de origem, em Portugal e Espanha. Justificação complicada... boa sorte!

Contribuição (Sid, 17-11-2013):
Na última coisa que aqui escrevi, disse faltar uma justificação para o aparecimento destas estruturas agrícolas. Tendo a sorte de ter o comentário de Sid, natural da Ilha do Pico, sobre este assunto, creio que esclarece no outro sentido. A característica específica dos terrenos vulcânicos levaria a este amontoar de pedras ordenado.
Os arqueólogos da APIA, que certamente ouviram estas explicações dos agricultores, deveriam ter tornado públicas as razões pelas quais não ficaram convencidos.
Pela minha parte, dou o devido destaque a ambos, e a conversa segue na caixa de comentários.

-- Comentário de Sid --

Atraquei aqui porque o assunto diz-me respeito, pois sou natural do Pico e fui criado no sopé daquela montanha.
O meu contributo para a questão é simples e curto, pois eu próprio em criança fazia deles o meu castelo e em jovem ajudei meu pai a construir alguns (pequeninos) ao limpar o chão dos terrenos para torna-los próprios para as sementeiras e diversas culturas próprias de quem vive da terra. 
Como tal, passo a descrever os maroiços em causa, e até dou, de boa vontade, uma ajuda na compreensão razão para agora estas gentes andarem a estudar estes amontoados de pedras.
Diversas áreas da ilha do Pico são de solo coberto de pedra basáltica, digo coberto porque refiro-me a uma camada que pode variar em espessura, mas é muito comum, depois de se escavar meio metro ou um metro encontrar terra própria para cultivo. Esta característica, quanto a mim, é fruto de erupções vulcânicas intercaladas por grandes períodos de tempo, na ordem dos milhares de anos, tempo suficiente para que a erosão natural forme terra arável mas que depois acaba por ser coberta por um manto de lava. Manto este que actualmente, já em forma de pedras soltas e cascalho definem o solo de grande parte da paisagem do Pico, principalmente aquela localizada no sopé da montanha, como é o caso da vila da Madalena.
Os maroiços, começam a nascer a partir do momento em que alguém limpa uma qualquer área que nunca havia sido usada para cultivo, estes variam de dimensão consoante o tipo de cultura ou a quantidade de pedras existente sobre o solo. No caso da vinha, que é muito comum nas áreas em questão e onde por sinal a paisagem e o solo são a imagem de marca dos vinhos do Pico, bem como paisagem classificada pela UNESCO desde 2004. Ora, o processo original de trabalhar solo desta zona para o cultivo a vinha, consistia em abrir uma pequena cova entre as pedras, introduzir terra e nessa terra plantar a videira, com as pedras maiores que se encontravam sobre o solo, faziam-se os muros que servem de abrigo ás videiras, contra os ventos, e ao mesmo tempo que se faz obrigo arruma-se a pedra duma forma rápida e pratica. Para os casos em que há maroiços, esses surgem naturalmente quando estes muros não chegam para arrumar toda a pedra, então num canto ou mais cantos de uma determinada parcela levantavam-se muros, dispostos em formas variadas - circular, rectangular, triangular ou quadrangular, para reter as pedras que posteriormente foram depositadas no seu interior. Estas construções variam muito de tamanho, algumas vão crescendo com o passar dos anos, conforme o área em redor vai sendo explorada, principalmente nos casos em que a cultura é de sementeiras. Nestas, sempre que se trabalha a terra, surgem pedras entre a terra, que são recolhidas e depositadas no maroiço, o que leva à necessidade de reforçar este com a construção de mais um "andar" fazendo com que estes formem pirâmides. Ainda é de salientar que em tempos passados estas terras eram a base da economia da ilha, era comum ver nestas terras famílias inteiras a trabalhar de sol a sol, levavam almoço, levavam as crianças e era para maroiço que se atirava tudo o que era lixo e sólidos encontrados no chão da propriedade onde esta localizado, daí ser frequente encontrar restos de loiças, restos metálicos, conchas de lapas (marisco muito apreciado nas ilhas) etc. 
Estas ideias recentes que tem surgido em torno destes montes (organizados) de pedra, são isso mesmo, ideias.

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publicado às 05:57

A Associação Portuguesa de Arqueologia, APIA, através de Nuno Ribeiro e Anabela Joaquinito, tem vindo a publicitar várias descobertas nos Açores. Praticamente todos os anos estamos com novidades, e desta vez são estruturas piramidais, denominadas "Maroiços":

 
Maroiços no Pico (Madalena) [esq: foto Expresso, dir: foto Artazores]

É claro que só se tratam de descobertas para quem não sabe... e a questão mais uma vez é atribuir uma autoria, já que ao contrário da Grota do Medo, duvido que alguma sumidade nacional arriscasse uma versão natural para tais construções. Há ainda assim alguns limites para o ridículo. Mais uma vez, há uma versão oficial que atribui tal obra aos agricultores, dentro do quadro da Paisagem da Ilha do Pico.
Já tinhamos mencionado no texto "Degraus da Maia" que os muros da Ilha do Pico tinham sido classificados na lista WHC da UNESCO, o que nos pareceu algo estranho, mas meritório. Estranho, porque não parecia haver nada de tão extraordinário naqueles muros, que não se encontrasse frequentemente em serras portuguesas... conforme já referimos na zona da Serra dos Candeeiros, não longe de Fátima, há vários quilómetros quadrados cheios de muros, que dão ideia de cidadelas abandonadas no tempo.

Ora, uma coisa é haver uma sensação visual, outra coisa é arriscar dizer que se tratam de monumentos arqueológicos. Neste caso dos "Maroiços" é nítido que há uma construção piramidal, a questão é saber se tal obra se pode reportar a período anterior à colonização oficial portuguesa... ou se são apenas construções agrícolas mais recentes. A notícia do Expresso:
http://expresso.sapo.pt/arqueologos-revelam-segredos-das-piramides-da-ilha-do-pico=f827624
dá a entender que há vários factores que podem apontar para ser construção antiga. Nomeadamente a semelhança com estruturas semelhantes noutras ilhas (e.g. dos guanches nas Canárias), o facto de terem câmara interna (falsa abóbada), e a orientação solar. Apenas estes factores estão longe de ser decisivos, e seria fácil rebater tal hipótese... O problema é que também é difícil de acreditar que os agricultores açorianos andaram a copiar construções arqueológicas antigas. Já são pelo menos 3 ou 4 monumentos bem distintos que invocam uma presença anterior à versão oficial portuguesa.

O nome Maroiço não é exclusivo açoriano. Há uma serra perto de Fafe que se chama Serra do Maroiço, e esse nome já foi associado pelo arqueólogo Luis Chaves (1951) à presença de antas:
Luis Chaves, As Antas de Portugal.

Nesse texto, Luis Chaves, faz uma pequena síntese de topónimos que poderiam invocar essa ligação.
Deixo aqui um breve resumo das diversas palavras que ele associou na toponímia nacional:
--------------------
Altar (ex: Anta de Altar, Mamaltar).
Anta (ex: Pedra d'Anta, Vale de Antas, Antadega, Anto).
Antão, Antões: : aumentativos de Antas.
Ante (ex: Penedante, Pedra Dante, Touça Dante, Antemil)
Antela, Antelas, Antaínha, Antoínha : diminuitivos de Antas (Antanhol).
Arca (ex: Fraga de Arcas, Pena de Arcas, Arcã) : montes de terra.
Arcaínha, Arcanha, Arcela, Arcelo, Arquinha : diminuitivos de Arcas.
Arcal, Arcais, Arcão : aumentativos de Arcas.

Casa : "nome comum às antas e às lapas, covas, etc."
Casarelo, Casinola : diminuitivo de Casa.
Cova : similar a Casa, pode não ser Anta.
Covelo : diminuitivo de Cova.

Forno : "por semelhança construtiva com fornos".
Fundo : similar a Cova, Casa.

Lagar : por "sugestão de capacidade e imagem dos lagares".
Lagarão : aumentativo de Lagar.
Lagareta : diminuitivo de Lagar.
Lapa : (gr. lapados) rochedo, "a Anta formada por esteios e coberta" (Lapa dos Mouros, Lapa da Orca)

Madorra: monte de pedras miúdas ou cascalho.
Medorra, Modorra, Mudura, Madorrinha : vem de Madorra.
Mamôa: "monte, colina, ou proeminência de terra", arredondada, "semelhante a peito".
Maroiço, Marouço, Maroço, Meroço, Tulha : "monte de seixos".
Mêda : "monte de pedras".
Monte : "o monte de pedras quando a Anta não tinha cobertura de terra".
Montilhão : aumentativo de Monte.
Moimento : vem de Monumento, Leite de Vasconcelos dizia ser de Antas desaparecidas.

Orca : "grande vaso de barro ... conserva de peixe seco", passou a designar habitação mítica (Casa da Orca, Lapa da Orca, Pedra da Orca, Orca das Orcas).

Padrão, Padrões, Pedrão, Pedrões : "pedra grande, o conjunto da anta" (Anta dos Padrões, Antela da Mamoinha do Senhor do Pedrão)
Pala : "pedra horizontal sobre outras (Pala da Moura).
Pedra : "a pedra formada pelo todo da anta, ou conservada de pé (Pedralta, Pedra do Altar, Pedra da Anta, Pedra da Orca).
Penedos : "associado o nome às antas que os formam" (Penedante, Penedo de Anta, Penedos de Arcas)

Sepultura: "associação ao uso sepulcral".
Touça, Touca, Toutiço ou Touta : toma a forma de cabeça.
Urna : "vaso onde se guardavam as cinzas dos mortos".
--------------------
Esta lista organizada por Luís Chaves é extensa, mas creio que ainda faltam associar outras palavras que se ligam a construções antigas, como por exemplo Fragas, Azambuja, Zambujal, Zambujeiro, etc...
Ainda que não tenham resistido os monumentos, houve um registo de nomes que ainda não se perdeu, e que nos liga a tempos imemoriais.

Aditamento (08/09/2013):
Por lapso ao compor o texto falei dos guanches, mas esqueci-me depois de explicitar a relação destes Maroiços com os Marajos, as pirâmides das Canárias, colocando uma imagem ilustrativa:
Pirâmides de Guímar, Tenerife (Canárias)

Também no caso espanhol é suposto que estas pirâmides sejam já posteriores à ocupação espanhola, não sendo reconhecido oficialmente que remetam aos guanches. No caso das Canárias, como é reconhecido uma habitação anterior pelos guanches, não se coloca a questão das ilhas serem desabitadas, o problema é que a estrutura parece ter sofrido alterações ou reconstrução no Séc. XIX, pondo em causa um registo mais antigo. Também no caso canarinho, foi demonstrada uma orientação solar dos monumentos.

Para quem queira ver nestas construções uma obra agrícola de camponeses europeus, deve explicar por que razão tiveram a mesma ideia os agricultores do Pico e de Tenerife, e porque razão tal construção não tem tradição nos países de origem, em Portugal e Espanha. Justificação complicada... boa sorte!

Contribuição (Sid, 17-11-2013):
Na última coisa que aqui escrevi, disse faltar uma justificação para o aparecimento destas estruturas agrícolas. Tendo a sorte de ter o comentário de Sid, natural da Ilha do Pico, sobre este assunto, creio que esclarece no outro sentido. A característica específica dos terrenos vulcânicos levaria a este amontoar de pedras ordenado.
Os arqueólogos da APIA, que certamente ouviram estas explicações dos agricultores, deveriam ter tornado públicas as razões pelas quais não ficaram convencidos.
Pela minha parte, dou o devido destaque a ambos, e a conversa segue na caixa de comentários.

-- Comentário de Sid --

Atraquei aqui porque o assunto diz-me respeito, pois sou natural do Pico e fui criado no sopé daquela montanha.
O meu contributo para a questão é simples e curto, pois eu próprio em criança fazia deles o meu castelo e em jovem ajudei meu pai a construir alguns (pequeninos) ao limpar o chão dos terrenos para torna-los próprios para as sementeiras e diversas culturas próprias de quem vive da terra. 
Como tal, passo a descrever os maroiços em causa, e até dou, de boa vontade, uma ajuda na compreensão razão para agora estas gentes andarem a estudar estes amontoados de pedras.
Diversas áreas da ilha do Pico são de solo coberto de pedra basáltica, digo coberto porque refiro-me a uma camada que pode variar em espessura, mas é muito comum, depois de se escavar meio metro ou um metro encontrar terra própria para cultivo. Esta característica, quanto a mim, é fruto de erupções vulcânicas intercaladas por grandes períodos de tempo, na ordem dos milhares de anos, tempo suficiente para que a erosão natural forme terra arável mas que depois acaba por ser coberta por um manto de lava. Manto este que actualmente, já em forma de pedras soltas e cascalho definem o solo de grande parte da paisagem do Pico, principalmente aquela localizada no sopé da montanha, como é o caso da vila da Madalena.
Os maroiços, começam a nascer a partir do momento em que alguém limpa uma qualquer área que nunca havia sido usada para cultivo, estes variam de dimensão consoante o tipo de cultura ou a quantidade de pedras existente sobre o solo. No caso da vinha, que é muito comum nas áreas em questão e onde por sinal a paisagem e o solo são a imagem de marca dos vinhos do Pico, bem como paisagem classificada pela UNESCO desde 2004. Ora, o processo original de trabalhar solo desta zona para o cultivo a vinha, consistia em abrir uma pequena cova entre as pedras, introduzir terra e nessa terra plantar a videira, com as pedras maiores que se encontravam sobre o solo, faziam-se os muros que servem de abrigo ás videiras, contra os ventos, e ao mesmo tempo que se faz obrigo arruma-se a pedra duma forma rápida e pratica. Para os casos em que há maroiços, esses surgem naturalmente quando estes muros não chegam para arrumar toda a pedra, então num canto ou mais cantos de uma determinada parcela levantavam-se muros, dispostos em formas variadas - circular, rectangular, triangular ou quadrangular, para reter as pedras que posteriormente foram depositadas no seu interior. Estas construções variam muito de tamanho, algumas vão crescendo com o passar dos anos, conforme o área em redor vai sendo explorada, principalmente nos casos em que a cultura é de sementeiras. Nestas, sempre que se trabalha a terra, surgem pedras entre a terra, que são recolhidas e depositadas no maroiço, o que leva à necessidade de reforçar este com a construção de mais um "andar" fazendo com que estes formem pirâmides. Ainda é de salientar que em tempos passados estas terras eram a base da economia da ilha, era comum ver nestas terras famílias inteiras a trabalhar de sol a sol, levavam almoço, levavam as crianças e era para maroiço que se atirava tudo o que era lixo e sólidos encontrados no chão da propriedade onde esta localizado, daí ser frequente encontrar restos de loiças, restos metálicos, conchas de lapas (marisco muito apreciado nas ilhas) etc. 
Estas ideias recentes que tem surgido em torno destes montes (organizados) de pedra, são isso mesmo, ideias.

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publicado às 05:57

Arco da Memória

25.07.13
O arco da memória é uma ligação que une dois pontos - passado e presente.
O arco da memória é a definição do tempo absoluto.
Uma estrutura sem memória não pode saber o que é o tempo. Tempo e memória confundem-se em noções diferentes, porque a experiência da ordem universal nos presenteia com a continuidade do movimento.
Os pequenos organismos reagem ao movimento, mas raramente têm memória. 
A memória só é útil a organismos complexos, capazes de a analisar. Um típico ser reactivo dispensa a memória. Entroniza a reacção, não a analisa. Um simples processo de compreensão vê um padrão e dele extrai uma noção. Ao repetir-se o padrão, conta com previsibilidade semelhante. Porém, quando as coisas se complicam, todas as noções contam num entendimento alargado. 
O arco da memória não é completo... tal como o arco do cajado de um caminhante, tem uma grande ponta fixa que assenta no presente, e uma pequena curva que vem do passado. Porquê? Porque substituímos o grande espaço necessário a uma memória completa por algo bem mais simples - as noções que se formam através dela. A falência da memória tem menos importância do que a falência das noções. A memória serve essencialmente para educar, testar e consolidar noções abstractas. Uma compreensão com noções abstractas alargadas dispensa o peso de uma grande memória.
Tudo isto se conjuga de forma admiravelmente lógica, indubitavelmente clara... mas algo extemporânea de ser entendida por uma sociedade que se formou pelo sucesso imediato dos processos reactivos simples.
A mesma sociedade que cuida ocultar a memória, por forma a educar espíritos infantilizados, lavrando sulcos de cultura distorcida por palavras que não são próprias, essa mesma sociedade é afinal ignota do propósito que serve a memória, e é assim também infantil... não no conhecimento, mas na sua compreensão.

Adiante...
Dia 13 de Maio, na Serra dos Candeeiros, é feita uma promessa.
Poderia estar a falar de 1917 e da Cova da Iria, mas a data e o local são diferentes. 
Para melhor evidência, cito o Archivo Pittoresco (1863, volume 7, pag. 336):
Indo el-rei D. Affonso o primeiro de Portugal para ganhar Santarem, fez neste proprio lugar hum voto a Christo, de dar tudo quanto via com os olhos d'alli até o mar á Ordem de Cister, se ajudado com os merecimentos de N. P. S. Bernardo ganhasse a.villa. E alcançando-lhe o Santo o que pedia, cumprio el-rei seu voto, donde resultou a fundação do Real Mosteyro de Alcobaça; o Senhorio do qual começa d'este lugar, e se acaba na praia do mar. Acontecerão estas couzas todas no anno de 1147, aos 13 de Maio em uma quinta feira.
Esta "lenda" associada à fundação do Mosteiro de Alcobaça estabelecia marcos de domínio da Ordem de Cister, cedidos por D. Afonso Henriques, que ficaram definidos por um Arco da Memória, encimado com a estátua do Rei fundador:
Arco da Memória (perto de Rio Maior) 
gravura no Archivo Pittoresco, e fotografia antes da "ira republicana" [imagem daqui]

Acontece que a promessa de D. Afonso Henriques era suposto ocorrer até que durasse monarquia. 
Três meses volvidos sobre a Implantação da República, em 12 de Janeiro de 1911, as concessões da monarquia já não faziam sentido... e o monumento foi destruído por republicanos.
É claro que, desde o tempo do Marquês, parece também haver uma versão conveniente de colapso por abalo sísmico... mas acresce a coincidência do aproveitamento imediato das pedras da derrocada para a estrada de ligação de Caldas da Rainha à Benedita. 
A história está bastante bem descrita em 
http://rio-maior-cidadania.blogspot.pt/2010/04/arco-da-memoria.html
e inclui um curioso detalhe... restava a estátua do rei - e o popular que a foi restituir acabou multado!
A estátua de D. Afonso Henriques está agora junto ao Castelo de Leiria:
 
Estátua de D. Afonso Henriques. Reconstrução do Monumento em 1981. [imagens daqui]

Passados 70 anos, em 1981, por iniciativa do pároco dos Vidais, com o apoio da população, o Arco da Memória foi finalmente reconstruído. Como é óbvio, o Estado Português tem sido socorrido por populares com sentido de estado, quando falta sentido de estado aos seus dirigentes, ou quando esses dirigentes estão visivelmente a soldo de interesses externos.

Há muitas notas a acrescentar a este monumento oficialmente ignorado pela República Maçónica.
(1) Do que é possível apurar, pelo menos a estátua será fabrico ao tempo de D. Sebastião (who else?). Pela simples observação do escudo, é fácil ver que se tratam das armas posteriores a D. João II.
(2) A localização é ambígua, tal como já seria pela imprecisão da descrição de Frei Francisco de Santa Clara, que remete para uma Serra de Albardos, que já foi dita como Serra de Alvados.
(3) Ora, parte da Serra dos Candeeiros, a Serra de Alvados, será depois remetida para uma localização contígua a Cova de Iria - Fátima. 
Podemos falar na coincidência da data simbólica do 13 de Maio... a 1ª República estava apostada em banir a influência do poder eclesiástico, e a queda deste monumento terá estado nesse movimento. É significativo que, como aparente resposta, apareça na mesma data, 13 de Maio, uma manifestação católica em Fátima que iria suplantar as expectativas de qualquer republicano... que de bom grado reporia o monumento face ao significado que ganharam as ocorrências da Cova de Iria. Aliás, essa ligação foi uma suspeita imediata dos republicanos, que chegaram a prender os "pastorinhos", evitando a presença a 13 de Agosto de 1917.
(4) A situação fica ainda menos clara, porque há outro Arco da Memória, também na Serra dos Candeeiros, mais próximo da Serra de Alvados, mas que não teria nenhuma estátua real:
Arco da Memória perto de Arrimal, Serra dos Candeeiros

Este outro Arco da Memória não parece ter o mesmo registo histórico do anterior, mas foi também ligado à marcação dos domínios de Cister do Mosteiro de Alcobaça. 
Com inúmeros muros de pedra, que ornamentam grandes extensões da Serra, fazendo lembrar os muros açorianos, os monumentos singulares, atribuídos a uma marcação dos domínios de Cister, não seriam afinal outro tipo de monumentos, de outros tempos, depois aproveitados para outras "estórias"?
(5) Se não parece haver dúvidas sobre a estátua de D. Afonso Henriques ser do Séc. XVI, é significativa a frase constante no texto do Archivo Pittoresco:
Entre os povos da localidade e circumvisinhanças, é inteiramente desconhecido o nome da serra de Albardos, dando-lhe o de serra de Rio Maior, por ficar não mui distante desta villa, e das suas celebres bocas, das quaes ainda tenciono fallar. Chamam elles a este arco o rei da memoria, nutrindo fabulosas opiniões, filhas da sua ignorancia, e dão interpretações vagas e até absurdas sobre a origem d'este monumento.
Portanto a população não corroborava por completo a lenda de D. Afonso Henriques, ou chamava-lhe "rei da memória", estando associada a "fábulas" de "ignorantes", segundo opinião do autor do texto, P. C. Sequeira, em 1863. Como o autor não especifica as fábulas, fica a questão se remeteriam de novo a Hércules, como era frequente em Portugal e Espanha.
(6) É ainda notável o artigo do Archivo Pittoresco ser seguido de outra opinião, do editor Silva Tullio, que critica o autor do texto, dizendo que faltaria mencionar a investigação histórica que remetia a concessão de D. Afonso Henriques como sendo uma "invenção dos frades bernardos" do Mosteiro de Alcobaça, para reivindicarem aquelas terras. Esta questiúncula levaria depois à destruição do monumento.

O que se conclui desta pequena análise?
Que as acusações de ignorância podem ser sempre repartidas, procurando apenas validar um tipo de conhecimento... "politicamente correcto", adequado aos propósitos dos acusadores. Se os houver, os detentores de uma história mais completa, não se livram dessa ignorância, que passa por não perceberem qual o propósito do conhecimento que guardam para si.

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Arco da Memória

25.07.13
O arco da memória é uma ligação que une dois pontos - passado e presente.
O arco da memória é a definição do tempo absoluto.
Uma estrutura sem memória não pode saber o que é o tempo. Tempo e memória confundem-se em noções diferentes, porque a experiência da ordem universal nos presenteia com a continuidade do movimento.
Os pequenos organismos reagem ao movimento, mas raramente têm memória. 
A memória só é útil a organismos complexos, capazes de a analisar. Um típico ser reactivo dispensa a memória. Entroniza a reacção, não a analisa. Um simples processo de compreensão vê um padrão e dele extrai uma noção. Ao repetir-se o padrão, conta com previsibilidade semelhante. Porém, quando as coisas se complicam, todas as noções contam num entendimento alargado. 
O arco da memória não é completo... tal como o arco do cajado de um caminhante, tem uma grande ponta fixa que assenta no presente, e uma pequena curva que vem do passado. Porquê? Porque substituímos o grande espaço necessário a uma memória completa por algo bem mais simples - as noções que se formam através dela. A falência da memória tem menos importância do que a falência das noções. A memória serve essencialmente para educar, testar e consolidar noções abstractas. Uma compreensão com noções abstractas alargadas dispensa o peso de uma grande memória.
Tudo isto se conjuga de forma admiravelmente lógica, indubitavelmente clara... mas algo extemporânea de ser entendida por uma sociedade que se formou pelo sucesso imediato dos processos reactivos simples.
A mesma sociedade que cuida ocultar a memória, por forma a educar espíritos infantilizados, lavrando sulcos de cultura distorcida por palavras que não são próprias, essa mesma sociedade é afinal ignota do propósito que serve a memória, e é assim também infantil... não no conhecimento, mas na sua compreensão.

Adiante...
Dia 13 de Maio, na Serra dos Candeeiros, é feita uma promessa.
Poderia estar a falar de 1917 e da Cova da Iria, mas a data e o local são diferentes. 
Para melhor evidência, cito o Archivo Pittoresco (1863, volume 7, pag. 336):
Indo el-rei D. Affonso o primeiro de Portugal para ganhar Santarem, fez neste proprio lugar hum voto a Christo, de dar tudo quanto via com os olhos d'alli até o mar á Ordem de Cister, se ajudado com os merecimentos de N. P. S. Bernardo ganhasse a.villa. E alcançando-lhe o Santo o que pedia, cumprio el-rei seu voto, donde resultou a fundação do Real Mosteyro de Alcobaça; o Senhorio do qual começa d'este lugar, e se acaba na praia do mar. Acontecerão estas couzas todas no anno de 1147, aos 13 de Maio em uma quinta feira.
Esta "lenda" associada à fundação do Mosteiro de Alcobaça estabelecia marcos de domínio da Ordem de Cister, cedidos por D. Afonso Henriques, que ficaram definidos por um Arco da Memória, encimado com a estátua do Rei fundador:
Arco da Memória (perto de Rio Maior) 
gravura no Archivo Pittoresco, e fotografia antes da "ira republicana" [imagem daqui]

Acontece que a promessa de D. Afonso Henriques era suposto ocorrer até que durasse monarquia. 
Três meses volvidos sobre a Implantação da República, em 12 de Janeiro de 1911, as concessões da monarquia já não faziam sentido... e o monumento foi destruído por republicanos.
É claro que, desde o tempo do Marquês, parece também haver uma versão conveniente de colapso por abalo sísmico... mas acresce a coincidência do aproveitamento imediato das pedras da derrocada para a estrada de ligação de Caldas da Rainha à Benedita. 
A história está bastante bem descrita em 
http://rio-maior-cidadania.blogspot.pt/2010/04/arco-da-memoria.html
e inclui um curioso detalhe... restava a estátua do rei - e o popular que a foi restituir acabou multado!
A estátua de D. Afonso Henriques está agora junto ao Castelo de Leiria:
 
Estátua de D. Afonso Henriques. Reconstrução do Monumento em 1981. [imagens daqui]

Passados 70 anos, em 1981, por iniciativa do pároco dos Vidais, com o apoio da população, o Arco da Memória foi finalmente reconstruído. Como é óbvio, o Estado Português tem sido socorrido por populares com sentido de estado, quando falta sentido de estado aos seus dirigentes, ou quando esses dirigentes estão visivelmente a soldo de interesses externos.

Há muitas notas a acrescentar a este monumento oficialmente ignorado pela República Maçónica.
(1) Do que é possível apurar, pelo menos a estátua será fabrico ao tempo de D. Sebastião (who else?). Pela simples observação do escudo, é fácil ver que se tratam das armas posteriores a D. João II.
(2) A localização é ambígua, tal como já seria pela imprecisão da descrição de Frei Francisco de Santa Clara, que remete para uma Serra de Albardos, que já foi dita como Serra de Alvados.
(3) Ora, parte da Serra dos Candeeiros, a Serra de Alvados, será depois remetida para uma localização contígua a Cova de Iria - Fátima. 
Podemos falar na coincidência da data simbólica do 13 de Maio... a 1ª República estava apostada em banir a influência do poder eclesiástico, e a queda deste monumento terá estado nesse movimento. É significativo que, como aparente resposta, apareça na mesma data, 13 de Maio, uma manifestação católica em Fátima que iria suplantar as expectativas de qualquer republicano... que de bom grado reporia o monumento face ao significado que ganharam as ocorrências da Cova de Iria. Aliás, essa ligação foi uma suspeita imediata dos republicanos, que chegaram a prender os "pastorinhos", evitando a presença a 13 de Agosto de 1917.
(4) A situação fica ainda menos clara, porque há outro Arco da Memória, também na Serra dos Candeeiros, mais próximo da Serra de Alvados, mas que não teria nenhuma estátua real:
Arco da Memória perto de Arrimal, Serra dos Candeeiros

Este outro Arco da Memória não parece ter o mesmo registo histórico do anterior, mas foi também ligado à marcação dos domínios de Cister do Mosteiro de Alcobaça. 
Com inúmeros muros de pedra, que ornamentam grandes extensões da Serra, fazendo lembrar os muros açorianos, os monumentos singulares, atribuídos a uma marcação dos domínios de Cister, não seriam afinal outro tipo de monumentos, de outros tempos, depois aproveitados para outras "estórias"?
(5) Se não parece haver dúvidas sobre a estátua de D. Afonso Henriques ser do Séc. XVI, é significativa a frase constante no texto do Archivo Pittoresco:
Entre os povos da localidade e circumvisinhanças, é inteiramente desconhecido o nome da serra de Albardos, dando-lhe o de serra de Rio Maior, por ficar não mui distante desta villa, e das suas celebres bocas, das quaes ainda tenciono fallar. Chamam elles a este arco o rei da memoria, nutrindo fabulosas opiniões, filhas da sua ignorancia, e dão interpretações vagas e até absurdas sobre a origem d'este monumento.
Portanto a população não corroborava por completo a lenda de D. Afonso Henriques, ou chamava-lhe "rei da memória", estando associada a "fábulas" de "ignorantes", segundo opinião do autor do texto, P. C. Sequeira, em 1863. Como o autor não especifica as fábulas, fica a questão se remeteriam de novo a Hércules, como era frequente em Portugal e Espanha.
(6) É ainda notável o artigo do Archivo Pittoresco ser seguido de outra opinião, do editor Silva Tullio, que critica o autor do texto, dizendo que faltaria mencionar a investigação histórica que remetia a concessão de D. Afonso Henriques como sendo uma "invenção dos frades bernardos" do Mosteiro de Alcobaça, para reivindicarem aquelas terras. Esta questiúncula levaria depois à destruição do monumento.

O que se conclui desta pequena análise?
Que as acusações de ignorância podem ser sempre repartidas, procurando apenas validar um tipo de conhecimento... "politicamente correcto", adequado aos propósitos dos acusadores. Se os houver, os detentores de uma história mais completa, não se livram dessa ignorância, que passa por não perceberem qual o propósito do conhecimento que guardam para si.

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publicado às 15:01

Sair da Foz

12.07.11
Umas ruínas, das mais interessantes que se encontram em Portugal, são as da chamada "alfândega" de Salir do Porto:
Estando razoavelmente abrigadas do mar e da rebentação, a degradação das ruínas tem-se mantido branda ao longo das últimas décadas, e será talvez caso único de edifícios muito antigos, que ainda se encontram junto à orla costeira. A entrada da barra de Salir e S. Martinho do Porto serviria uma extensa baía que se estenderia até Alfeizerão, que era o Porto marítimo, muito importante até ao Séc. XVII, conforme já aqui assinalámos, havendo diversa documentação.

Diz Pinho Leal que o nome Salir do Porto será etimologicamente "Sair do Porto", pois o verbo "sair" dizia-se "salir", tal como ainda acontece em espanhol. Curiosamente, diz ainda que "salir" tinha outro significado antigo, o de "falecer"... e ao contrário do que chegámos a pensar, "salir" nada parece ter a ver com "salinas".

Originalmente a povoação chamar-se-ia "Salir da Foz", talvez invocando a foz do rio Tornada, ainda que hoje este se trate basicamente de um ribeiro. Pinho Leal não deixa de referir que se trata de uma povoação muito antiga:
Esta povoação é antiquissima, e ficava a pouca distância da famosa cidade da antiga Lusitania chamada Eburobriga.
Na sequência de registo já aqui colocado sobre a zona contígua da Pederneira, e pedras da Serra da Pescaria, importa observar as ruínas do edifício da "alfândega":
Parece-nos claro que podemos identificar diferentes tipos de construção sobre a mesma estrutura.
A parte do topo, mais recente, identificada por (1), é a que se encontra predominantemente em todo a estrutura dos edifícios adjacentes. Trata-se de um muro conglomerado de pequenas pedras irregulares, o que contrasta significativamente com a base que tem ficado visível. A parte seguinte mostra uma base de pedras bastante maiores, umas que estariam predominantemente à superfície (2), e outras que devem ter estado quase sempre imersas (3) e (4). A estrutura, especialmente da junção das pedras (4) denota uma construção regular antiga diferente da colocada depois em (3) e (2), provavelmente numa época romana, e especialmente da estrutura superior, provavelmente medieval. É possível que a estrutura (4) remonte a tempos anteriores aos romanos, dando razão à menção "antiquíssima" dada por Pinho Leal.

Estas ruínas do edifício da "alfândega" estão numa zona exígua, em que ainda hoje há pouco (ou quase nenhum) espaço entre o íngreme monte e a água. A povoação de Salir do Porto está situada bem mais longe, fora da zona da praia, talvez num nível que antigamente fosse apropriado ao nível marítimo. Estes edifícios surgem assim fora do conjunto da vila, e ainda que a finalidade fosse a alfândega ou outra (fala-se também na reparação de navios ao tempo de D. Dinis, ou da construção(!) da nau São Gabriel...), há ainda hoje um motivo de atracção, que leva aquele ponto muita gente das redondezas. Trata-se da chamada "Pocinha" de Salir, que é uma fonte de água doce que brota no meio das rochas marítimas. Tem apenas um cano largo, de aspecto muito antigo, por onde a água jorra abundantemente há séculos... e poderá ter servido como fonte de abastecimento de água natural, antes da saída dos navios para alto mar. Hoje há ainda alguma romaria local a essa fonte de água, baseada numa tradição popular de propriedades medicinais...

No topo desse monte, promontório sul da barra, do lado de Salir do Porto, encontra-se ainda uma capela em ruínas, denominada Capela de Sant'Ana, sobre a qual não consegui encontrar muitos pormenores - aparenta ter estado já abandonada na época do censo do Marquês de Pombal.
A sua construção parece basear-se no mesmo conglomerado que vemos na "alfândega", provavelmente de época medieval, mas o arco "romano" que ainda define a porta de entrada parece estar lá há bastante mais tempo. Se é possível associá-lo a uma primitiva construção medieval, também não será inverosímel que houvesse uma estrutura bem mais antiga, de onde se aproveitaram as colunas quadradas e o arco circular, que aparentam destoar da restante construção.
Capela de Sant'Ana (Salir do Porto).

Dentro dos limites da vila, encontra-se ainda um castro sinalizado, que chegou a merecer alguma atenção arqueológica. Estas outras estruturas mais visíveis não estão sinalizadas, ficaram quase propositadamente ao abandono dos tempos e dos elementos, sem que ainda hoje pareça haver nenhuma intenção de as conservar, são aquelas que nos prendem mais a atenção, pois parecem ser registos inconvenientes, convenientemente ignorados... 

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publicado às 07:56

Sair da Foz

12.07.11
Umas ruínas, das mais interessantes que se encontram em Portugal, são as da chamada "alfândega" de Salir do Porto:
Estando razoavelmente abrigadas do mar e da rebentação, a degradação das ruínas tem-se mantido branda ao longo das últimas décadas, e será talvez caso único de edifícios muito antigos, que ainda se encontram junto à orla costeira. A entrada da barra de Salir e S. Martinho do Porto serviria uma extensa baía que se estenderia até Alfeizerão, que era o Porto marítimo, muito importante até ao Séc. XVII, conforme já aqui assinalámos, havendo diversa documentação.

Diz Pinho Leal que o nome Salir do Porto será etimologicamente "Sair do Porto", pois o verbo "sair" dizia-se "salir", tal como ainda acontece em espanhol. Curiosamente, diz ainda que "salir" tinha outro significado antigo, o de "falecer"... e ao contrário do que chegámos a pensar, "salir" nada parece ter a ver com "salinas".

Originalmente a povoação chamar-se-ia "Salir da Foz", talvez invocando a foz do rio Tornada, ainda que hoje este se trate basicamente de um ribeiro. Pinho Leal não deixa de referir que se trata de uma povoação muito antiga:
Esta povoação é antiquissima, e ficava a pouca distância da famosa cidade da antiga Lusitania chamada Eburobriga.
Na sequência de registo já aqui colocado sobre a zona contígua da Pederneira, e pedras da Serra da Pescaria, importa observar as ruínas do edifício da "alfândega":
Parece-nos claro que podemos identificar diferentes tipos de construção sobre a mesma estrutura.
A parte do topo, mais recente, identificada por (1), é a que se encontra predominantemente em todo a estrutura dos edifícios adjacentes. Trata-se de um muro conglomerado de pequenas pedras irregulares, o que contrasta significativamente com a base que tem ficado visível. A parte seguinte mostra uma base de pedras bastante maiores, umas que estariam predominantemente à superfície (2), e outras que devem ter estado quase sempre imersas (3) e (4). A estrutura, especialmente da junção das pedras (4) denota uma construção regular antiga diferente da colocada depois em (3) e (2), provavelmente numa época romana, e especialmente da estrutura superior, provavelmente medieval. É possível que a estrutura (4) remonte a tempos anteriores aos romanos, dando razão à menção "antiquíssima" dada por Pinho Leal.

Estas ruínas do edifício da "alfândega" estão numa zona exígua, em que ainda hoje há pouco (ou quase nenhum) espaço entre o íngreme monte e a água. A povoação de Salir do Porto está situada bem mais longe, fora da zona da praia, talvez num nível que antigamente fosse apropriado ao nível marítimo. Estes edifícios surgem assim fora do conjunto da vila, e ainda que a finalidade fosse a alfândega ou outra (fala-se também na reparação de navios ao tempo de D. Dinis, ou da construção(!) da nau São Gabriel...), há ainda hoje um motivo de atracção, que leva aquele ponto muita gente das redondezas. Trata-se da chamada "Pocinha" de Salir, que é uma fonte de água doce que brota no meio das rochas marítimas. Tem apenas um cano largo, de aspecto muito antigo, por onde a água jorra abundantemente há séculos... e poderá ter servido como fonte de abastecimento de água natural, antes da saída dos navios para alto mar. Hoje há ainda alguma romaria local a essa fonte de água, baseada numa tradição popular de propriedades medicinais...

No topo desse monte, promontório sul da barra, do lado de Salir do Porto, encontra-se ainda uma capela em ruínas, denominada Capela de Sant'Ana, sobre a qual não consegui encontrar muitos pormenores - aparenta ter estado já abandonada na época do censo do Marquês de Pombal.
A sua construção parece basear-se no mesmo conglomerado que vemos na "alfândega", provavelmente de época medieval, mas o arco "romano" que ainda define a porta de entrada parece estar lá há bastante mais tempo. Se é possível associá-lo a uma primitiva construção medieval, também não será inverosímel que houvesse uma estrutura bem mais antiga, de onde se aproveitaram as colunas quadradas e o arco circular, que aparentam destoar da restante construção.
Capela de Sant'Ana (Salir do Porto).

Dentro dos limites da vila, encontra-se ainda um castro sinalizado, que chegou a merecer alguma atenção arqueológica. Estas outras estruturas mais visíveis não estão sinalizadas, ficaram quase propositadamente ao abandono dos tempos e dos elementos, sem que ainda hoje pareça haver nenhuma intenção de as conservar, são aquelas que nos prendem mais a atenção, pois parecem ser registos inconvenientes, convenientemente ignorados... 

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