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Muito oportunamente recebemos hoje um comentário de Olinda Gil sobre a descoberta de um banco com formato piramidal por um velejador açoriano, Diocleciano Silva, em mais uma reportagem da RTP Açores.

Com base nesse comentário, no blog Portugalliae (de J.M. Oliveira) está já uma compilação que relaciona com outras descobertas subaquáticas na zona dos Açores:
http://portugalliae.blogspot.pt/2013/09/teoria-da-atlantida-no-arquipelago-dos.html

Este é mais um achado, que se junta a outros que têm vindo a merecer atenção sobre os Açores (já aqui falámos das Pirâmides da ilha do Pico, da Grota do Medo, dos hipogeus na Terceira e Corvo, etc., não esquecendo também a estranha formação submarina ao largo da Madeira... agora disfarçada no Google Maps)

Apenas aproveito para complementar com alguma outra informação relacionada.
Começamos por uma informação batimétrica dessa zona, entre a Terceira e São Miguel, onde é muito bem conhecido o Banco de D. João de Castro.
Imagem batimétrica, onde se vê o Banco D. João de Castro (info daqui
e assinalamos com uma seta o outro banco que pode ser a formação pirâmidal mencionada.

A seta preta assinala uma proeminência que se destaca, que parece ter uma forma piramidal pronunciada, e que é a única tão próxima da superfície do mar, sem ser o conhecido Banco de D. João de Castro. Aliás as montanhas submarinas dos Açores têm sido alvo de exploração recente, como mostra o vídeo da Univ. dos Açores:
Vídeo da Univ. Açores sobre montanhas submarinas açorianas.

Portanto, é claro que o velejador Diocleciano Silva não será o primeiro a deparar-se com a estrutura, que será bem conhecida de todos os que realizaram estudos batimétricos na zona da fossa planalto Hirondelle (... andorinha, era o nome do barco do princípe Alberto I do Mónaco).
A página de onde retirei a figura batimétrica é sobre uma outra formação, chamada o Banco do Mónaco, mais a sul, sudoeste de S. Miguel. Trata-se de um vulcão submarino, e é curiosa a menção feita na página de vulcanologia:
The volcano is unusual for a European volcano as it has never been studied.

Os Açores têm destas coisas... há coisas que nunca foram estudadas.
Por isso são naturais as tentativas de descobrir - ou seja de retirar do encobrir, já que Portugal é feito da matéria do Encoberto.

É claro que a questão do velejador seria prontamente resolvida se houvesse informação disponível, mas assim fica encoberta por toda a ausência de informação divulgada. Estes "achados" são assim falados por uns tempos, correm o facebook por um par de dias, e depois aguarda-se que entrem naturalmente no esquecimento.
Como a população tem uma curiosidade não persistente, o assunto merece uma atenção fugaz, já que as pessoas se conformaram a ter uma informação não esclarecida. Rapidamente haverá outro assunto que prenderá a atenção, e o mistério desaparece naturalmente.

No caso em concreto convém notar apenas que a formação pode ser natural, pois o aparelho usado pelo velejador parecia estar no limite da sua resolução, e nessa altura as linhas curvas podem ser apresentadas simplificadamente por quatro linhas, e a forma quadrangular pode sugerir uma forma piramidal (as curvas de nível da montanha do Pico numa má resolução poderiam aparecer da mesma maneira).
De qualquer forma, mais importante do que haver ali ou não uma pirâmide, é não haver logo um esclarecimento ao velejador, e o assunto ser alvo de reportagem como se a Marinha não soubesse, nem se tivesse passado ali com um sonar antes...
Ora, este conhecimento vai mesmo para além dos 100 anos, já que há esses estudos reportados a Alberto do Mónaco, e também ao nosso rei D. Carlos, que foi igualmente um oceanógrafo reconhecido.

Muito antes, no Séc. XVI, o próprio D. João de Castro ficou conhecido pelos seus estudos sobre os baixios.
Nessa altura chamavam-se "baixios" e não "bancos", mas agora é mais fácil associar a riqueza que guardam estes bancos e perceber como pode haver uma crise com a revelação dos segredos dos bancos (... velando pirâmides financeiras).
O significado das palavras serve vários propósitos.

Esses baixios apareciam representados nos Roteiros de D. João de Castro, vice-rei da Índia, como é exemplo na próxima gravura, e visavam evitar problemas de navegação com profundidades baixas.
(Roteiros de D. João de Castro, Biblioteca da Univ. Coimbra)

É claro que esta precisão de contornos dos baixios envolveu uma pesquisa sistemática na navegação.
Na altura seria provavelmente usado o esquema clássico de lançar uma corda ao fundo e medir as braças.
Esta menção aos baixios pode ter sido mais sistematizada por ordem de D. João de Castro, mas já seria encontrada em mapas anteriores.
Alguns baixios em frente da costa de Moçambique já estavam delineados no Livro de Marinharia de João de Lisboa e apareceram designados depois com a referência a D. João de Castro. Por isso, antes da designação desse Banco D. João de Castro nos Açores (vulcão submarino que originou uma ilha temporária em 1720-22) havia outros "bancos de D. João de Castro", na costa próxima de Moçambique, junto às Ilhas Comores.

Costa de Moçambique. Baixios de D. João ... de Castro.
No Livro de Marinharia (c. 1514-60) a menção aos baixios, 
e sua localização no Google Maps (seta amarela).


Repare-se que a menção aos baixios envolve um conhecimento de grande profundidade no Séc. XVI.
E, é literalmente profundo, pois marcas envolvem medições que iriam muito além de várias centenas de metros.

Nota adicional: (12/10/2013) __________________
A Marinha parece ter reduzido o problema à confusão do navegador com o Banco D. João de Castro:

É engraçada a forma de desinformação dos tempos recentes - basta a uns dizerem que sim, e a outros dizem que não.
Um é velejador solitário, o outro é a Marinha com os registos oficiais de maior "sensibilidade".
Não foi preciso confrontação dos dois registos. 
Ficamos a saber que até à comunicação à RTP Açores, o velejador pesquisou durante vários meses sem saber da existência de tal banco, que aparece em todos os mapas. Por outro lado, os repórteres da RTP Açores fazem uma reportagem sem se informarem com mais nenhuma fonte. A Marinha demora 12 dias a concluir uma trivialidade poderia ter sido esclarecida em 5 minutos. 
Uma trapalhada!... uma sucessão de enganos e incompetências, que afectam instituições com algum prestígio - mas é suposto ser normal as instituições darem como perdida a sua respeitabilidade. Haja paciência!

De qualquer forma, já antevendo desfechos deste género como os únicos possíveis num quadro de ocultação, este texto foi feito para ter relevância para além da observação de Diocleciano Silva.
Entre outras coisas, fica claro pelo mapa que apresentámos aqui que há uma estrutura de forma piramidal acentuada, que não é o Banco D. João de Castro, é aquela que está assinalada pela seta a negro, e que mais uma vez não foi mencionada.

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 07:55

Muito oportunamente recebemos hoje um comentário de Olinda Gil sobre a descoberta de um banco com formato piramidal por um velejador açoriano, Diocleciano Silva, em mais uma reportagem da RTP Açores.

Com base nesse comentário, no blog Portugalliae (de J.M. Oliveira) está já uma compilação que relaciona com outras descobertas subaquáticas na zona dos Açores:
http://portugalliae.blogspot.pt/2013/09/teoria-da-atlantida-no-arquipelago-dos.html

Este é mais um achado, que se junta a outros que têm vindo a merecer atenção sobre os Açores (já aqui falámos das Pirâmides da ilha do Pico, da Grota do Medo, dos hipogeus na Terceira e Corvo, etc., não esquecendo também a estranha formação submarina ao largo da Madeira... agora disfarçada no Google Maps)

Apenas aproveito para complementar com alguma outra informação relacionada.
Começamos por uma informação batimétrica dessa zona, entre a Terceira e São Miguel, onde é muito bem conhecido o Banco de D. João de Castro.
Imagem batimétrica, onde se vê o Banco D. João de Castro (info daqui
e assinalamos com uma seta o outro banco que pode ser a formação pirâmidal mencionada.

A seta preta assinala uma proeminência que se destaca, que parece ter uma forma piramidal pronunciada, e que é a única tão próxima da superfície do mar, sem ser o conhecido Banco de D. João de Castro. Aliás as montanhas submarinas dos Açores têm sido alvo de exploração recente, como mostra o vídeo da Univ. dos Açores:
Vídeo da Univ. Açores sobre montanhas submarinas açorianas.

Portanto, é claro que o velejador Diocleciano Silva não será o primeiro a deparar-se com a estrutura, que será bem conhecida de todos os que realizaram estudos batimétricos na zona da fossa planalto Hirondelle (... andorinha, era o nome do barco do princípe Alberto I do Mónaco).
A página de onde retirei a figura batimétrica é sobre uma outra formação, chamada o Banco do Mónaco, mais a sul, sudoeste de S. Miguel. Trata-se de um vulcão submarino, e é curiosa a menção feita na página de vulcanologia:
The volcano is unusual for a European volcano as it has never been studied.

Os Açores têm destas coisas... há coisas que nunca foram estudadas.
Por isso são naturais as tentativas de descobrir - ou seja de retirar do encobrir, já que Portugal é feito da matéria do Encoberto.

É claro que a questão do velejador seria prontamente resolvida se houvesse informação disponível, mas assim fica encoberta por toda a ausência de informação divulgada. Estes "achados" são assim falados por uns tempos, correm o facebook por um par de dias, e depois aguarda-se que entrem naturalmente no esquecimento.
Como a população tem uma curiosidade não persistente, o assunto merece uma atenção fugaz, já que as pessoas se conformaram a ter uma informação não esclarecida. Rapidamente haverá outro assunto que prenderá a atenção, e o mistério desaparece naturalmente.

No caso em concreto convém notar apenas que a formação pode ser natural, pois o aparelho usado pelo velejador parecia estar no limite da sua resolução, e nessa altura as linhas curvas podem ser apresentadas simplificadamente por quatro linhas, e a forma quadrangular pode sugerir uma forma piramidal (as curvas de nível da montanha do Pico numa má resolução poderiam aparecer da mesma maneira).
De qualquer forma, mais importante do que haver ali ou não uma pirâmide, é não haver logo um esclarecimento ao velejador, e o assunto ser alvo de reportagem como se a Marinha não soubesse, nem se tivesse passado ali com um sonar antes...
Ora, este conhecimento vai mesmo para além dos 100 anos, já que há esses estudos reportados a Alberto do Mónaco, e também ao nosso rei D. Carlos, que foi igualmente um oceanógrafo reconhecido.

Muito antes, no Séc. XVI, o próprio D. João de Castro ficou conhecido pelos seus estudos sobre os baixios.
Nessa altura chamavam-se "baixios" e não "bancos", mas agora é mais fácil associar a riqueza que guardam estes bancos e perceber como pode haver uma crise com a revelação dos segredos dos bancos (... velando pirâmides financeiras).
O significado das palavras serve vários propósitos.

Esses baixios apareciam representados nos Roteiros de D. João de Castro, vice-rei da Índia, como é exemplo na próxima gravura, e visavam evitar problemas de navegação com profundidades baixas.
(Roteiros de D. João de Castro, Biblioteca da Univ. Coimbra)

É claro que esta precisão de contornos dos baixios envolveu uma pesquisa sistemática na navegação.
Na altura seria provavelmente usado o esquema clássico de lançar uma corda ao fundo e medir as braças.
Esta menção aos baixios pode ter sido mais sistematizada por ordem de D. João de Castro, mas já seria encontrada em mapas anteriores.
Alguns baixios em frente da costa de Moçambique já estavam delineados no Livro de Marinharia de João de Lisboa e apareceram designados depois com a referência a D. João de Castro. Por isso, antes da designação desse Banco D. João de Castro nos Açores (vulcão submarino que originou uma ilha temporária em 1720-22) havia outros "bancos de D. João de Castro", na costa próxima de Moçambique, junto às Ilhas Comores.

Costa de Moçambique. Baixios de D. João ... de Castro.
No Livro de Marinharia (c. 1514-60) a menção aos baixios, 
e sua localização no Google Maps (seta amarela).


Repare-se que a menção aos baixios envolve um conhecimento de grande profundidade no Séc. XVI.
E, é literalmente profundo, pois marcas envolvem medições que iriam muito além de várias centenas de metros.

Nota adicional: (12/10/2013) __________________
A Marinha parece ter reduzido o problema à confusão do navegador com o Banco D. João de Castro:

É engraçada a forma de desinformação dos tempos recentes - basta a uns dizerem que sim, e a outros dizem que não.
Um é velejador solitário, o outro é a Marinha com os registos oficiais de maior "sensibilidade".
Não foi preciso confrontação dos dois registos. 
Ficamos a saber que até à comunicação à RTP Açores, o velejador pesquisou durante vários meses sem saber da existência de tal banco, que aparece em todos os mapas. Por outro lado, os repórteres da RTP Açores fazem uma reportagem sem se informarem com mais nenhuma fonte. A Marinha demora 12 dias a concluir uma trivialidade poderia ter sido esclarecida em 5 minutos. 
Uma trapalhada!... uma sucessão de enganos e incompetências, que afectam instituições com algum prestígio - mas é suposto ser normal as instituições darem como perdida a sua respeitabilidade. Haja paciência!

De qualquer forma, já antevendo desfechos deste género como os únicos possíveis num quadro de ocultação, este texto foi feito para ter relevância para além da observação de Diocleciano Silva.
Entre outras coisas, fica claro pelo mapa que apresentámos aqui que há uma estrutura de forma piramidal acentuada, que não é o Banco D. João de Castro, é aquela que está assinalada pela seta a negro, e que mais uma vez não foi mencionada.

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 07:55


[continuação]
de Peças dos Painéis de S. Vicente (3)
e de Peças dos Painéis de S. Vicente (2) 


13) Santos
Talvez a primeira coisa a notar é que não será fácil encontrar "santos" nesta história. 
Há projectos familiares, heranças, que se disputam pelo interesse patrimonial, indiferentemente de serem grandes terras, um simples cordão de ouro da avó, ou um território de caça de um felino.
Algo completamente diferente é um projecto social, uma solução de convivência com vantagens para os diversos intervenientes, um sistema protector das diversas ameaças.
Os conceitos misturam-se de forma complexa nos conflitos históricos, e se os projectos familiares se apoderaram do projecto social, outras vezes, raras, foram os próprios projectos familiares a cederem face ao futuro do projecto social idealizado. A nobreza é o projecto social, e degenerou pela sua confusão com o projecto familiar... projectos familiares todos têm, mesmo as alimárias. A separação de classes seria uma protecção do modelo da ordem medieval, não tinha benefícios em ser estanque, e isso acabou por perverter o seu sentido, tornando-se num conjunto cada vez mais caótico de projectos familiares.
Um grande pelicano seria capaz de sacrificar a sua carne para alimentar um ideal de sociedade. E isso deixou marcas profundas, de admiração, mas também de indignação.

Não consta ter havido nenhum apuramento especial das circunstâncias "misteriosas" em que ocorreu a morte do príncipe Afonso. Para um rei que puniu exemplarmente eventuais conspirações contra si, seria de esperar um outro tipo de reacção, e não propriamente deixar sem grande investigação o "acidente". Porém, creio que a D. João II não o preocupava especialmente a sua pessoa, mas sim o projecto social - pela lei, pela grei. Mas, pela grei, colocava-se, se necessário, acima da lei. Há um poder executivo que dá relevo ao poder da justiça, e de certa forma à representação do povo (que já existia nas cortes pela figura dos concelhos). Parece-nos um prelúdio de uma separação de poderes, tendo como objectivo o serviço da população e não apenas dos interesses da nobreza.

Dificilmente encontramos outro quadro europeu da época que coloque com destaque semelhante frades e pescadores, reis, navegadores, cavaleiros e sábios. Porque essa sugestão de representação também se encontra no quadro, e motivou as designações popularizadas.
Só por si, essa sugestão, reflexo da ousadia na governação, e não da ousadia arriscada de um pintor, deixaria a datação circunscrita a duas regências - a do Infante D. Pedro, ou mais provavelmente do neto, D. João II.

Quanto aos dois Santos, pareceu-me ver aí uma oposição de destinos na orientação das navegações.

Pelo lado ocidental, abria-se o livro do Novo Mundo e a colonização, não impediria ainda o comércio com o Oriente, evitando o conflito no Índico. Pelo lado oriental, fechava-se o negro pano, dava-se a batuta de comando, e haveria conflito nos mares. Pelo lado oriental, antevia-se ainda uma sangrenta expedição, com o velho motivo da Cruzada templária do Infante, e recordamos de novo as palavras do Cardeal Saraiva:
He portanto fora de duvida, que o sábio Infante levou na gloriosa empreza de seus descobrimentos hum fim mais alto e mais importante do que a mesquinha idéa de colher os Mouros pela retaguarda, idéa da qual se não diz uma só palavra na vida do Infante, nem de seu augusto pai, nem tão pouco em historia alguma dos descobrimentos Portuguezes.
(Cardeal Saraiva, Obras Completas, 1875)
[... e o ficheiro PDF onde coloquei isto, entretanto desapareceu-lhe o link, e terei que repor isso]

Aos Infantes abriam-se duas perspectivas, e ainda que D. João II tenha virado o tio a ocidente, acho que a tal "ideia mesquinha de colher os Mouros pela retaguarda", da qual "se continua a não dizer palavra"... essa ideia oriental, era a parte principal do projecto de D. Henrique.

Nessa perspectiva, procurámos identificar um Santo como Bartolomeu, que marcava a data das novas investidas contra os marroquinos, em Arzila e Tanger. Colocámos outras possibilidades, uma dualidade S. Jorge/ S. Bartolomeu ou S. Vicente/ S. Tomé, ainda a possibilidade de serem duas faces de S. Vicente, e não esquecendo o nome do mosteiro "São Vicente de Fora", admitimos que o nome pudesse resultar desse Santo não estar presente, ou de uma alusão à ocultação dos painéis.
Pois bem, essa questão do Santo estar "de Fora" parece ganhar um novo dado.

Lendo entretanto o site paineis.org, retive este excerto sobre o "manuscrito do Rio", que desconhecia:
Por outro lado, o único testemunho histórico que parece referir de forma inequívoca pelo menos dois dos painéis (os maiores), coloca-os no retábulo das relíquias de S. Vicente na Sé de Lisboa, mas limita-se a descrever de forma vaga cenas que não entende. Trata-se do frequentemente citado manuscrito do Rio de Janeiro, descoberto por Artur da Motta Alves em 1936, onde um autor anónimo faz uma resenha dos retratos de figuras reais existentes em igrejas e mosteiros de Lisboa.
O documento data de fins do séc. XVI, e nele se refere expressamente que os dois painéis, descritos de memória, já não se encontram no local, sendo o seu paradeiro ignorado («... dirão os cónegos onde estão...»).
A forma como o autor recorda os painéis, atribuindo-os a um tal Mota, pintor de D. João II, não identificando uma única das figuras que rodeiam o «santo», e justificando o estranho aspecto efeminado deste último através da identificação do seu rosto com o de um adolescente – o infante D. Afonso, filho de D. João II, nascido em 1475 e falecido aos 16 anos – indica uma estranha ignorância do significado das duas cenas e da identidade dos seus protagonistas, por parte de quem se mostra informado acerca de outros retratos de reis existentes em Lisboa. Note-se que o exame radiográfico indica que a hipotética repintura tardia de um rosto adolescente numa figura adulta, necessária à sua identificação com o do malogrado príncipe, não teve lugar. 
Desta importante informação adicional, que destaquei, fica clara a atribuição que era dada ao quadro no Séc. XVI... como se dúvidas ainda houvesse.
S. Vicente está "de fora", é aí colocado o príncipe D. Afonso. Não é que isto seja determinante na interpretação, as interpretações são múltiplas, mesmo em quadros actuais. Nem será pelo facto de ter feito todo o caminho de dedução para a datação, e contexto envolvente na execução, que as minhas opiniões interpretativas, sejam mais que isso - opiniões pessoais, mas justificadas.

O objectivo destes textos era justificar "melhor" a opinião que coloquei há três anos, não me afectaria muito que ela fosse considerada certa ou errada, interessava-me que ela fosse consistente com a informação que procurei, sem omitir as eventuais fragilidades da tese. Penso ser este o melhor caminho para a procura de uma verdade comum, partilhada.

Bom, pode-se dizer que aqui eu estava errado - é possível, não escrevi a hipótese de D. Afonso ser a figura representada num santo, mas também me lembro que não deixei de considerar essa possibilidade.
Agora, que ela fica mais clara, pela revelação do "manuscrito do Rio", avanço então com a possibilidade "mais profana", no sentido de que seriam elevados a santos outras figuras.

Há duas caras nos santos, e parece claro que não seria por falta de engenho do pintor... foi propositado, e assim haveria dois modelos. Que modelos poderiam ser ali considerados ao nível de "santos"?
Um, como já ficou claro pelo manuscrito, é D. Afonso, e está no 4º painel.
Quem é o outro "santo" que está no 3º painel?
- Santa Joana Princesa, irmã do rei, que cuidou de D. Jorge, como uma mãe... como já o tinha feito com o próprio irmão, órfão à nascença da sua mãe, D. Isabel de Coimbra.

Talvez até estejam as duas Joanas (irmã e tia), na própria representação de mãe, que D. João II nem conheceu, mas sendo já três invocações, continuarei as contas da forma que um célebre reitor/cantor ensinou "... quatro, cinco, seis, é uma história de reis", não deixando por isso de considerar que as dualidades de santos, que escrevi, fazem sentido ainda como parte desta história.

Para quem considerar esta tese, percebe a riqueza da composição, do mau e bom génio de um enorme Rei, e percebe como é complicado aceitar que isto seja ocultado. Perceberá também porque nem gosto muito de recordar o assunto.

Não falei muito da Rainha D. Leonor, mas será uma peça chave no que se seguirá em Portugal.
O seu drama pessoal será enorme.
Depois de ver o seu irmão assassinado pelo marido, tem o filho morto em circunstâncias suspeitas... um filho que o marido considerava fraco, e manifestara as suas dúvidas sobre a sua capacidade de governação. Promovia agora outro filho, em detrimento do seu irmão D. Manuel.
Por esta razão fiz aquela pequena introdução sobre como a dualidade entre o projecto social e o projecto familiar poderiam entrar em profundo conflito na nobreza. Que rei seria capaz de ferir a sua própria carne? O pelicano de D. João II certamente que não ajudaria às interrogações de D. Leonor.
Houve assim suspeitas que não estivesse completamente alheada da cobrança que D. João II sofreu na carne, que o terá envenenado, irremediavelmente, vindo a morrer poucos anos depois (1495).

D. Leonor era de Viseu, D. João assumia a herança de Coimbra, do seu avô, o quadro apontava para terceiros culpados, os Bragança e as ligações a Castela/Espanha... Porém, a colocação das peças no quadro revela o génio, o bom e o mau... Aquele quadro, mas sobretudo o enquadramento da sua intemperança, poderão ter ditado a morte do artista... ou dos artistas, porque pouco mais se soube de Nuno Gonçalves. O seu nome foi até esquecido, e poderá ter sido confundido com outro, não é relevante. Lê-se na Infopedia que o último documento que o menciona em 1492 é já a título póstumo. Pensamos perceber porquê, mas se o "braço artista" do rei foi cortado, também parece ter sido o da pintura, durante alguns anos.
Passados muitos séculos, a sua arte viu a luz, ocultando-se a condução da composição, do rei. Temos dúvidas que Nuno Gonçalves possa ser banido por algum código da nobreza, ele não seria nobre, e pode até ter sido um simples executor de instruções reais, se as entendeu ou não, era irrelevante.
Compreendemos que num estrito formalismo, em que a sintaxe suplanta a semântica, a arte de D. João II seja ainda banida pelos circuitos mais conservadores, "vencedores" da velha querela.
Apesar de ter logo dito
"O clima fúnebre e sinistro do quadro, mantém-se hoje..."
... não esperava que esse tipo de mentalidade ainda estivesse tão activa, mas fui aprendendo.


14) A Relíquia
Não li ainda a obra de Eça de Queirós, mas já deveria ter lido.
Bom, no 6º painel, a que é dado o nome "relíquia", considerei que os personagens principais se tratavam dois sábios da confiança de D. João II, ou seja Mestre Rodrigo de Lucena, médico (ou "físico-mor"), e mais acima Mestre José Vizinho, matemático, de origem judaica.
O escrito anterior reforça essa hipótese e por isso pouco tenho a acrescentar de novo. Noto agora que a existência de dois livros, um em latim, e outro em hebreu, mesmo em segundo plano, poderá ter aberto outro problema - religioso.

A interpretação de que a relíquia se tratava do osso do crânio de D. Afonso mantém-se válida, disse então:
                         A relíquia, o osso craniano, pode ser uma alusão ao defunto Afonso, indicando a fractura da futura cabeça do reino. Falta a relíquia - o cérebro, para ler tudo o que o painel representa. Falta ainda o cérebro para prosseguir a herança do conhecimento de Avis - é essa a relíquia que o Mestre Rodrigo nos mostra.

Só para esclarecer eventuais mal-entendidos que, como sabemos há muitos, quando referi que faltava  "- o cérebro para ler tudo o que painel representa...", estava obviamente a referir ao de um qualquer observador! Não considerei que o intuito do quadro fosse um enigma por resolver, apenas é visto assim pelas condicionantes que se criaram à sua volta.

Não falei da caixa, e nem tinha reparado que se considera outra, preta, no 1º painel. Admito que possa ser o caixão que foi temporariamente aberto para permitir toda a representação, juntando presentes e ausentes (a parte preta seria a sua tampa).

Quanto ao "velho", que nem tem a barba bem feita, trata-se claramente de uma figura popular, talvez quem tenha descoberto "a relíquia", ou levado o corpo do príncipe morto. Por outro lado, será genuinamente a única figura que não frequentava o paço real, o povo distante de Lisboa. A melhor compreensão deste painel passará ainda por identificar os dois personagens nos bastidores, algo que nem sequer tentei.


15) Navegar
O 4º painel, de que pouco falei até aqui, considerei-o dos "navegantes", genericamente.
Adiantei uma possível identificação de Gama, talvez Paulo e não tanto Vasco, não especifiquei, porque creio que Paulo, mais velho, seria o preferido por D. João II, mas para reduzir as explicações ao mínimo, não quis entrar em detalhes, na altura.
Assim sendo, com este nível de incerteza, não valerá muito a pena comparar imagens, mas o excelente quadro de Vasco da Gama atribuído a Gregório Lopes, poderia ser uma comparação possível, e com essa latitude não vejo impedimento que se tratassem de irmãos.

O caminho das Índias seria atribuído aos Gamas, pedido posterior de D. João II a D. Manuel (quando já se afigurava incontornável a sucessão), provavelmente por recompensa de outras navegações notáveis. Lembramos que havia uma "Angra dos Gamas" na Carta ou Portulano do Atlântico Norte, naquilo que poderia ser uma procura da entrada para a Passagem Noroeste, ou seja, outra ligação para a China. Se os Corte-Real a tentaram de novo, pode ter sido porque Paulo da Gama já era morto. Paulo recusara ser o protagonista da viagem de circum-navegação africana, mas acompanharia o seu irmão. Morreu na viagem de regresso e o seu barco, S. Rafael, foi queimado... Apenas resta dizer que, se assim foi, pelo menos a sua memória permaneceu nos painéis.

Do lado sul, convém lembrar que Pigafeta "descai-se" sobre a viagem de Magalhães, dizendo que Magalhães sabia de memória um mapa de Martin Behaim que teria o caminho do estreito... e como já dissemos, Behaim acompanhava Diogo Cão em 1483, quando foi declarada a chegada ao Congo (o suposto grande feito de avançar mais umas tantas milhas na costa africana, cheia de "praias difíceis"!).
Não se conhecem a Behaim muitas mais viagens, ou pretensões de outras navegações. Se Behaim tinha esse mapa, foi porque provavelmente acompanhou Diogo Cão na outra parte dessa viagem ao "Congo" - e pelo caminho descobriu assim a "Cola do Dragão", ou seja, o Estreito "de Magalhães"... em 1483.

A norte, Paulo da Gama, a sul, Diogo Cão, pouco importa, dois hipotéticos protagonistas das passagens americanas, ficariam colocados com um destaque de realeza, tal como Mestre Rodrigo, aliás.

Sendo este "Nuno Gonçalves" o segundo texto da série de sete que apresentava na altura, não iria logo descriminar estes detalhes, que foram aparecendo nos textos seguintes.

A batuta era dada a Paulo da Gama, mas para usar um caminho diferente, e isso justificaria a sua posterior recusa perante a oferta de D. Manuel. O quadro talvez mostrasse uma cedência parcial de D. João II - o caminho seria o oriental, mas não contornando África. Esse caminho teve D. João II muito tempo (7 anos) para o abrir, declarado o Monte Prasso (depois Cabo da Boa Esperança) em 1488, por um certo Bartolomeu Dias, cujo nome nos sugeriu Dia S Bartolomeu.
Esse caminho de S. Bartolomeu, manifestamente não parece ter sido pretendido por D. João II, mas foi depois retomado por D. Manuel, mas já com outro Gama.

Talvez... Paulo da Gama e Diogo Cão

A colocação neste painel de um D. Diogo morto, ou de um D. Manuel, levantaria ainda mais impossibilidades de qualquer aceitação de tal cenário numa corte plena de hostilidade. Mas D. João II não era hostil a D. Manuel, ainda jovem, por isso preferi considerar que poderia estar no 5º painel, dos "cavaleiros". A colocação de D. Diogo naquela posição talvez se referisse ao diferendo que houve entre ambos e que levou ao seu assassinato... era possível que D. Diogo pretendesse aquele protagonismo de descobertas para a nobreza, para si! Se aquele era um rosto similar ao de D. Manuel, poderia constituir um "aviso de navegação", sobre atitudes similares, ou negociatas de partilha de explorações com os espanhóis.

Um pouco mais acima, temos dois personagens em destaque, mas mais difíceis de identificar.
À esquerda, pela sua idade, creio que pensei em Diogo de Azambuja, homem de confiança de D. João II, a quem confiara o Castelo de S. Jorge da Mina (outro santo escolhido), à direita acho que não pensei em nenhum candidato, mas haverá certamente muitos, e entre aqueles cuja história o nome não lembra. Não creio que seja necessariamente um navegador, talvez alguém mais ligado à parte militar.

Acima de todos, surge um arcebispo, que dá nome ao painel. Pensei em D. Pedro de Noronha, não com razões especiais, para além de se poder ajustar... ou ainda em D. Jorge Costa, um arcebispo exilado em Roma, inimigo que considerava morto, e a sua colocação, próximo de Afonso de Bragança, poderia indicar essa hostilidade. Como já foi notado por outros, a sua jóia assenta no "barrete mal cosido" de D. Diogo/ D. Manuel. Isto favorece a dupla representação, já que Roma certamente que apoiaria D. Manuel e não D. Jorge (que tem apenas uma pequena pérola no seu "barrete", contrastando com a magnífica jóia que "acidentalmente" fica no barrete de D. Manuel).

Para compensar aquela figura hostil morta/viva, que se oporia em Roma aos planos de D. João II, procurei saber os bispos que seriam seus eventuais aliados, enumerando Coimbra, Tanger e Algarve, e também o Prior do Crato...
Como é óbvio, tudo isto foram apenas suposições secundárias, com uma escolha de personagens ligeira, com eventuais falhas, mas que em nada afectava a interpretação global já avançada.

Finalmente, é claro, a corda no chão contribuiu bastante para esta associação às navegações.
D. Leonor tem no seu símbolo de camaroeiro uma corda, provavelmente ligada à rede, mas não creio que se tratasse dessa ligação.
Se a ideia do quadro era uma união através daquela corda, há pelo menos uma ponta solta, e até uma sombra rectangular, demasiado errada, parecendo uma emenda.
As cordas farão parte integrante da chamada "arquitectura manuelina", mas já se nota a sua presença em muitas construções, ainda no Séc. XV.


16) Últimos Cavaleiros
Já fui descrevendo porque considerei a ambivalente a possibilidade de D. Manuel estar representado  também neste painel, acima do pai D. Fernando de Viseu, e do seu tio-avô, o Infante D. Pedro.
Esta seria uma linha em que D. João II poderia mostrar à sua mulher, D. Leonor, que a prezava, por aquela ascendência paterna, e não pela sua outra ligação materna, que através de D. Beatriz tocava o "lado Bragança", como mostrava no painel simetricamente oposto. Este seria o painel para uma ligação Coimbra-Viseu, que invocaria o avô/tio-avô D. Pedro, o tio/pai D. Fernando, e o primo/irmão D. Manuel.
Poderia ter considerado o Infante D. João, não fora quebrar a "regra das mãos", e daria seguimento acima, para o "Infante Santo, D. Fernando", onde se vislumbram sinais do seu martírio africano, quer pelo capacete, que já foi entendido, por outros, mostrar em reflexo a "janela de Arzila", da sua cela.
No entanto, podemos considerar a omissão do Infante D. João pelo seu casamento com Isabel de Barcelos, e para mais, remetemos ao comentário sobre o painel dos "pescadores".

Era mais natural ver a seguir a D. Pedro, de que já falámos, D. Fernando de Viseu, um tio que provavelmente D. João II admirava, pela sua faceta de navegador pelas paragens atlânticas, americanas, mais do que pelo simples facto de ser pai de D. Leonor.
D. Fernando de Viseu estava já morto, e desde essa data tinha sido a mulher, D. Beatriz, a dirigir a Casa de Viseu, e não só... tornou-se na única mulher a ser Mestre da Ordem de Cristo, sucedendo assim ao seu marido, e não deixando de financiar expedições a ocidente.

Ora, estando D. Fernando morto, mais uma vez colocava-se o problema "das mãos", que não estavam em sinal de paz, mas por outro lado também não se viam, porque era o único elemento da composição com luvas. Assumi que isso poderia ser entendido como uma excepção, dadas as luvas, e o seu "não descanso"...
Quanto a uma comparação com um retrato conhecido, dificilmente se pode considerar muito favorável.
No retrato mais antigo usa barba, e não são visíveis grandes detalhes do rosto. A linha do nariz não é incompatível, mas está longe de ser convincente. Ainda que o retrato antigo não seja de grande qualidade, os olhos e a ligação ao rosto não parecem condizer.
Poderá ser outro personagem, mas estragaria a lógica deste painel (não dos restantes).
Bom, mas foi com base nessa eventual lógica que prossegui para o seu filho, D. Manuel (talvez trocando feições com D. Diogo), e acima apareceria, algo deslocado, o Infante Santo.
A sua presença teria lógica como um aviso sobre a vontade de Cruzada, que era herdada por D. Manuel pela Casa de Viseu, do Infante D. Henrique.
O que se teria passado com o sacrifício do Infante D. Fernando arriscava a voltar a acontecer com a ideia de Cruzada pelo Índico, em direcção a Jerusalém, pela "retaguarda".

Foi assim que entendi, e preferi a lógica do conjunto à maior ou menor parecença dos retratos.

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Creio que abordei extensamente os diversos pontos que levantei, e alguns que outros levantaram, já que da outra vez fui necessariamente breve nas explicações, que me demorariam todo este tempo e detalhe.
Agradeço ao Clamente Baeta ter despertado de novo o assunto, que estava enterrado, para mim. É tempo de voltar a fechar a tampa do caixão e dar nova paz a este assunto.

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publicado às 07:56


[continuação]
de Peças dos Painéis de S. Vicente (3)
e de Peças dos Painéis de S. Vicente (2) 


13) Santos
Talvez a primeira coisa a notar é que não será fácil encontrar "santos" nesta história. 
Há projectos familiares, heranças, que se disputam pelo interesse patrimonial, indiferentemente de serem grandes terras, um simples cordão de ouro da avó, ou um território de caça de um felino.
Algo completamente diferente é um projecto social, uma solução de convivência com vantagens para os diversos intervenientes, um sistema protector das diversas ameaças.
Os conceitos misturam-se de forma complexa nos conflitos históricos, e se os projectos familiares se apoderaram do projecto social, outras vezes, raras, foram os próprios projectos familiares a cederem face ao futuro do projecto social idealizado. A nobreza é o projecto social, e degenerou pela sua confusão com o projecto familiar... projectos familiares todos têm, mesmo as alimárias. A separação de classes seria uma protecção do modelo da ordem medieval, não tinha benefícios em ser estanque, e isso acabou por perverter o seu sentido, tornando-se num conjunto cada vez mais caótico de projectos familiares.
Um grande pelicano seria capaz de sacrificar a sua carne para alimentar um ideal de sociedade. E isso deixou marcas profundas, de admiração, mas também de indignação.

Não consta ter havido nenhum apuramento especial das circunstâncias "misteriosas" em que ocorreu a morte do príncipe Afonso. Para um rei que puniu exemplarmente eventuais conspirações contra si, seria de esperar um outro tipo de reacção, e não propriamente deixar sem grande investigação o "acidente". Porém, creio que a D. João II não o preocupava especialmente a sua pessoa, mas sim o projecto social - pela lei, pela grei. Mas, pela grei, colocava-se, se necessário, acima da lei. Há um poder executivo que dá relevo ao poder da justiça, e de certa forma à representação do povo (que já existia nas cortes pela figura dos concelhos). Parece-nos um prelúdio de uma separação de poderes, tendo como objectivo o serviço da população e não apenas dos interesses da nobreza.

Dificilmente encontramos outro quadro europeu da época que coloque com destaque semelhante frades e pescadores, reis, navegadores, cavaleiros e sábios. Porque essa sugestão de representação também se encontra no quadro, e motivou as designações popularizadas.
Só por si, essa sugestão, reflexo da ousadia na governação, e não da ousadia arriscada de um pintor, deixaria a datação circunscrita a duas regências - a do Infante D. Pedro, ou mais provavelmente do neto, D. João II.

Quanto aos dois Santos, pareceu-me ver aí uma oposição de destinos na orientação das navegações.

Pelo lado ocidental, abria-se o livro do Novo Mundo e a colonização, não impediria ainda o comércio com o Oriente, evitando o conflito no Índico. Pelo lado oriental, fechava-se o negro pano, dava-se a batuta de comando, e haveria conflito nos mares. Pelo lado oriental, antevia-se ainda uma sangrenta expedição, com o velho motivo da Cruzada templária do Infante, e recordamos de novo as palavras do Cardeal Saraiva:
He portanto fora de duvida, que o sábio Infante levou na gloriosa empreza de seus descobrimentos hum fim mais alto e mais importante do que a mesquinha idéa de colher os Mouros pela retaguarda, idéa da qual se não diz uma só palavra na vida do Infante, nem de seu augusto pai, nem tão pouco em historia alguma dos descobrimentos Portuguezes.
(Cardeal Saraiva, Obras Completas, 1875)
[... e o ficheiro PDF onde coloquei isto, entretanto desapareceu-lhe o link, e terei que repor isso]

Aos Infantes abriam-se duas perspectivas, e ainda que D. João II tenha virado o tio a ocidente, acho que a tal "ideia mesquinha de colher os Mouros pela retaguarda", da qual "se continua a não dizer palavra"... essa ideia oriental, era a parte principal do projecto de D. Henrique.

Nessa perspectiva, procurámos identificar um Santo como Bartolomeu, que marcava a data das novas investidas contra os marroquinos, em Arzila e Tanger. Colocámos outras possibilidades, uma dualidade S. Jorge/ S. Bartolomeu ou S. Vicente/ S. Tomé, ainda a possibilidade de serem duas faces de S. Vicente, e não esquecendo o nome do mosteiro "São Vicente de Fora", admitimos que o nome pudesse resultar desse Santo não estar presente, ou de uma alusão à ocultação dos painéis.
Pois bem, essa questão do Santo estar "de Fora" parece ganhar um novo dado.

Lendo entretanto o site paineis.org, retive este excerto sobre o "manuscrito do Rio", que desconhecia:
Por outro lado, o único testemunho histórico que parece referir de forma inequívoca pelo menos dois dos painéis (os maiores), coloca-os no retábulo das relíquias de S. Vicente na Sé de Lisboa, mas limita-se a descrever de forma vaga cenas que não entende. Trata-se do frequentemente citado manuscrito do Rio de Janeiro, descoberto por Artur da Motta Alves em 1936, onde um autor anónimo faz uma resenha dos retratos de figuras reais existentes em igrejas e mosteiros de Lisboa.
O documento data de fins do séc. XVI, e nele se refere expressamente que os dois painéis, descritos de memória, já não se encontram no local, sendo o seu paradeiro ignorado («... dirão os cónegos onde estão...»).
A forma como o autor recorda os painéis, atribuindo-os a um tal Mota, pintor de D. João II, não identificando uma única das figuras que rodeiam o «santo», e justificando o estranho aspecto efeminado deste último através da identificação do seu rosto com o de um adolescente – o infante D. Afonso, filho de D. João II, nascido em 1475 e falecido aos 16 anos – indica uma estranha ignorância do significado das duas cenas e da identidade dos seus protagonistas, por parte de quem se mostra informado acerca de outros retratos de reis existentes em Lisboa. Note-se que o exame radiográfico indica que a hipotética repintura tardia de um rosto adolescente numa figura adulta, necessária à sua identificação com o do malogrado príncipe, não teve lugar. 
Desta importante informação adicional, que destaquei, fica clara a atribuição que era dada ao quadro no Séc. XVI... como se dúvidas ainda houvesse.
S. Vicente está "de fora", é aí colocado o príncipe D. Afonso. Não é que isto seja determinante na interpretação, as interpretações são múltiplas, mesmo em quadros actuais. Nem será pelo facto de ter feito todo o caminho de dedução para a datação, e contexto envolvente na execução, que as minhas opiniões interpretativas, sejam mais que isso - opiniões pessoais, mas justificadas.

O objectivo destes textos era justificar "melhor" a opinião que coloquei há três anos, não me afectaria muito que ela fosse considerada certa ou errada, interessava-me que ela fosse consistente com a informação que procurei, sem omitir as eventuais fragilidades da tese. Penso ser este o melhor caminho para a procura de uma verdade comum, partilhada.

Bom, pode-se dizer que aqui eu estava errado - é possível, não escrevi a hipótese de D. Afonso ser a figura representada num santo, mas também me lembro que não deixei de considerar essa possibilidade.
Agora, que ela fica mais clara, pela revelação do "manuscrito do Rio", avanço então com a possibilidade "mais profana", no sentido de que seriam elevados a santos outras figuras.

Há duas caras nos santos, e parece claro que não seria por falta de engenho do pintor... foi propositado, e assim haveria dois modelos. Que modelos poderiam ser ali considerados ao nível de "santos"?
Um, como já ficou claro pelo manuscrito, é D. Afonso, e está no 4º painel.
Quem é o outro "santo" que está no 3º painel?
- Santa Joana Princesa, irmã do rei, que cuidou de D. Jorge, como uma mãe... como já o tinha feito com o próprio irmão, órfão à nascença da sua mãe, D. Isabel de Coimbra.

Talvez até estejam as duas Joanas (irmã e tia), na própria representação de mãe, que D. João II nem conheceu, mas sendo já três invocações, continuarei as contas da forma que um célebre reitor/cantor ensinou "... quatro, cinco, seis, é uma história de reis", não deixando por isso de considerar que as dualidades de santos, que escrevi, fazem sentido ainda como parte desta história.

Para quem considerar esta tese, percebe a riqueza da composição, do mau e bom génio de um enorme Rei, e percebe como é complicado aceitar que isto seja ocultado. Perceberá também porque nem gosto muito de recordar o assunto.

Não falei muito da Rainha D. Leonor, mas será uma peça chave no que se seguirá em Portugal.
O seu drama pessoal será enorme.
Depois de ver o seu irmão assassinado pelo marido, tem o filho morto em circunstâncias suspeitas... um filho que o marido considerava fraco, e manifestara as suas dúvidas sobre a sua capacidade de governação. Promovia agora outro filho, em detrimento do seu irmão D. Manuel.
Por esta razão fiz aquela pequena introdução sobre como a dualidade entre o projecto social e o projecto familiar poderiam entrar em profundo conflito na nobreza. Que rei seria capaz de ferir a sua própria carne? O pelicano de D. João II certamente que não ajudaria às interrogações de D. Leonor.
Houve assim suspeitas que não estivesse completamente alheada da cobrança que D. João II sofreu na carne, que o terá envenenado, irremediavelmente, vindo a morrer poucos anos depois (1495).

D. Leonor era de Viseu, D. João assumia a herança de Coimbra, do seu avô, o quadro apontava para terceiros culpados, os Bragança e as ligações a Castela/Espanha... Porém, a colocação das peças no quadro revela o génio, o bom e o mau... Aquele quadro, mas sobretudo o enquadramento da sua intemperança, poderão ter ditado a morte do artista... ou dos artistas, porque pouco mais se soube de Nuno Gonçalves. O seu nome foi até esquecido, e poderá ter sido confundido com outro, não é relevante. Lê-se na Infopedia que o último documento que o menciona em 1492 é já a título póstumo. Pensamos perceber porquê, mas se o "braço artista" do rei foi cortado, também parece ter sido o da pintura, durante alguns anos.
Passados muitos séculos, a sua arte viu a luz, ocultando-se a condução da composição, do rei. Temos dúvidas que Nuno Gonçalves possa ser banido por algum código da nobreza, ele não seria nobre, e pode até ter sido um simples executor de instruções reais, se as entendeu ou não, era irrelevante.
Compreendemos que num estrito formalismo, em que a sintaxe suplanta a semântica, a arte de D. João II seja ainda banida pelos circuitos mais conservadores, "vencedores" da velha querela.
Apesar de ter logo dito
"O clima fúnebre e sinistro do quadro, mantém-se hoje..."
... não esperava que esse tipo de mentalidade ainda estivesse tão activa, mas fui aprendendo.


14) A Relíquia
Não li ainda a obra de Eça de Queirós, mas já deveria ter lido.
Bom, no 6º painel, a que é dado o nome "relíquia", considerei que os personagens principais se tratavam dois sábios da confiança de D. João II, ou seja Mestre Rodrigo de Lucena, médico (ou "físico-mor"), e mais acima Mestre José Vizinho, matemático, de origem judaica.
O escrito anterior reforça essa hipótese e por isso pouco tenho a acrescentar de novo. Noto agora que a existência de dois livros, um em latim, e outro em hebreu, mesmo em segundo plano, poderá ter aberto outro problema - religioso.

A interpretação de que a relíquia se tratava do osso do crânio de D. Afonso mantém-se válida, disse então:
                         A relíquia, o osso craniano, pode ser uma alusão ao defunto Afonso, indicando a fractura da futura cabeça do reino. Falta a relíquia - o cérebro, para ler tudo o que o painel representa. Falta ainda o cérebro para prosseguir a herança do conhecimento de Avis - é essa a relíquia que o Mestre Rodrigo nos mostra.

Só para esclarecer eventuais mal-entendidos que, como sabemos há muitos, quando referi que faltava  "- o cérebro para ler tudo o que painel representa...", estava obviamente a referir ao de um qualquer observador! Não considerei que o intuito do quadro fosse um enigma por resolver, apenas é visto assim pelas condicionantes que se criaram à sua volta.

Não falei da caixa, e nem tinha reparado que se considera outra, preta, no 1º painel. Admito que possa ser o caixão que foi temporariamente aberto para permitir toda a representação, juntando presentes e ausentes (a parte preta seria a sua tampa).

Quanto ao "velho", que nem tem a barba bem feita, trata-se claramente de uma figura popular, talvez quem tenha descoberto "a relíquia", ou levado o corpo do príncipe morto. Por outro lado, será genuinamente a única figura que não frequentava o paço real, o povo distante de Lisboa. A melhor compreensão deste painel passará ainda por identificar os dois personagens nos bastidores, algo que nem sequer tentei.


15) Navegar
O 4º painel, de que pouco falei até aqui, considerei-o dos "navegantes", genericamente.
Adiantei uma possível identificação de Gama, talvez Paulo e não tanto Vasco, não especifiquei, porque creio que Paulo, mais velho, seria o preferido por D. João II, mas para reduzir as explicações ao mínimo, não quis entrar em detalhes, na altura.
Assim sendo, com este nível de incerteza, não valerá muito a pena comparar imagens, mas o excelente quadro de Vasco da Gama atribuído a Gregório Lopes, poderia ser uma comparação possível, e com essa latitude não vejo impedimento que se tratassem de irmãos.

O caminho das Índias seria atribuído aos Gamas, pedido posterior de D. João II a D. Manuel (quando já se afigurava incontornável a sucessão), provavelmente por recompensa de outras navegações notáveis. Lembramos que havia uma "Angra dos Gamas" na Carta ou Portulano do Atlântico Norte, naquilo que poderia ser uma procura da entrada para a Passagem Noroeste, ou seja, outra ligação para a China. Se os Corte-Real a tentaram de novo, pode ter sido porque Paulo da Gama já era morto. Paulo recusara ser o protagonista da viagem de circum-navegação africana, mas acompanharia o seu irmão. Morreu na viagem de regresso e o seu barco, S. Rafael, foi queimado... Apenas resta dizer que, se assim foi, pelo menos a sua memória permaneceu nos painéis.

Do lado sul, convém lembrar que Pigafeta "descai-se" sobre a viagem de Magalhães, dizendo que Magalhães sabia de memória um mapa de Martin Behaim que teria o caminho do estreito... e como já dissemos, Behaim acompanhava Diogo Cão em 1483, quando foi declarada a chegada ao Congo (o suposto grande feito de avançar mais umas tantas milhas na costa africana, cheia de "praias difíceis"!).
Não se conhecem a Behaim muitas mais viagens, ou pretensões de outras navegações. Se Behaim tinha esse mapa, foi porque provavelmente acompanhou Diogo Cão na outra parte dessa viagem ao "Congo" - e pelo caminho descobriu assim a "Cola do Dragão", ou seja, o Estreito "de Magalhães"... em 1483.

A norte, Paulo da Gama, a sul, Diogo Cão, pouco importa, dois hipotéticos protagonistas das passagens americanas, ficariam colocados com um destaque de realeza, tal como Mestre Rodrigo, aliás.

Sendo este "Nuno Gonçalves" o segundo texto da série de sete que apresentava na altura, não iria logo descriminar estes detalhes, que foram aparecendo nos textos seguintes.

A batuta era dada a Paulo da Gama, mas para usar um caminho diferente, e isso justificaria a sua posterior recusa perante a oferta de D. Manuel. O quadro talvez mostrasse uma cedência parcial de D. João II - o caminho seria o oriental, mas não contornando África. Esse caminho teve D. João II muito tempo (7 anos) para o abrir, declarado o Monte Prasso (depois Cabo da Boa Esperança) em 1488, por um certo Bartolomeu Dias, cujo nome nos sugeriu Dia S Bartolomeu.
Esse caminho de S. Bartolomeu, manifestamente não parece ter sido pretendido por D. João II, mas foi depois retomado por D. Manuel, mas já com outro Gama.

Talvez... Paulo da Gama e Diogo Cão

A colocação neste painel de um D. Diogo morto, ou de um D. Manuel, levantaria ainda mais impossibilidades de qualquer aceitação de tal cenário numa corte plena de hostilidade. Mas D. João II não era hostil a D. Manuel, ainda jovem, por isso preferi considerar que poderia estar no 5º painel, dos "cavaleiros". A colocação de D. Diogo naquela posição talvez se referisse ao diferendo que houve entre ambos e que levou ao seu assassinato... era possível que D. Diogo pretendesse aquele protagonismo de descobertas para a nobreza, para si! Se aquele era um rosto similar ao de D. Manuel, poderia constituir um "aviso de navegação", sobre atitudes similares, ou negociatas de partilha de explorações com os espanhóis.

Um pouco mais acima, temos dois personagens em destaque, mas mais difíceis de identificar.
À esquerda, pela sua idade, creio que pensei em Diogo de Azambuja, homem de confiança de D. João II, a quem confiara o Castelo de S. Jorge da Mina (outro santo escolhido), à direita acho que não pensei em nenhum candidato, mas haverá certamente muitos, e entre aqueles cuja história o nome não lembra. Não creio que seja necessariamente um navegador, talvez alguém mais ligado à parte militar.

Acima de todos, surge um arcebispo, que dá nome ao painel. Pensei em D. Pedro de Noronha, não com razões especiais, para além de se poder ajustar... ou ainda em D. Jorge Costa, um arcebispo exilado em Roma, inimigo que considerava morto, e a sua colocação, próximo de Afonso de Bragança, poderia indicar essa hostilidade. Como já foi notado por outros, a sua jóia assenta no "barrete mal cosido" de D. Diogo/ D. Manuel. Isto favorece a dupla representação, já que Roma certamente que apoiaria D. Manuel e não D. Jorge (que tem apenas uma pequena pérola no seu "barrete", contrastando com a magnífica jóia que "acidentalmente" fica no barrete de D. Manuel).

Para compensar aquela figura hostil morta/viva, que se oporia em Roma aos planos de D. João II, procurei saber os bispos que seriam seus eventuais aliados, enumerando Coimbra, Tanger e Algarve, e também o Prior do Crato...
Como é óbvio, tudo isto foram apenas suposições secundárias, com uma escolha de personagens ligeira, com eventuais falhas, mas que em nada afectava a interpretação global já avançada.

Finalmente, é claro, a corda no chão contribuiu bastante para esta associação às navegações.
D. Leonor tem no seu símbolo de camaroeiro uma corda, provavelmente ligada à rede, mas não creio que se tratasse dessa ligação.
Se a ideia do quadro era uma união através daquela corda, há pelo menos uma ponta solta, e até uma sombra rectangular, demasiado errada, parecendo uma emenda.
As cordas farão parte integrante da chamada "arquitectura manuelina", mas já se nota a sua presença em muitas construções, ainda no Séc. XV.


16) Últimos Cavaleiros
Já fui descrevendo porque considerei a ambivalente a possibilidade de D. Manuel estar representado  também neste painel, acima do pai D. Fernando de Viseu, e do seu tio-avô, o Infante D. Pedro.
Esta seria uma linha em que D. João II poderia mostrar à sua mulher, D. Leonor, que a prezava, por aquela ascendência paterna, e não pela sua outra ligação materna, que através de D. Beatriz tocava o "lado Bragança", como mostrava no painel simetricamente oposto. Este seria o painel para uma ligação Coimbra-Viseu, que invocaria o avô/tio-avô D. Pedro, o tio/pai D. Fernando, e o primo/irmão D. Manuel.
Poderia ter considerado o Infante D. João, não fora quebrar a "regra das mãos", e daria seguimento acima, para o "Infante Santo, D. Fernando", onde se vislumbram sinais do seu martírio africano, quer pelo capacete, que já foi entendido, por outros, mostrar em reflexo a "janela de Arzila", da sua cela.
No entanto, podemos considerar a omissão do Infante D. João pelo seu casamento com Isabel de Barcelos, e para mais, remetemos ao comentário sobre o painel dos "pescadores".

Era mais natural ver a seguir a D. Pedro, de que já falámos, D. Fernando de Viseu, um tio que provavelmente D. João II admirava, pela sua faceta de navegador pelas paragens atlânticas, americanas, mais do que pelo simples facto de ser pai de D. Leonor.
D. Fernando de Viseu estava já morto, e desde essa data tinha sido a mulher, D. Beatriz, a dirigir a Casa de Viseu, e não só... tornou-se na única mulher a ser Mestre da Ordem de Cristo, sucedendo assim ao seu marido, e não deixando de financiar expedições a ocidente.

Ora, estando D. Fernando morto, mais uma vez colocava-se o problema "das mãos", que não estavam em sinal de paz, mas por outro lado também não se viam, porque era o único elemento da composição com luvas. Assumi que isso poderia ser entendido como uma excepção, dadas as luvas, e o seu "não descanso"...
Quanto a uma comparação com um retrato conhecido, dificilmente se pode considerar muito favorável.
No retrato mais antigo usa barba, e não são visíveis grandes detalhes do rosto. A linha do nariz não é incompatível, mas está longe de ser convincente. Ainda que o retrato antigo não seja de grande qualidade, os olhos e a ligação ao rosto não parecem condizer.
Poderá ser outro personagem, mas estragaria a lógica deste painel (não dos restantes).
Bom, mas foi com base nessa eventual lógica que prossegui para o seu filho, D. Manuel (talvez trocando feições com D. Diogo), e acima apareceria, algo deslocado, o Infante Santo.
A sua presença teria lógica como um aviso sobre a vontade de Cruzada, que era herdada por D. Manuel pela Casa de Viseu, do Infante D. Henrique.
O que se teria passado com o sacrifício do Infante D. Fernando arriscava a voltar a acontecer com a ideia de Cruzada pelo Índico, em direcção a Jerusalém, pela "retaguarda".

Foi assim que entendi, e preferi a lógica do conjunto à maior ou menor parecença dos retratos.

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Creio que abordei extensamente os diversos pontos que levantei, e alguns que outros levantaram, já que da outra vez fui necessariamente breve nas explicações, que me demorariam todo este tempo e detalhe.
Agradeço ao Clamente Baeta ter despertado de novo o assunto, que estava enterrado, para mim. É tempo de voltar a fechar a tampa do caixão e dar nova paz a este assunto.

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publicado às 07:56

continuação 
de Peças dos Painéis de S. Vicente (2)

9) Camaroeiro
Reduzimos as possibilidades a dois eventos marcantes no reinado de D. João II:
  • (iii) 1484 - Assassínio de D. Diogo de Viseu, irmão da rainha, por D. João II;
  • (iv) 1491 - Morte de D. Afonso, e fica D. Jorge como candidato ao trono;
Na hipótese (iii) não fazia muito sentido um perdão sobre a morte de D. Diogo, se ele aparecesse como um mero personagem no quadro, sem destaque especial. 
A hipótese (iv) teria a favor a questão da "barba rapada", que se estende a todos os elementos de bastidores, sem excepção, tratam-se de 35 pessoas, havendo mesmo apenas 3 com barba pronunciada no conjunto de 60. Uma questão que se levantava: - era isso comum à época?... Ora, sabemos que ao contrário, a barba era normal, que D. João II usava barba, e aproveitamos para comparar retratos conhecidos de D. João II, com o constante dos painéis:
Os outros dois rostos divulgados não são muito semelhantes entre si, e se há algumas semelhanças são também encontradas na imagem dos painéis. Em ambos os casos D.João II tem barba, que usava normalmente, e só cortou pela ocasião da morte do filho.

Porém, aqui também se impõe a pergunta... se houvesse um talento como o de Nuno Gonçalves na corte, teria sido só aproveitado numa ocasião? A corte recorreria a outros pintores inferiores para os seus retratos? Nuno Gonçalves ficaria apenas com 4 ou 5 imagens de santos? 
Há até quem já o faça morto em 1471, esquecendo a datação anterior 1470-80 quando a sua morte era apontada para 1492... Ora, Gonçalves havia muitos e Nunos também. 
Seja quem for, mais nenhum pintor aprendera nada com ele, para melhores retratos reais?

Adiante. Passamos a D. Leonor, cujo símbolo adoptado, após a morte do filho foi o camaroeiro, simbolizando a rede em que Afonso lhe terá sido trazido, por pescadores. 
Há um painel, denominado "dos pescadores" e que tem uma rede... 

Só este pormenor seria razão mais que suficiente para a suspeita imediata, e por isso se houve alguma primeira teoria, creio que terá sido essa. Estou longe de pensar que esta tese de 1491-92 tivesse sido colocada aqui pela primeira vez... muito pelo contrário, terá sido provavelmente a primeira tese, se calhar dos Bordalo Pinheiro, que viram o quadro (1882). Um dos irmãos, Rafael, até se acabou por estabelecer (1884) no local de eleição de D. Leonor - as Caldas, e será uma farpa de Ramalho Ortigão (nascido nas Caldas da Rainha), que retomará o assunto dos painéis, entretanto "esquecidos", de novo. Uma coincidência, certamente...

Na altura de Bordalo Pinheiro não havia exames por Raios X, e parece agora que a rede não será visível a essa inspecção... talvez haja outras redes a serem inspeccionadas. Ora, conforme é bem observado em paineis.org, no exame radiográfico parece que se vêem pelo menos as bóias de cortiça, e portanto, entramos na "mitologia dos exames que dizem coisas". Os exames não "dizem nada", as pessoas é que falam e escrevem. Basta olhar para uma radiografia (paineis.org) e ver que a intensidade pode esbater contrastes, mal permitindo ver os contornos das pessoas nos bastidores. Assim, é natural que não apareça a rede!

Agora, se a radiografia mostrasse um ramo nas mãos de Pedro, aí sim, aí tínhamos espiga!
Tra la spica e la man qual muro e messo...  

Uma coisa é um olhar primevo, e outra coisa é o olhar educado... porque o olhar educado tende a seguir um caminho trilhado, e a procurar onde lhe é sugerido. Ainda que se afaste, já avançou muito no trilho. Só assim consigo explicar que a maioria dos estudiosos nem sequer refira a hipótese de os painéis serem posteriores a 1480. Refiro-me a estudiosos e não a conhecedores - os estudiosos não sabem e procuram saber, ao passo que os conhecedores, porque lhes foi dito, já sabem, e basicamente estudam os estudiosos. Os estudiosos não sabem que os outros sabem... e se quiserem mesmo saber, com alguma cerimónia, podem candidatar-se a "conhecedores".
Este apontamento é dirigido a curiosos e estudiosos, e críticas sérias são bem vindas. 

Adiante. Temos portanto uma rede, um camaroeiro, uma Rainha, Leonor... a data é 1491-92, confirmado pelas deduções anteriores. A rainha parecer-se-à com Leonor?
É dito que Leonor seria alourada, e os cabelos da rainha, ainda que apanhados, sugerem isso.
Quanto ao rosto, vejamos a comparação com um quadro conhecido:
As feições parecem-me razoavelmente semelhantes (à época dos painéis seria bem mais velha), e sobre a curva do "nariz torcido", onde pode levantar-se dúvida, nota-se também uma inclinação vincada no outro quadro. O pescoço nos painéis parece mais comprido. Mas há uma desproporção e uma técnica mais arcaica no quadro mais antigo. Só as mãos estão "melhor" que em Nuno Gonçalves (que não parece dar muita atenção ao desenho das mãos em todo o painel). Se os painéis fossem anteriores ao quadro da rainha (c. 1475), parece pois que Nuno Gonçalves e discípulos andariam ocupados a pintar santos...

Vejamos ainda o ornamento das vestes de Leonor, no quadro mais antigo. Esse será um "padrão da moda", no final do Séc. XV e também o vemos nos painéis. Depois há a questão da manga... é vermelha, tal como nos painéis, e cobre razoavelmente a mão.

Ainda sobre a moda no vestuário, fui reler um pouco, lembrando profundamente os confrades do Vinho do Porto. E falando em barretes, e chapelões, recordei a figura algo caricata de Afonso V, não pelo chapelão, que o tio é que ficou com ele, mas pelos seus sapatos bicudos. Era esse o outro ponto que tinha contra a tal possibilidade do quadro ser de 1445-50, pelo menos. Pelo menos, porque essa moda durou mais de um século, circa 1470 ainda encontramos quadros com esses sapatos, manifestamente já ausentes dos painéis.
Ambas as imagens parecem ter a proveniência de Georg von Ehingen,
que entra ao serviço de Afonso V c. 1460 (a imagem é suposta ser c. 1470 - ver)

É claro que poderíamos estar com uma antecipação de moda (parece que tudo pode mudar para justificar um quadro...), mas o jovem Afonso V cometeu a imprudência de usar outros sapatos, e não as botas, que só entram na moda no final do século XV, e que são usadas nos painéis.


10) A Rede
E quem são os personagens no Camaroeiro de Leonor, ou antes, "apanhadas na rede"?
Aqui começa a ser mais complicado... porque há várias "redes", mas só uma visível no quadro (com ajuda de exames alguns concluiriam que nem essa deveria ser vista...).
Bom, mas a rede visível engloba três personagens, a primeira personagem em destaque dificilmente a vejo como um homem, tudo indica que se tratará de uma "velha senhora", tem feições que sugerem isso. Ocupa um grande destaque em toda a composição. Poderia ser um "modelo indistinto"? Precisaria esse "pescador" de alguém, a seu lado, que parece "conspirar ao ouvido"? E quanto ao homem nos bastidores, que "passou por ser Salazar", quereria ele ver-se no meio daquela rede? Porquê?

A composição tem os painéis alinhados com a perspectiva dos azulejos, e por isso não há nenhuma troca de painéis (como também já foi sugerido). Em paineis.org faz-se ainda notar que a iluminação neste painel é diferente... e nessa boa observação não tinha reparado. Isso ajuda a teoria da "rede", os restantes estão iluminados pelo sol nascente, e os conspiradores pela luz do poente. Não é a mesma luz que os ilumina, e por isso os seus caminhos são outros, desviantes

Compreenda-se que estamos a entrar nos detalhes, e nada tem a ver com a datação... apenas se procura não deixar vazio o restante enquadramento, tentando dar-lhe um maior sentido global.
Poderíamos ser mais "politicamente correctos", e deixar os restantes personagens fora de  identificação. Estão identificados os principais personagens, a data, o motivo (promoção de D. Jorge a sucessor), e poderíamos deixar os pescadores no abstracto, falar numa penitência, nas preces dos frades, etc... Porém, o nosso único cometimento é com a consistência global, verdadeira, e não com uma educação condicionada.  


11) Os fundadores de Avis. 
Vejamos os 1º e 2º painéis, ditos dos "frades" e "pescadores".
No 2º painel, apesar da direcção da luz oposta, há uma sombra mal definida, no outro sentido, junto ao penitente prostrado no chão. 
Apesar de ter sombra (no painel até os santos têm), esse penitente em destaque estará morto pela "regra das mãos"... Ora, estando morto, isso dá uma grande indeterminação para o personagem, é preciso encontrar algum motivo que o coloque em tão grande destaque e em penitência, no painel da "rede".
Tratando-se da época de D. João II, é sabido que o seu maior problema conspirativo é com a Casa de Bragança, a quem fez executar o Duque Fernando, e também com Viseu, assassinando o Duque Diogo.

A origem da Casa de Bragança remonta à união da filha de Nun'Álvares com o filho primogénito de D. João I (porém em casamento anterior ao pai ser rei), ou seja, Afonso feito depois 1º Duque de Bragança. Portanto, poderia ser Afonso, mas num lugar de tão grande destaque, parece ser o próprio D. Nuno Álvares Pereira. Nun'Álvares que se dedicou no final da sua vida a uma reclusão monástica carmelita.

Comparemos os retratos, notando ao mesmo tempo que no 1º painel, em 1ª posição surge uma figura, também com as mãos juntas, cujas feições se podem assemelhar às de D. João I.

Quanto a Nun'Álvares, há uma coincidência fisionómica razoável, a começar pela sua calvíce e longas barbas. Em ambos os quadros o nariz é pronunciado, mais fino no retrato do que nos painéis (e por isso colocamos uma outra pequena imagem, que mostra que o nariz "não seria tão fino quanto isso").
Quanto a D. João I, apesar da imagem antiga não permitir grandes detalhes, há uma considerável semelhança, talvez à excepção do queixo, feito muito delicado na imagem histórica.

Se seguirmos o 1º painel, dos frades, vemos ainda um personagem de longas barbas, tal como D. Afonso V iria usar: 
Isso levou-nos a suspeitar que os "frades" representassem o seguimento da linha de D. João I, tendo pelo meio D. Duarte, e aqui D. Afonso V. Não temos nenhum comparativo com a imagem de D. Duarte (que já foi até visto com a imagem do Infante D. Henrique, numa certa ousadia interpretativa), temos apenas um pseudo-retrato formulado uns séculos depois, e a visita ao túmulo da Batalha não é muito mais eficaz - mas não se vislumbra grande barba:
A eventual imagem de D. Duarte nos painéis (que parece usar uma ligeira barba branca), parece adequar-se à escultura do túmulo (falta imagem melhor), e não tanto à da suposição posterior (creio que do Séc. XVI).
Esta suposição baseia-se mais na procura de coerência na composição, não afectaria muito o restante ser outro personagem.

Assim, este primeiro painel, teria como "frades" falecidos - a sucessão de Avis, anterior a D. João II. Ou seja, começando com D. João I, subindo para D. Duarte, próximo do seu filho D. Afonso V, pai de D. João II. Acima deles estão outros 3 personagens que já não pertencem à realeza... será complicado determinar, talvez os mestres das ordens, não sei, não me parece relevante para a compreensão do conjunto.


12) A pesca 
Passamos de novo ao 2º painel, dos pescadores.
Acima do penitente, que julgamos ser Nun'Álvares, está um grande espaço, parecendo faltar um personagem. A sua sucessão dá-se com D. Afonso de Bragança, que pensámos ter ido parar ao painel seguinte. Porquê?
Porque se não estivesse faltaria alguém do Ducado de Bragança. O pequeno D. Jorge seria já duque de Coimbra, a duquesa de Viseu está presente, e o primeiro duque, D. Henrique, também. Seria formalmente incorrecto deixar de fora o ducado de Bragança, nesse conjunto real. A solução encontrada poderá ter contribuído para a morte dos artistas (há dois... o pintor e o rei que certamente supervisiona).
Aceitando ser o velho Afonso de Bragança que sai do 2º painel para o 3º, vejamos onde ele é colocado... ao nível dos bastidores, acima do Infante D. Henrique. Tem algum destaque, mas é relegado para uma posição que afectaria a sua posição ao nível da nobreza. Especialmente porque no 4º painel, o rei vai chamar ao primeiro plano, semelhante ao real, os seus navegadores. Isto seria uma afronta velada, mas minimamente correcta na formalidade da composição. Por cima de D. Beatriz surgiria provavelmente um outro Bragança, que esconde as mãos... poderá não ter paz, pela execução, poderia ser Fernando, o neto de Afonso, executado por D. João II.

Estaria assim um par, D. Beatriz de Viseu e por cima D. Fernando II de Bragança, e outro par, D. Henrique de Viseu e por cima D. Afonso de Bragança... e teria significado.
Henrique e Afonso foram o primeiro par aliado de Viseu e Bragança derrotando D. Pedro (de Coimbra). Implicitamente, D. João II colocaria aqui Beatriz e Fernando como segundo par aliado de Viseu e Bragança, contra si, que se via como herdeiro do avô D. Pedro de Coimbra.
A confirmar-se esta "solução artística" no painel, iria bater forte, em particular na herança Bragança, sempre questionada pela sua ascendência nobre "meio bastarda".

Deveria ainda haver outra intenção - a sua inclusão ali procurava dar uma outra mensagem, porque D. Jorge também era considerado bastardo (... o rei não poderia admitir outra coisa, e não adianto mais).
Se o velho Bragança se considerava injustiçado, pelo casamento posterior do pai com D. Filipa de Lencastre, que o afastou do trono e afectava a sua nobreza, a questão da sucessão por D. Jorge envolvia conceitos semelhantes. Acresce que o próprio D. João I não seguia da linha directa, e era um bastardo legitimado pela Revolução de 1383-85, onde foi apoiado por Nun'Álvares (ele próprio não primogénito, batendo-se contra o irmão em Aljubarrota).
Estes personagens, pela sua importância, fariam ainda sentido no espaço seguinte a Nun'Álvares, mas seriam colocados no painel principal, para efeitos formais e procurando evidenciar a base moral de legitimação de D. Jorge.

A personagem seguinte acima de Nun'Álvares, tem essa ambiguidade de poder ser vista como um pescador, mas parece-me uma velha senhora, e pela "regra das mãos" estaria morta. Era muito mais fácil encontrar um candidato entre "homens mortos", facilmente colocaria ali D. Fernando II de Bragança. Mas, estando convencido que se tratava de uma mulher, não poderia ser a sua mulher Isabel de Viseu, que era viva, sendo natural aliada da mãe e da irmã contra a pretensão do executor do seu marido, obviamente apoiando o irmão D. Manuel e sendo contra D. Jorge.

Há assim uma ambiguidade, também de género, e permitiria vários candidatos, mas considerei a hipótese de ser uma evocação de D. Isabel de Barcelos, pelas várias ligações. Por um lado, era filha de Afonso e tia de Fernando II de Bragança, por outro lado, era mãe de D. Beatriz, e principalmente porque se retirou para Castela, onde viveu com a Rainha, sua filha, e com a neta, a futura rainha de Espanha, Isabel, a Católica. Quatro ligações a opositores de D. João II e à Casa de Coimbra.

A múltipla ligação atingia ainda vários problemas que induziram conflitos entre Portugal e Espanha. Do casamento da filha de Isabel de Barcelos com D. Juan II de Espanha, surge um problema de sucessão entre a neta D. Isabel e a sobrinha de Afonso V, D. Joana.
D. Joana, neta de D. Duarte,
a "Excelente Senhora" (ou a "Beltraneja").

A pedido do pai, Henrique IV de Castela, D. Afonso V tomará o partido da sua sobrinha Joana, e irá casar-se com ela - seria uma união ibérica com centro em Lisboa, o que não agradava certamente aos castelhanos, pelo mesmo motivo que o oposto não tinha agradado aos portugueses um século antes.

Os castelhanos duvidaram da paternidade chamando-lhe "Beltraneja", e viraram-se para Isabel, a neta de Isabel de Barcelos, que tinha casado com Fernando de Aragão. A Batalha de Toro é decisiva, e a derrota de Afonso V só é compensada pelo auxílio das forças do filho, João II.
Se D. Joana não está presente no quadro, não deixa de estar presente nos motivos do quadro. O seu sobrinho, D. João II, não deixará de considerar a também "madrasta" como "Excelente Senhora", sendo mais uma vítima dos processos cortesãos, de "selecção natural dos espécimes".

Sem Joana no caminho, forma-se a Espanha dos Reis Católicos, que entra em acordos de paz com Portugal de D. João II, através da mediação de D. Beatriz de Viseu, no Tratado de Alcáçovas. A mesma Beatriz, que era mãe da rainha D. Leonor, mas também a tia comum aos reis de Portugal e Espanha, promovendo um novo casamento, agora entre a sobrinha-neta e o neto... e com o neto morto, casaria de novo com o filho, D. Manuel.

Regressamos a D. Isabel de Barcelos, mãe de D. Beatriz e tia de D. Fernando II de Bragança.
Para D. João II, poderia ser natural ver naquela filha de Afonso de Bragança, uma representação de um problema de gerações: - o pai dela estava na causa da morte do seu avô, a neta na derrota do pai, o sobrinho na conspiração contra si, a tudo isto junta a morte recente do filho Afonso... Ou seja, quatro gerações apareciam como vítimas da hostilidade da Casa de Bragança, e da aliança com Viseu.

Falta falar do homem que está ao seu lado (de Isabel de Barcelos), parecendo-lhe segredar algo, e assim virado a ocidente... para efeitos do quadro não é muito importante, acho que não perdi tempo com isso. Está dentro da "rede"... a sua orientação pode já ter a ver com os planos de partilha das descobertas, que seriam oferecidos aos espanhóis através da personagem Colombo. Pode ser D. Álvaro de Bragança, ainda vivo, refugiado em Castela desde a morte do irmão Fernando. É próximo de Isabel, a Católica, que lhe dará posses em Espanha, regressará a Portugal logo após a morte de D. João II. Poderá segredar os planos colombófilos ocidentais à neta de Isabel de Barcelos, também Isabel, assim numa identificação intemporal.

O homem de bastidores, ainda dentro da "rede", poderá ser visto como um executor do "acidente" que vitimou o príncipe Afonso. Se alguém quis ver aí Salazar, dificilmente terá sido o próprio, a menos que ele estivesse convencido da versão "frades, pescadores... e Companhia". Nesse caso estaria talvez a ser vítima de uma piada cortesã, de piadas e boatos que se disseminam como doença, numa sociedade fragilizada pelos códigos e segredos da grande confraria lusitana. Outra possibilidade é que o sistema estivesse tão seguro de controlar educacionalmente a versão oficial, que até a incorporasse como teste...
De qualquer forma, esse "boato" acabou por divulgar ainda mais a existência dos painéis.
E, se nessa época se divulgou a imagem do Infante com uma sustentação sólida, não se usou mais nenhuma, as restantes ficaram como incógnitas. Ao contrário, hoje vemos divulgados rostos associando as caras dos painéis a figuras históricas, com base nas mais frágeis teorias. A próxima geração, como novo teste, terá que perceber adicionalmente que os rostos que lhes eram familiares, eram afinal meras suposições.

[continua]

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publicado às 05:09

continuação 
de Peças dos Painéis de S. Vicente (2)

9) Camaroeiro
Reduzimos as possibilidades a dois eventos marcantes no reinado de D. João II:
  • (iii) 1484 - Assassínio de D. Diogo de Viseu, irmão da rainha, por D. João II;
  • (iv) 1491 - Morte de D. Afonso, e fica D. Jorge como candidato ao trono;
Na hipótese (iii) não fazia muito sentido um perdão sobre a morte de D. Diogo, se ele aparecesse como um mero personagem no quadro, sem destaque especial. 
A hipótese (iv) teria a favor a questão da "barba rapada", que se estende a todos os elementos de bastidores, sem excepção, tratam-se de 35 pessoas, havendo mesmo apenas 3 com barba pronunciada no conjunto de 60. Uma questão que se levantava: - era isso comum à época?... Ora, sabemos que ao contrário, a barba era normal, que D. João II usava barba, e aproveitamos para comparar retratos conhecidos de D. João II, com o constante dos painéis:
Os outros dois rostos divulgados não são muito semelhantes entre si, e se há algumas semelhanças são também encontradas na imagem dos painéis. Em ambos os casos D.João II tem barba, que usava normalmente, e só cortou pela ocasião da morte do filho.

Porém, aqui também se impõe a pergunta... se houvesse um talento como o de Nuno Gonçalves na corte, teria sido só aproveitado numa ocasião? A corte recorreria a outros pintores inferiores para os seus retratos? Nuno Gonçalves ficaria apenas com 4 ou 5 imagens de santos? 
Há até quem já o faça morto em 1471, esquecendo a datação anterior 1470-80 quando a sua morte era apontada para 1492... Ora, Gonçalves havia muitos e Nunos também. 
Seja quem for, mais nenhum pintor aprendera nada com ele, para melhores retratos reais?

Adiante. Passamos a D. Leonor, cujo símbolo adoptado, após a morte do filho foi o camaroeiro, simbolizando a rede em que Afonso lhe terá sido trazido, por pescadores. 
Há um painel, denominado "dos pescadores" e que tem uma rede... 

Só este pormenor seria razão mais que suficiente para a suspeita imediata, e por isso se houve alguma primeira teoria, creio que terá sido essa. Estou longe de pensar que esta tese de 1491-92 tivesse sido colocada aqui pela primeira vez... muito pelo contrário, terá sido provavelmente a primeira tese, se calhar dos Bordalo Pinheiro, que viram o quadro (1882). Um dos irmãos, Rafael, até se acabou por estabelecer (1884) no local de eleição de D. Leonor - as Caldas, e será uma farpa de Ramalho Ortigão (nascido nas Caldas da Rainha), que retomará o assunto dos painéis, entretanto "esquecidos", de novo. Uma coincidência, certamente...

Na altura de Bordalo Pinheiro não havia exames por Raios X, e parece agora que a rede não será visível a essa inspecção... talvez haja outras redes a serem inspeccionadas. Ora, conforme é bem observado em paineis.org, no exame radiográfico parece que se vêem pelo menos as bóias de cortiça, e portanto, entramos na "mitologia dos exames que dizem coisas". Os exames não "dizem nada", as pessoas é que falam e escrevem. Basta olhar para uma radiografia (paineis.org) e ver que a intensidade pode esbater contrastes, mal permitindo ver os contornos das pessoas nos bastidores. Assim, é natural que não apareça a rede!

Agora, se a radiografia mostrasse um ramo nas mãos de Pedro, aí sim, aí tínhamos espiga!
Tra la spica e la man qual muro e messo...  

Uma coisa é um olhar primevo, e outra coisa é o olhar educado... porque o olhar educado tende a seguir um caminho trilhado, e a procurar onde lhe é sugerido. Ainda que se afaste, já avançou muito no trilho. Só assim consigo explicar que a maioria dos estudiosos nem sequer refira a hipótese de os painéis serem posteriores a 1480. Refiro-me a estudiosos e não a conhecedores - os estudiosos não sabem e procuram saber, ao passo que os conhecedores, porque lhes foi dito, já sabem, e basicamente estudam os estudiosos. Os estudiosos não sabem que os outros sabem... e se quiserem mesmo saber, com alguma cerimónia, podem candidatar-se a "conhecedores".
Este apontamento é dirigido a curiosos e estudiosos, e críticas sérias são bem vindas. 

Adiante. Temos portanto uma rede, um camaroeiro, uma Rainha, Leonor... a data é 1491-92, confirmado pelas deduções anteriores. A rainha parecer-se-à com Leonor?
É dito que Leonor seria alourada, e os cabelos da rainha, ainda que apanhados, sugerem isso.
Quanto ao rosto, vejamos a comparação com um quadro conhecido:
As feições parecem-me razoavelmente semelhantes (à época dos painéis seria bem mais velha), e sobre a curva do "nariz torcido", onde pode levantar-se dúvida, nota-se também uma inclinação vincada no outro quadro. O pescoço nos painéis parece mais comprido. Mas há uma desproporção e uma técnica mais arcaica no quadro mais antigo. Só as mãos estão "melhor" que em Nuno Gonçalves (que não parece dar muita atenção ao desenho das mãos em todo o painel). Se os painéis fossem anteriores ao quadro da rainha (c. 1475), parece pois que Nuno Gonçalves e discípulos andariam ocupados a pintar santos...

Vejamos ainda o ornamento das vestes de Leonor, no quadro mais antigo. Esse será um "padrão da moda", no final do Séc. XV e também o vemos nos painéis. Depois há a questão da manga... é vermelha, tal como nos painéis, e cobre razoavelmente a mão.

Ainda sobre a moda no vestuário, fui reler um pouco, lembrando profundamente os confrades do Vinho do Porto. E falando em barretes, e chapelões, recordei a figura algo caricata de Afonso V, não pelo chapelão, que o tio é que ficou com ele, mas pelos seus sapatos bicudos. Era esse o outro ponto que tinha contra a tal possibilidade do quadro ser de 1445-50, pelo menos. Pelo menos, porque essa moda durou mais de um século, circa 1470 ainda encontramos quadros com esses sapatos, manifestamente já ausentes dos painéis.
Ambas as imagens parecem ter a proveniência de Georg von Ehingen,
que entra ao serviço de Afonso V c. 1460 (a imagem é suposta ser c. 1470 - ver)

É claro que poderíamos estar com uma antecipação de moda (parece que tudo pode mudar para justificar um quadro...), mas o jovem Afonso V cometeu a imprudência de usar outros sapatos, e não as botas, que só entram na moda no final do século XV, e que são usadas nos painéis.


10) A Rede
E quem são os personagens no Camaroeiro de Leonor, ou antes, "apanhadas na rede"?
Aqui começa a ser mais complicado... porque há várias "redes", mas só uma visível no quadro (com ajuda de exames alguns concluiriam que nem essa deveria ser vista...).
Bom, mas a rede visível engloba três personagens, a primeira personagem em destaque dificilmente a vejo como um homem, tudo indica que se tratará de uma "velha senhora", tem feições que sugerem isso. Ocupa um grande destaque em toda a composição. Poderia ser um "modelo indistinto"? Precisaria esse "pescador" de alguém, a seu lado, que parece "conspirar ao ouvido"? E quanto ao homem nos bastidores, que "passou por ser Salazar", quereria ele ver-se no meio daquela rede? Porquê?

A composição tem os painéis alinhados com a perspectiva dos azulejos, e por isso não há nenhuma troca de painéis (como também já foi sugerido). Em paineis.org faz-se ainda notar que a iluminação neste painel é diferente... e nessa boa observação não tinha reparado. Isso ajuda a teoria da "rede", os restantes estão iluminados pelo sol nascente, e os conspiradores pela luz do poente. Não é a mesma luz que os ilumina, e por isso os seus caminhos são outros, desviantes

Compreenda-se que estamos a entrar nos detalhes, e nada tem a ver com a datação... apenas se procura não deixar vazio o restante enquadramento, tentando dar-lhe um maior sentido global.
Poderíamos ser mais "politicamente correctos", e deixar os restantes personagens fora de  identificação. Estão identificados os principais personagens, a data, o motivo (promoção de D. Jorge a sucessor), e poderíamos deixar os pescadores no abstracto, falar numa penitência, nas preces dos frades, etc... Porém, o nosso único cometimento é com a consistência global, verdadeira, e não com uma educação condicionada.  


11) Os fundadores de Avis. 
Vejamos os 1º e 2º painéis, ditos dos "frades" e "pescadores".
No 2º painel, apesar da direcção da luz oposta, há uma sombra mal definida, no outro sentido, junto ao penitente prostrado no chão. 
Apesar de ter sombra (no painel até os santos têm), esse penitente em destaque estará morto pela "regra das mãos"... Ora, estando morto, isso dá uma grande indeterminação para o personagem, é preciso encontrar algum motivo que o coloque em tão grande destaque e em penitência, no painel da "rede".
Tratando-se da época de D. João II, é sabido que o seu maior problema conspirativo é com a Casa de Bragança, a quem fez executar o Duque Fernando, e também com Viseu, assassinando o Duque Diogo.

A origem da Casa de Bragança remonta à união da filha de Nun'Álvares com o filho primogénito de D. João I (porém em casamento anterior ao pai ser rei), ou seja, Afonso feito depois 1º Duque de Bragança. Portanto, poderia ser Afonso, mas num lugar de tão grande destaque, parece ser o próprio D. Nuno Álvares Pereira. Nun'Álvares que se dedicou no final da sua vida a uma reclusão monástica carmelita.

Comparemos os retratos, notando ao mesmo tempo que no 1º painel, em 1ª posição surge uma figura, também com as mãos juntas, cujas feições se podem assemelhar às de D. João I.

Quanto a Nun'Álvares, há uma coincidência fisionómica razoável, a começar pela sua calvíce e longas barbas. Em ambos os quadros o nariz é pronunciado, mais fino no retrato do que nos painéis (e por isso colocamos uma outra pequena imagem, que mostra que o nariz "não seria tão fino quanto isso").
Quanto a D. João I, apesar da imagem antiga não permitir grandes detalhes, há uma considerável semelhança, talvez à excepção do queixo, feito muito delicado na imagem histórica.

Se seguirmos o 1º painel, dos frades, vemos ainda um personagem de longas barbas, tal como D. Afonso V iria usar: 
Isso levou-nos a suspeitar que os "frades" representassem o seguimento da linha de D. João I, tendo pelo meio D. Duarte, e aqui D. Afonso V. Não temos nenhum comparativo com a imagem de D. Duarte (que já foi até visto com a imagem do Infante D. Henrique, numa certa ousadia interpretativa), temos apenas um pseudo-retrato formulado uns séculos depois, e a visita ao túmulo da Batalha não é muito mais eficaz - mas não se vislumbra grande barba:
A eventual imagem de D. Duarte nos painéis (que parece usar uma ligeira barba branca), parece adequar-se à escultura do túmulo (falta imagem melhor), e não tanto à da suposição posterior (creio que do Séc. XVI).
Esta suposição baseia-se mais na procura de coerência na composição, não afectaria muito o restante ser outro personagem.

Assim, este primeiro painel, teria como "frades" falecidos - a sucessão de Avis, anterior a D. João II. Ou seja, começando com D. João I, subindo para D. Duarte, próximo do seu filho D. Afonso V, pai de D. João II. Acima deles estão outros 3 personagens que já não pertencem à realeza... será complicado determinar, talvez os mestres das ordens, não sei, não me parece relevante para a compreensão do conjunto.


12) A pesca 
Passamos de novo ao 2º painel, dos pescadores.
Acima do penitente, que julgamos ser Nun'Álvares, está um grande espaço, parecendo faltar um personagem. A sua sucessão dá-se com D. Afonso de Bragança, que pensámos ter ido parar ao painel seguinte. Porquê?
Porque se não estivesse faltaria alguém do Ducado de Bragança. O pequeno D. Jorge seria já duque de Coimbra, a duquesa de Viseu está presente, e o primeiro duque, D. Henrique, também. Seria formalmente incorrecto deixar de fora o ducado de Bragança, nesse conjunto real. A solução encontrada poderá ter contribuído para a morte dos artistas (há dois... o pintor e o rei que certamente supervisiona).
Aceitando ser o velho Afonso de Bragança que sai do 2º painel para o 3º, vejamos onde ele é colocado... ao nível dos bastidores, acima do Infante D. Henrique. Tem algum destaque, mas é relegado para uma posição que afectaria a sua posição ao nível da nobreza. Especialmente porque no 4º painel, o rei vai chamar ao primeiro plano, semelhante ao real, os seus navegadores. Isto seria uma afronta velada, mas minimamente correcta na formalidade da composição. Por cima de D. Beatriz surgiria provavelmente um outro Bragança, que esconde as mãos... poderá não ter paz, pela execução, poderia ser Fernando, o neto de Afonso, executado por D. João II.

Estaria assim um par, D. Beatriz de Viseu e por cima D. Fernando II de Bragança, e outro par, D. Henrique de Viseu e por cima D. Afonso de Bragança... e teria significado.
Henrique e Afonso foram o primeiro par aliado de Viseu e Bragança derrotando D. Pedro (de Coimbra). Implicitamente, D. João II colocaria aqui Beatriz e Fernando como segundo par aliado de Viseu e Bragança, contra si, que se via como herdeiro do avô D. Pedro de Coimbra.
A confirmar-se esta "solução artística" no painel, iria bater forte, em particular na herança Bragança, sempre questionada pela sua ascendência nobre "meio bastarda".

Deveria ainda haver outra intenção - a sua inclusão ali procurava dar uma outra mensagem, porque D. Jorge também era considerado bastardo (... o rei não poderia admitir outra coisa, e não adianto mais).
Se o velho Bragança se considerava injustiçado, pelo casamento posterior do pai com D. Filipa de Lencastre, que o afastou do trono e afectava a sua nobreza, a questão da sucessão por D. Jorge envolvia conceitos semelhantes. Acresce que o próprio D. João I não seguia da linha directa, e era um bastardo legitimado pela Revolução de 1383-85, onde foi apoiado por Nun'Álvares (ele próprio não primogénito, batendo-se contra o irmão em Aljubarrota).
Estes personagens, pela sua importância, fariam ainda sentido no espaço seguinte a Nun'Álvares, mas seriam colocados no painel principal, para efeitos formais e procurando evidenciar a base moral de legitimação de D. Jorge.

A personagem seguinte acima de Nun'Álvares, tem essa ambiguidade de poder ser vista como um pescador, mas parece-me uma velha senhora, e pela "regra das mãos" estaria morta. Era muito mais fácil encontrar um candidato entre "homens mortos", facilmente colocaria ali D. Fernando II de Bragança. Mas, estando convencido que se tratava de uma mulher, não poderia ser a sua mulher Isabel de Viseu, que era viva, sendo natural aliada da mãe e da irmã contra a pretensão do executor do seu marido, obviamente apoiando o irmão D. Manuel e sendo contra D. Jorge.

Há assim uma ambiguidade, também de género, e permitiria vários candidatos, mas considerei a hipótese de ser uma evocação de D. Isabel de Barcelos, pelas várias ligações. Por um lado, era filha de Afonso e tia de Fernando II de Bragança, por outro lado, era mãe de D. Beatriz, e principalmente porque se retirou para Castela, onde viveu com a Rainha, sua filha, e com a neta, a futura rainha de Espanha, Isabel, a Católica. Quatro ligações a opositores de D. João II e à Casa de Coimbra.

A múltipla ligação atingia ainda vários problemas que induziram conflitos entre Portugal e Espanha. Do casamento da filha de Isabel de Barcelos com D. Juan II de Espanha, surge um problema de sucessão entre a neta D. Isabel e a sobrinha de Afonso V, D. Joana.
D. Joana, neta de D. Duarte,
a "Excelente Senhora" (ou a "Beltraneja").

A pedido do pai, Henrique IV de Castela, D. Afonso V tomará o partido da sua sobrinha Joana, e irá casar-se com ela - seria uma união ibérica com centro em Lisboa, o que não agradava certamente aos castelhanos, pelo mesmo motivo que o oposto não tinha agradado aos portugueses um século antes.

Os castelhanos duvidaram da paternidade chamando-lhe "Beltraneja", e viraram-se para Isabel, a neta de Isabel de Barcelos, que tinha casado com Fernando de Aragão. A Batalha de Toro é decisiva, e a derrota de Afonso V só é compensada pelo auxílio das forças do filho, João II.
Se D. Joana não está presente no quadro, não deixa de estar presente nos motivos do quadro. O seu sobrinho, D. João II, não deixará de considerar a também "madrasta" como "Excelente Senhora", sendo mais uma vítima dos processos cortesãos, de "selecção natural dos espécimes".

Sem Joana no caminho, forma-se a Espanha dos Reis Católicos, que entra em acordos de paz com Portugal de D. João II, através da mediação de D. Beatriz de Viseu, no Tratado de Alcáçovas. A mesma Beatriz, que era mãe da rainha D. Leonor, mas também a tia comum aos reis de Portugal e Espanha, promovendo um novo casamento, agora entre a sobrinha-neta e o neto... e com o neto morto, casaria de novo com o filho, D. Manuel.

Regressamos a D. Isabel de Barcelos, mãe de D. Beatriz e tia de D. Fernando II de Bragança.
Para D. João II, poderia ser natural ver naquela filha de Afonso de Bragança, uma representação de um problema de gerações: - o pai dela estava na causa da morte do seu avô, a neta na derrota do pai, o sobrinho na conspiração contra si, a tudo isto junta a morte recente do filho Afonso... Ou seja, quatro gerações apareciam como vítimas da hostilidade da Casa de Bragança, e da aliança com Viseu.

Falta falar do homem que está ao seu lado (de Isabel de Barcelos), parecendo-lhe segredar algo, e assim virado a ocidente... para efeitos do quadro não é muito importante, acho que não perdi tempo com isso. Está dentro da "rede"... a sua orientação pode já ter a ver com os planos de partilha das descobertas, que seriam oferecidos aos espanhóis através da personagem Colombo. Pode ser D. Álvaro de Bragança, ainda vivo, refugiado em Castela desde a morte do irmão Fernando. É próximo de Isabel, a Católica, que lhe dará posses em Espanha, regressará a Portugal logo após a morte de D. João II. Poderá segredar os planos colombófilos ocidentais à neta de Isabel de Barcelos, também Isabel, assim numa identificação intemporal.

O homem de bastidores, ainda dentro da "rede", poderá ser visto como um executor do "acidente" que vitimou o príncipe Afonso. Se alguém quis ver aí Salazar, dificilmente terá sido o próprio, a menos que ele estivesse convencido da versão "frades, pescadores... e Companhia". Nesse caso estaria talvez a ser vítima de uma piada cortesã, de piadas e boatos que se disseminam como doença, numa sociedade fragilizada pelos códigos e segredos da grande confraria lusitana. Outra possibilidade é que o sistema estivesse tão seguro de controlar educacionalmente a versão oficial, que até a incorporasse como teste...
De qualquer forma, esse "boato" acabou por divulgar ainda mais a existência dos painéis.
E, se nessa época se divulgou a imagem do Infante com uma sustentação sólida, não se usou mais nenhuma, as restantes ficaram como incógnitas. Ao contrário, hoje vemos divulgados rostos associando as caras dos painéis a figuras históricas, com base nas mais frágeis teorias. A próxima geração, como novo teste, terá que perceber adicionalmente que os rostos que lhes eram familiares, eram afinal meras suposições.

[continua]

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publicado às 05:09

Este texto surge na sequência da interessante troca de comentários com Clemente Baeta, a propósito dos Painéis de S. Vicente, e segue também dos textos:

Quando escrevi a hipótese dos Painéis retratarem a questão da sucessão de D. Jorge após a morte de D. Afonso, filho de D. João II e D. Leonor, considerei várias coisas, muitas das quais já nem me lembro. Em compensação, hoje tenho também mais informações. 
Há um site excelente, paineis.org que tem múltipla informação, e avança outras hipóteses. Longe de criticar quem questiona, interessaria que houvesse outros assuntos fundamentais questionados, e não sempre os enigmas "mais popularizados".
Porém, como é óbvio, tenho múltiplas razões para continuar a preferir a teoria de 1491-92, para a execução dos painéis. Se não tivesse, já teria avisado... 
Fica aqui uma síntese, procurando agora mencionar aspectos das outras teorias correntes.


1) Datação pelo quadro 
A datação habitual dos painéis era 1470-80. As análises de datação anteriores tinham sido inconclusivas, até que em 2001 leu-se o número 1445 numa bota. Foi então feita uma análise dendrocronológica às pranchas de suporte que terão revelado ser madeira colhida no Báltico entre 1442-52 (cf. Nuno Crato). 
Cientificamente, isso determinaria uma datação mínima (terminus post quem) e nada diz sobre a datação máxima (terminus ante quem). Por isso, pareceu-me natural fruto de entusiasmo ver pessoas que divulgam rigor esquecerem alguns detalhes, e apressarem-se numa conclusão de datação.
Essa data, como se lerá hoje na wikipedia, colocaria a pintura portuguesa na vanguarda máxima da pintura europeia, saindo do zero, e voltando ao zero... pois não se conhece mais nada de semelhante no Séc. XV português. 
Isso não é impossível, mas seria de um impressionante auto-didatismo.

Sobre a dendrocronologia. Como toda a ciência, os sistemas de datação assentam em hipóteses que não devem ser esquecidas. Um dos problemas é que os processos são calibrados aceitando mudanças "convenientes". Para dar um exemplo, imagine-se que um novo sistema de datação atribuía 1000 anos ao Parténon... ninguém iria duvidar da idade do Parténon, mas sim do sistema de datação! É assim que as coisas funcionam, por isso os sistemas de datação não são ciência pura, são ciência contaminada com convicções prévias.
No caso da dendrocronologia assume-se um crescimento regular dos anéis em anos bons, e pior em anos maus, devido ao clima, ainda afectado pelos ciclos de manchas solares (11 anos). É claro que isto esquece múltiplos factores, que têm a ver com o crescimento da árvore em particular, por exemplo, doenças, insectos, parasitas, etc. 
Assumindo que se tem um registo do clima em todos os anos, pode reduzir-se a procura num intervalo, e ver quando o registo de anéis corresponde ao registo do clima. Obtida a concordância, e como normalmente os anéis crescem um por ano, pode ter-se uma data precisa.
No entanto, isto funciona se: (i) o registo de clima for fiável ano-a-ano, (ii) o número de anéis for adequado, (iii) haver uma outra datação que reduza as possibilidades. 
Os problemas em (i) podem ser reduzidos por calibração (com datas assumidas), e os problemas em (iii) podem ser reduzidos por informação que reduza o intervalo de possibilidades.
Resta (ii), o número de anéis - o que pode ser complicado em tábuas. As tábuas são cortadas na vertical, habitualmente nas partes mais exteriores - ficam poucos anéis, e é difícil "adivinhar" quantos anéis há até atingir o interior (ou o exterior).
Por exemplo, pegando na imagem do link que dei acima, identifico o que seria o perfil de um típica tábua extraída do interior (rectângulo vermelho), e que apenas conteria informação de alguns anéis - o resto tem um pouco de ciência e um pouco de fé... adivinhar partindo da imagem a negro:
  

Ainda assim, admitindo que as tábuas tinham nós suficientes para uma datação precisa, surge o terminus ante quem, que é como quem diz, para um quadro que é suposto durar séculos, ninguém vai pintar sobre madeira fresca... convém dar alguns anos para a maturação da madeira. Seria natural que as madeiras mais antigas se destinassem a quadros mais importantes.

Portanto, a dendrocronologia, que ainda tem muito para provar a si própria, não prova nenhuma datação do quadro, conforme foi pretendido - no máximo arrisca uma data para o derrube das madeiras.


2) Datação pela arte
A pintura de Nuno Gonçalves é importante, independentemente de se datarem mais ou menos anos, e ganhará maior importância admitindo o que representa...
É curioso que a madeira das pranchas tenha vindo do Báltico, porque era também essa a origem dos quadros dos primeiros pintores holandeses. E nesse aspecto convém referir os Van Eyck, pois o "Retábulo do Cordeiro Místico" (1432) tem um Adão e uma Eva com um realismo surpreendente para a data de execução. Este caso de "antecipação" pode favorecer uma tese de 1445, mas a grande diferença, é que no caso da pintura holandesa não é caso único, não surge do zero, nem volta ao zero... 
Noutras paragens, temos outros pintores de vanguarda na técnica, por exemplo, um Konrad Witz (1444) ou um Jean Fouquet (1450), mas é habitual considerar que a maior influência europeia acabou por surgir de Itália. 
Ora é da escola de Squarcione, que temos o notável Andrea Mantegna, que tem um admirável S. Sebastião (c. 1455-60), que aqui comparamos com o "S. Vicente" atribuído a Nuno Gonçalves.
 
Andrea Mantegna (S. Sebastião, 1455-60); Nuno Gonçalves (S. Vicente)

Há várias semelhanças e várias diferenças, mas são as semelhanças que me colocam a hipótese de relação entre as duas composições (p.ex. posição na coluna e chão geométrico). O quadro de Nuno Gonçalves não tem paisagem, nem uma "ilusão"(?!) de Mantegna, com a nuvem:
no S. Sebastião de Mantegna

Mantegna irá fazer outros S. Sebastião (ver) com características diferentes (e se há mais "ilusões" escondidas, não as encontrei mencionadas). Não é de excluir que o atelier de Mantegna tenha influenciado Nuno Gonçalves. No reinado de D. João II havia uma ligação "instrutiva" com Veneza, com Florença e os Medici, conforme vemos na correspondência de D. João II, e essa era uma zona de influência de Mantegna.

Há ainda uma datação pelo vestuário. Não sei quase nada sobre o assunto, mas li nessa altura um artigo de Dagoberto Markl que mencionava os detalhes, praticamente arrasando uma datação de 1445 ou similar.


3) Datação pelos personagens
Vamos aceitar que no 3º painel, dito do Infante, está uma família real, ou seja, Rei, Rainha, e um jovem Príncipe. 

As possibilidades para o jovem príncipe, admitindo uma idade entre 8 e 12 anos, reduzem a datação:
 (i) Afonso V (n. 1432) - datação: 1440-44;
(ii) João II (n. 1455) - datação: 1463-67;
(iii) Afonso (n. 1475) - que morre em Santarém, datação: 1483-87;
incluo uma quarta hipótese, porque D. Jorge é colocado como pretendente ao trono após 13/7/1491:
(iv) D. Jorge (n.1481) - filho de D. João II, datação: 1491-93.

Repare-se que só este aspecto exclui a hipótese tradicional 1470-80.

Falta agora juntar o par real, ao príncipe. As hipóteses de "rei" e "rainha" seriam:

(i) -- D. Pedro (n. 1392), regente, ou uma invocação de D. Duarte (já morto, 1438).
----- D. Leonor de Aragão (viúva exilada, n. 1402).

(ii)-- D. Afonso V (n. 1432), com 23 anos em 1465.
----- D. Isabel de Coimbra (n. 1432, mas morre em 1455)

(iii) - D. João II (n. 1455), com 30 anos em 1485.
------ D. Leonor (n. 1458), com 27 anos em 1485.

(iv) - D. João II (n. 1455), com 36 em 1491.
------ D. Leonor de Viseu (n. 1458), com 33 anos em 1491.

Aqui há um problema de estarem todos vivos à data de execução. 
Em caso afirmativo, exclui-se a hipótese (ii), e a (i) também fica complicada, dado que D. Duarte está morto, e caso fosse D. Pedro, teria cerca de 50 anos. Não é muito verosímil também a inclusão de D. Leonor de Aragão entre 1440-45, pois estava excluída do reino. Excluímos a hipótese de ser a mulher de D. Pedro, pois passaria por provocação régia, face à sucessão do sobrinho, Afonso V. 
Isabel de Coimbra e Afonso V em 1445 tinham 13 anos, por isso associá-los ao par real, é impensável (em 1455 já seria possível, mas o príncipe, D. João II nasce nesse ano e a mãe morre).

Os rostos do rei e rainha são de adultos, podendo estar na casa dos 20 ou 30 anos, dificilmente muito  mais que 40.
Ou seja, admitindo que se trata de uma família real, e que estão todos vivos, as únicas possibilidades restantes são (iii) e (iv) - ou seja, D. Leonor de Viseu e D. João II. 
Relativamente à fisionomia, talvez se ache mais natural a hipótese (iii), colocando os reis na casa dos 30 anos, mas nada impede as idades da possibilidade (iv).


4) Conclusões da datação dos personagens
Por uma simples inspecção dos personagens, admitindo que se trata de uma família real viva, ficamos reduzidos aos reis D. João II e D. Leonor.
É claro que há outras possibilidades - poderia nem tratar-se de uma família real, poderia ser outra nobreza, mas isso é inverosímil, dado todo o contexto envolvente. Os dois elementos principais poderiam não ser rei e rainha, haverá muitas possibilidades, mas também não convincentes.

Também poderiam não estar todos vivos, e isso é uma possibilidade que iremos considerar, mas não para estes elementos em destaque.
É evidente que tratando-se do reinado de D. João II, o Infante D. Henrique já estaria morto.

Um ponto que me parece fulcral é não forçar o global aos detalhes. Os detalhes não podem condicionar o global a algo inverosímil, podem é ajudar a encontrar o contexto correcto. Mas, no final, todos os detalhes devem ser colocados no seu lugar, ou seja, devem aparecer como detalhes, e não como peças principais. 
Não faz sentido colocar a obra como um enigma do pintor. Ainda que o pintor possa ter colocado enigmas no quadro, o quadro fez sentido à época para quem o viu, e é esse aspecto global que interessa encontrar primeiro. Só depois disso é que faz sentido procurar mensagens que o pintor quis deixar implícitas.

Quanto à datação artística, a menos que queiramos admitir um pioneirismo autodidacta de Nuno Gonçalves, tudo aponta para uma influência externa em Portugal. Poderia ter vindo de Konrad Witz, por razão das ligações de Afonso V com a Dinamarca, por volta de 1470, também poderia ter vindo através de Jean Fouquet, ou da Escola de Avignon, pela Borgonha, da Duquesa D. Isabel (filha de D. João I).
No entanto, encontrámos mais semelhanças com Andrea Mantegna, conforme já referimos. Isso por si só não é determinante, mas justifica a possibilidade de influência italiana, razoavelmente posterior a 1460. Não exclui a hipótese (ii) de 1465, mas faltaria justificar tão rápida aquisição de competências.
As semelhanças com Mantegna e as relações de D. João II com Florença parecem apontar para as datas (iii) ou (iv).
Para além disso, vemos que uma datação anterior a 1480, deixaria o seguimento da pintura portuguesa com um enorme espaço em branco. Aí a datação de 1491-93 é mais convincente no sentido da ligação a Grão Vasco, por exemplo.

Sobre a datação dendocronológica, ainda que as tábuas sejam mais antigas, permitindo uma datação mínima de 1442-1452, isso não condiciona a datação máxima, havendo até razões para considerar tábuas mais antigas, que já tivessem resistido a uma prova do tempo.


5) Mortos/Vivos
Quando se coloca uma datação à volta de 1465, ou posterior, temos o problema de estarem mortos o Infante D. Henrique e a Rainha D. Isabel de Coimbra.
Há alguma característica comum que permita identificar que a Rainha e o Infante estão mortos?
Não seria estranho, diria mesmo profano, misturar vivos com mortos, sem nenhum traço distintivo?
À época, creio que sim, e não conheço nenhum exemplo contrário, mesmo nos séculos seguintes.

Por isso, só escrevi a hipótese quando encontrei um factor comum que poderia distinguir mortos de vivos, à data de execução do quadro. 
Esse factor comum seriam as mãos unidas, como encontramos frequentemente nos túmulos antigos.
Poderá pensar-se que uns estão a rezar e outros não, mas não há razão aparente para só alguns estarem em sinal de devoção. 
Há sim uma forte razão para distinguir os que já pereceram, através da evidência das mãos unidas.

Seguindo as razões acima mencionadas, torna-se praticamente hipótese única ser um quadro do reinado de D. João II. 
Poderia ter D. Afonso ou D. Jorge como príncipes, pensados futuros reis.
Iremos abordar essa questão depois.
Primeiro vamos ver se é possível dar sentido aos restantes personagens do quadro, neste contexto.


6) Infante D. Henrique 
A identificação do Infante D. Henrique é erradamente tida como óbvia, porque é a única familiar a todos nós. Porém, se tivessem sido divulgado outras caras como sendo o Rei X, a Rainha Y, etc... então todos os rostos seriam familiares e ninguém colocaria sequer dúvidas sobre o quadro.
Isto é instrutivo para perceber como funcionamos por via da educação... aceitamos coisas como óbvias, sem pensar porquê.

Ora, aquela imagem do Infante D. Henrique foi popularizada durante a ditadura de Salazar, que praticamente a colocou "imortalmente" no  Padrão dos Descobrimentos, na liderança da epopeia.
Por isso, há conotações políticas actuais, e não completa objectividade, em assumir que aquela se trata da efectiva imagem do Infante D. Henrique.
Isso não foi feito com outras imagens dos Painéis, porque se tornara evidente que aquele era o Infante, pela sua semelhança com a imagem existente na Crónica da Guiné de Zurara. Colocamos aqui uma breve imagem que mostra a coincidência de rostos:


Por isso, a utilização da imagem do Infante D. Henrique não foi nenhuma escolha fortuita, foi baseada numa exacta coincidência com uma imagem de outro documento, que continha ainda a sua divisa "talant de bien faire".
Acontece que se duvidou recentemente da autenticidade da própria Crónica de Zurara, porque há uma notória mudança de aspecto entre a primeira e a segunda página.
Curiosamente, parece que não se duvida que o texto tenha sido alterado - obviamente o mais natural (e sabemos bem porquê), mas sim que a imagem fosse outra.

Ora, uma alteração da imagem parece-me algo de arrojada conspiração, e isto dito por mim, parecerá até estranho. Porém, digo isto porque não encontro motivo para substituição de imagens, a menos que fosse alguém que quisesse recolocar D. Pedro no seu devido lugar histórico. Aí tratar-se-ia do Infante D. Pedro e não de D. Henrique... só encontro esse motivo, e posso aceitá-lo. Outro, parece-me difícil.

Há porém uma série de argumentos, que estão resumidos aqui em paineis.org.
Destaco a questão da face esculpida no túmulo da Batalha, porque me parece o mais pertinente.

(i ) Há um rosto que não corresponde ao padrão da escultura da época, tem formas algo simplificadas, que não se ajustam ao outro detalhe. É perfeitamente natural que uma escultura exposta tenha sido danificada quase irremediavelmente, por algum partidário de D. Pedro, e certamente não faltariam candidatos ao trabalho, logo à época, e especialmente no reinado de D. João II.
No entanto, a escultura mantém traços que a ligam ao quadro em Zurara. O corte de cabelo e o lobo da orelha são practicamente iguais. O olhar também poderia corresponder sem dificuldade, é a parte inferior do rosto que tem maior mudança, graças a traços demasiado vincados, que não se coadunam com a malha fina que existe na coroa ornamental da cabeça. Aliás a parte inferior da cara parece ajustar-se de facto à de D. Pedro, talvez por deformação propositada, eliminando o típico bigode.
Por isso, se se considerar uma imagem errada em Zurara, num livro de guarda pessoal, não se pode deixar de considerar uma deformação quase evidente num busto exposto. Acresce que as coincidências notáveis na posição do corte de cabelo, evidenciam tratar-se de D. Henrique. A confusão com D. Pedro só aumenta pela coroa ornamental da cabeça, que é semelhante à que se vê no "retrato" mais jovem de D. Pedro. Talvez o trabalho de escopro tenha sido ao ponto de destruir o chapelão...

(ii) Há uma questão relativa à cor do cabelo, que me parece secundária, e resulta de uma nova proposta de transcrição na leitura do manuscrito de Zurara. Parece-me que pelo menos ambas as interpretações (a de João de Barros, e a nova) são possíveis, e João de Barros teria maior proximidade histórica, e outras fontes. 

(iii) Há depois a questão de uma eventual alteração da divisa com o moto 
"talAnt de bien fAi're".
O problema são os dois A maiúsculos... só que onde é vista uma adulteração, pode ver-se outro sentido. Ou seja, os A maiúsculos deveriam passar para o início das palavras, ficando
Atlant de bien Afri'e,
que é como quem diz "América por bem África"... juntando o moto de D. João I (por bem), e remetendo à questão do paralelismo América-África, notado também pela duquesa Medina-Sidonia.
O "fere" ao invés de "faire" não tinha o "i" conveniente, nem ao "talant" convinha o "e", haveria mais o empenho do talento nos talentos (moeda)... 

Para além disso, se é que interessa alguma coisa, poderia ainda ficar "Atlantide", e o rabisco no d pode não ser bem um rabisco, e mais um mini-mapa com a península da Florida... mas isso são conjecturas.
Como diria Frei Luís de Sousa, tem duas pirâmides dos reis do Egipto... sim, mas tinha uma em cada hemisfério, como se já soubesse que havia outras na América, ou pior, como se já preconizasse uma divisão dos hemisférios pelo meridiano de Tordesilhas. E assim, quem teve que "coser esse barrete", de "duas metades", foi o seu sucessor de Viseu, D. Manuel, mas esse é outro personagem.

(iv) A questão da simetria da cara nos painéis e na crónica... pode até ter uma explicação, mas não creio que seja vendo o quadro como uma "charada".  É uma oposição política. Na crónica de Zurara, o Infante está virado para Oriente, como sempre esteve, e é D. João II, na tentativa de legitimação de D. Jorge, que irá virá-lo para onde lhe convém...

Sobre o Infante D. Henrique acrescento a sua saída (expulsão) da Ordem da Jarreteira, talvez tenha preferido a Ordem do Tosão de Ouro, adoptado o chapelão do borgonhês do "confrade" Filipe, por bem, o Bom, seu cunhado. A dinastia podia omitir o passado bulhão, e a Ida, com os novos talentos, passaria a afrancesar o talento com um sangue afonsinho borgonhês, carimbado oficialmente.


7) Infante D. Pedro
Sobre o Infante D. Pedro, começo com esta descrição de Camões 7§77

(77)...
De um velho branco, aspecto venerando
Cujo nome não pode ser defunto
Enquanto houver no mundo trato humano:
No trajo a Grega usança está perfeita,
Um ramo por insígnia na direita.

78
Um ramo na mão tinha... Mas, ó cego!
Eu, que cometo insano e temerário,
Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego,
Por caminho tão árduo, longo e vário!
Vosso favor invoco, que navego
Por alto mar, com vento tão contrário,
Que, se não me ajudais, hei grande medo
Que o meu fraco batel se alague cedo.


A "grega usança" tomo-a como referência às vestes de D. Pedro, nem sei se alguma vez houve outro candidato para esta descrição de Camões. A imagem do jovem Pedro lembra-me os Evzones gregos.
Vemos nos panéis a fivela do cinto da Jarreteira, desapertada, e talvez a blusa evidencie uma "grega usança"... o ramo já não tinha, e se tinha, foi ocultado por uma espada. Essa espada, mal posicionada entre as mãos, e sem continuação notória do gume/baínha, parece ser uma inserção posterior (seria importante ter uma imagem radiográfica desta parte).

Já assinalei possíveis confusões entre as imagens de D. Pedro e do busto de D. Henrique no túmulo da Batalha, que coloco nesta imagem:
A semelhança mais importante é o ornamento da coroa (assinalo as folhas semelhantes com quadrados vermelhos).
Há ainda alguma semelhança na parte inferior do rosto, identificada em paineis.org. Como já referi, pode ter-se tratado de uma adulteração do busto inicial. O Mosteiro da Batalha, longe de estar imune a alterações, sofreu consideráveis mudanças. Relembro, por exemplo, a parte hoje vazia, e atribuída ao "soldado desconhecido". Faz falta uma outra, atribuída aos "navegadores e exploradores desconhecidos".

D. Pedro, estando já morto, cumpre o critério das mãos juntas, tal como D. Henrique, faltará só o ramo nas mãos, que nos parece ter sido substituído pela parte superior de uma espada.


8) D. Beatriz de Viseu e D. Manuel
Uma outra figura importante nos painéis é a da velha senhora, por cima da Rainha, dando uma possível ideia de parentesco, mas não só. As duas mulheres têm um lugar de destaque no conjunto.
D. Beatriz de Viseu, é mãe da Rainha D. Leonor, e é uma peça central na época.
Substitui-se quase ao Papa, como mediadora no Tratado de Alcáçovas, entre D. João II e Isabel de Castela, mantendo os filhos de ambos como reféns, nas Terciarias de Moura.
É portuguesa, mas aparece como "parte terceira", numa questão entre os seus sobrinhos, mas também entre Portugal e Espanha.
O seu filho é D. Manuel, e sucederá a D. João II, que preferia D. Jorge, seu filho "bastardo".

Há semelhanças físicas face a um outro retrato de D. Beatriz, onde aparece mais nova, mas com trajo religioso algo similar.
A figura retratada é religiosa, vê-se o terço, mas nos painéis não está a rezar. No outro quadro, D. Beatriz está a rezar, com as mãos juntas. Nos painéis não pode ter as mãos juntas, porque está viva à época. Nascida em 1430, teria 55 anos na hipótese (iii) de 1485, e 61 anos na hipótese (iv) de 1491. Uma idade próxima dos 60 anos é consistente com a fisionomia do seu rosto.

No outro painel, em posição semelhante, à de D. Beatriz, em oposição ao "príncipe",  aparece outro jovem, com o "barrete cosido" que identificámos antes com D. Diogo. Faço agora uma comparação com D. Manuel, com uns anos e uns quilos de diferença:
O contorno, da sobrancelha ao nariz, é muito semelhante. Nascido em 1469 teria 16 anos em 1485, e 22 anos em 1491.
Porém, há um detalhe, que me obrigou a afastar a hipótese de ser D. Manuel - o jovem parece ter as mãos juntas (só se vê uma mão), e assim, pela regra, estaria morto... Poderia por isso ser o irmão, D. Diogo, assassinado pelo rei em 1484.

A cerimónia em questão, c. 1485, seria assim uma reabilitação de D. João II, prostrado no chão, pedindo perdão à Rainha, sua irmã, e à mãe, D. Beatriz, pelo assassinato do filho.
O quadro seria encomendado para esse efeito...

Essa hipótese de 1485 estava para mim quase como definitiva, pela sua razoabilidade, até reparar num outro detalhe, pouco tempo antes de escrever o texto:
-  todos os personagens tinham a barba aparada, excepto os que tinham as mãos juntas.
Ou seja, os vivos tinham a barba rapada, e isso correspondia a um acontecimento preciso - a morte de D. Afonso, na queda de cavalo em Santarém.
O rei D. João II rapou a barba, e todos fizeram o mesmo, segundo Garcia de Resende.

Poderia haver uma excepção a essa regra, no 5º painel, que presumi ser o Infante Santo, D. Fernando. No entanto, na posição do personagem, a perspectiva não tornaria visíveis as suas mãos. Portanto, não havia uma quebra efectiva de regra, e todo o enquadramento faria sentido.

Faltava recolocar D. Manuel. Uma outra figura no 5º painel tinha algumas semelhanças com outro retrato de D. Manuel, e na altura considerei a hipótese de estar ali representado. No entanto, dadas as semelhanças com este retrato, é possível que estivesse ainda retratado na figura do Duque de Viseu, como duas partes do mesmo projecto.

[continua]

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publicado às 13:24

Este texto surge na sequência da interessante troca de comentários com Clemente Baeta, a propósito dos Painéis de S. Vicente, e segue também dos textos:

Quando escrevi a hipótese dos Painéis retratarem a questão da sucessão de D. Jorge após a morte de D. Afonso, filho de D. João II e D. Leonor, considerei várias coisas, muitas das quais já nem me lembro. Em compensação, hoje tenho também mais informações. 
Há um site excelente, paineis.org que tem múltipla informação, e avança outras hipóteses. Longe de criticar quem questiona, interessaria que houvesse outros assuntos fundamentais questionados, e não sempre os enigmas "mais popularizados".
Porém, como é óbvio, tenho múltiplas razões para continuar a preferir a teoria de 1491-92, para a execução dos painéis. Se não tivesse, já teria avisado... 
Fica aqui uma síntese, procurando agora mencionar aspectos das outras teorias correntes.


1) Datação pelo quadro 
A datação habitual dos painéis era 1470-80. As análises de datação anteriores tinham sido inconclusivas, até que em 2001 leu-se o número 1445 numa bota. Foi então feita uma análise dendrocronológica às pranchas de suporte que terão revelado ser madeira colhida no Báltico entre 1442-52 (cf. Nuno Crato). 
Cientificamente, isso determinaria uma datação mínima (terminus post quem) e nada diz sobre a datação máxima (terminus ante quem). Por isso, pareceu-me natural fruto de entusiasmo ver pessoas que divulgam rigor esquecerem alguns detalhes, e apressarem-se numa conclusão de datação.
Essa data, como se lerá hoje na wikipedia, colocaria a pintura portuguesa na vanguarda máxima da pintura europeia, saindo do zero, e voltando ao zero... pois não se conhece mais nada de semelhante no Séc. XV português. 
Isso não é impossível, mas seria de um impressionante auto-didatismo.

Sobre a dendrocronologia. Como toda a ciência, os sistemas de datação assentam em hipóteses que não devem ser esquecidas. Um dos problemas é que os processos são calibrados aceitando mudanças "convenientes". Para dar um exemplo, imagine-se que um novo sistema de datação atribuía 1000 anos ao Parténon... ninguém iria duvidar da idade do Parténon, mas sim do sistema de datação! É assim que as coisas funcionam, por isso os sistemas de datação não são ciência pura, são ciência contaminada com convicções prévias.
No caso da dendrocronologia assume-se um crescimento regular dos anéis em anos bons, e pior em anos maus, devido ao clima, ainda afectado pelos ciclos de manchas solares (11 anos). É claro que isto esquece múltiplos factores, que têm a ver com o crescimento da árvore em particular, por exemplo, doenças, insectos, parasitas, etc. 
Assumindo que se tem um registo do clima em todos os anos, pode reduzir-se a procura num intervalo, e ver quando o registo de anéis corresponde ao registo do clima. Obtida a concordância, e como normalmente os anéis crescem um por ano, pode ter-se uma data precisa.
No entanto, isto funciona se: (i) o registo de clima for fiável ano-a-ano, (ii) o número de anéis for adequado, (iii) haver uma outra datação que reduza as possibilidades. 
Os problemas em (i) podem ser reduzidos por calibração (com datas assumidas), e os problemas em (iii) podem ser reduzidos por informação que reduza o intervalo de possibilidades.
Resta (ii), o número de anéis - o que pode ser complicado em tábuas. As tábuas são cortadas na vertical, habitualmente nas partes mais exteriores - ficam poucos anéis, e é difícil "adivinhar" quantos anéis há até atingir o interior (ou o exterior).
Por exemplo, pegando na imagem do link que dei acima, identifico o que seria o perfil de um típica tábua extraída do interior (rectângulo vermelho), e que apenas conteria informação de alguns anéis - o resto tem um pouco de ciência e um pouco de fé... adivinhar partindo da imagem a negro:
  

Ainda assim, admitindo que as tábuas tinham nós suficientes para uma datação precisa, surge o terminus ante quem, que é como quem diz, para um quadro que é suposto durar séculos, ninguém vai pintar sobre madeira fresca... convém dar alguns anos para a maturação da madeira. Seria natural que as madeiras mais antigas se destinassem a quadros mais importantes.

Portanto, a dendrocronologia, que ainda tem muito para provar a si própria, não prova nenhuma datação do quadro, conforme foi pretendido - no máximo arrisca uma data para o derrube das madeiras.


2) Datação pela arte
A pintura de Nuno Gonçalves é importante, independentemente de se datarem mais ou menos anos, e ganhará maior importância admitindo o que representa...
É curioso que a madeira das pranchas tenha vindo do Báltico, porque era também essa a origem dos quadros dos primeiros pintores holandeses. E nesse aspecto convém referir os Van Eyck, pois o "Retábulo do Cordeiro Místico" (1432) tem um Adão e uma Eva com um realismo surpreendente para a data de execução. Este caso de "antecipação" pode favorecer uma tese de 1445, mas a grande diferença, é que no caso da pintura holandesa não é caso único, não surge do zero, nem volta ao zero... 
Noutras paragens, temos outros pintores de vanguarda na técnica, por exemplo, um Konrad Witz (1444) ou um Jean Fouquet (1450), mas é habitual considerar que a maior influência europeia acabou por surgir de Itália. 
Ora é da escola de Squarcione, que temos o notável Andrea Mantegna, que tem um admirável S. Sebastião (c. 1455-60), que aqui comparamos com o "S. Vicente" atribuído a Nuno Gonçalves.
 
Andrea Mantegna (S. Sebastião, 1455-60); Nuno Gonçalves (S. Vicente)

Há várias semelhanças e várias diferenças, mas são as semelhanças que me colocam a hipótese de relação entre as duas composições (p.ex. posição na coluna e chão geométrico). O quadro de Nuno Gonçalves não tem paisagem, nem uma "ilusão"(?!) de Mantegna, com a nuvem:
no S. Sebastião de Mantegna

Mantegna irá fazer outros S. Sebastião (ver) com características diferentes (e se há mais "ilusões" escondidas, não as encontrei mencionadas). Não é de excluir que o atelier de Mantegna tenha influenciado Nuno Gonçalves. No reinado de D. João II havia uma ligação "instrutiva" com Veneza, com Florença e os Medici, conforme vemos na correspondência de D. João II, e essa era uma zona de influência de Mantegna.

Há ainda uma datação pelo vestuário. Não sei quase nada sobre o assunto, mas li nessa altura um artigo de Dagoberto Markl que mencionava os detalhes, praticamente arrasando uma datação de 1445 ou similar.


3) Datação pelos personagens
Vamos aceitar que no 3º painel, dito do Infante, está uma família real, ou seja, Rei, Rainha, e um jovem Príncipe. 

As possibilidades para o jovem príncipe, admitindo uma idade entre 8 e 12 anos, reduzem a datação:
 (i) Afonso V (n. 1432) - datação: 1440-44;
(ii) João II (n. 1455) - datação: 1463-67;
(iii) Afonso (n. 1475) - que morre em Santarém, datação: 1483-87;
incluo uma quarta hipótese, porque D. Jorge é colocado como pretendente ao trono após 13/7/1491:
(iv) D. Jorge (n.1481) - filho de D. João II, datação: 1491-93.

Repare-se que só este aspecto exclui a hipótese tradicional 1470-80.

Falta agora juntar o par real, ao príncipe. As hipóteses de "rei" e "rainha" seriam:

(i) -- D. Pedro (n. 1392), regente, ou uma invocação de D. Duarte (já morto, 1438).
----- D. Leonor de Aragão (viúva exilada, n. 1402).

(ii)-- D. Afonso V (n. 1432), com 23 anos em 1465.
----- D. Isabel de Coimbra (n. 1432, mas morre em 1455)

(iii) - D. João II (n. 1455), com 30 anos em 1485.
------ D. Leonor (n. 1458), com 27 anos em 1485.

(iv) - D. João II (n. 1455), com 36 em 1491.
------ D. Leonor de Viseu (n. 1458), com 33 anos em 1491.

Aqui há um problema de estarem todos vivos à data de execução. 
Em caso afirmativo, exclui-se a hipótese (ii), e a (i) também fica complicada, dado que D. Duarte está morto, e caso fosse D. Pedro, teria cerca de 50 anos. Não é muito verosímil também a inclusão de D. Leonor de Aragão entre 1440-45, pois estava excluída do reino. Excluímos a hipótese de ser a mulher de D. Pedro, pois passaria por provocação régia, face à sucessão do sobrinho, Afonso V. 
Isabel de Coimbra e Afonso V em 1445 tinham 13 anos, por isso associá-los ao par real, é impensável (em 1455 já seria possível, mas o príncipe, D. João II nasce nesse ano e a mãe morre).

Os rostos do rei e rainha são de adultos, podendo estar na casa dos 20 ou 30 anos, dificilmente muito  mais que 40.
Ou seja, admitindo que se trata de uma família real, e que estão todos vivos, as únicas possibilidades restantes são (iii) e (iv) - ou seja, D. Leonor de Viseu e D. João II. 
Relativamente à fisionomia, talvez se ache mais natural a hipótese (iii), colocando os reis na casa dos 30 anos, mas nada impede as idades da possibilidade (iv).


4) Conclusões da datação dos personagens
Por uma simples inspecção dos personagens, admitindo que se trata de uma família real viva, ficamos reduzidos aos reis D. João II e D. Leonor.
É claro que há outras possibilidades - poderia nem tratar-se de uma família real, poderia ser outra nobreza, mas isso é inverosímil, dado todo o contexto envolvente. Os dois elementos principais poderiam não ser rei e rainha, haverá muitas possibilidades, mas também não convincentes.

Também poderiam não estar todos vivos, e isso é uma possibilidade que iremos considerar, mas não para estes elementos em destaque.
É evidente que tratando-se do reinado de D. João II, o Infante D. Henrique já estaria morto.

Um ponto que me parece fulcral é não forçar o global aos detalhes. Os detalhes não podem condicionar o global a algo inverosímil, podem é ajudar a encontrar o contexto correcto. Mas, no final, todos os detalhes devem ser colocados no seu lugar, ou seja, devem aparecer como detalhes, e não como peças principais. 
Não faz sentido colocar a obra como um enigma do pintor. Ainda que o pintor possa ter colocado enigmas no quadro, o quadro fez sentido à época para quem o viu, e é esse aspecto global que interessa encontrar primeiro. Só depois disso é que faz sentido procurar mensagens que o pintor quis deixar implícitas.

Quanto à datação artística, a menos que queiramos admitir um pioneirismo autodidacta de Nuno Gonçalves, tudo aponta para uma influência externa em Portugal. Poderia ter vindo de Konrad Witz, por razão das ligações de Afonso V com a Dinamarca, por volta de 1470, também poderia ter vindo através de Jean Fouquet, ou da Escola de Avignon, pela Borgonha, da Duquesa D. Isabel (filha de D. João I).
No entanto, encontrámos mais semelhanças com Andrea Mantegna, conforme já referimos. Isso por si só não é determinante, mas justifica a possibilidade de influência italiana, razoavelmente posterior a 1460. Não exclui a hipótese (ii) de 1465, mas faltaria justificar tão rápida aquisição de competências.
As semelhanças com Mantegna e as relações de D. João II com Florença parecem apontar para as datas (iii) ou (iv).
Para além disso, vemos que uma datação anterior a 1480, deixaria o seguimento da pintura portuguesa com um enorme espaço em branco. Aí a datação de 1491-93 é mais convincente no sentido da ligação a Grão Vasco, por exemplo.

Sobre a datação dendocronológica, ainda que as tábuas sejam mais antigas, permitindo uma datação mínima de 1442-1452, isso não condiciona a datação máxima, havendo até razões para considerar tábuas mais antigas, que já tivessem resistido a uma prova do tempo.


5) Mortos/Vivos
Quando se coloca uma datação à volta de 1465, ou posterior, temos o problema de estarem mortos o Infante D. Henrique e a Rainha D. Isabel de Coimbra.
Há alguma característica comum que permita identificar que a Rainha e o Infante estão mortos?
Não seria estranho, diria mesmo profano, misturar vivos com mortos, sem nenhum traço distintivo?
À época, creio que sim, e não conheço nenhum exemplo contrário, mesmo nos séculos seguintes.

Por isso, só escrevi a hipótese quando encontrei um factor comum que poderia distinguir mortos de vivos, à data de execução do quadro. 
Esse factor comum seriam as mãos unidas, como encontramos frequentemente nos túmulos antigos.
Poderá pensar-se que uns estão a rezar e outros não, mas não há razão aparente para só alguns estarem em sinal de devoção. 
Há sim uma forte razão para distinguir os que já pereceram, através da evidência das mãos unidas.

Seguindo as razões acima mencionadas, torna-se praticamente hipótese única ser um quadro do reinado de D. João II. 
Poderia ter D. Afonso ou D. Jorge como príncipes, pensados futuros reis.
Iremos abordar essa questão depois.
Primeiro vamos ver se é possível dar sentido aos restantes personagens do quadro, neste contexto.


6) Infante D. Henrique 
A identificação do Infante D. Henrique é erradamente tida como óbvia, porque é a única familiar a todos nós. Porém, se tivessem sido divulgado outras caras como sendo o Rei X, a Rainha Y, etc... então todos os rostos seriam familiares e ninguém colocaria sequer dúvidas sobre o quadro.
Isto é instrutivo para perceber como funcionamos por via da educação... aceitamos coisas como óbvias, sem pensar porquê.

Ora, aquela imagem do Infante D. Henrique foi popularizada durante a ditadura de Salazar, que praticamente a colocou "imortalmente" no  Padrão dos Descobrimentos, na liderança da epopeia.
Por isso, há conotações políticas actuais, e não completa objectividade, em assumir que aquela se trata da efectiva imagem do Infante D. Henrique.
Isso não foi feito com outras imagens dos Painéis, porque se tornara evidente que aquele era o Infante, pela sua semelhança com a imagem existente na Crónica da Guiné de Zurara. Colocamos aqui uma breve imagem que mostra a coincidência de rostos:


Por isso, a utilização da imagem do Infante D. Henrique não foi nenhuma escolha fortuita, foi baseada numa exacta coincidência com uma imagem de outro documento, que continha ainda a sua divisa "talant de bien faire".
Acontece que se duvidou recentemente da autenticidade da própria Crónica de Zurara, porque há uma notória mudança de aspecto entre a primeira e a segunda página.
Curiosamente, parece que não se duvida que o texto tenha sido alterado - obviamente o mais natural (e sabemos bem porquê), mas sim que a imagem fosse outra.

Ora, uma alteração da imagem parece-me algo de arrojada conspiração, e isto dito por mim, parecerá até estranho. Porém, digo isto porque não encontro motivo para substituição de imagens, a menos que fosse alguém que quisesse recolocar D. Pedro no seu devido lugar histórico. Aí tratar-se-ia do Infante D. Pedro e não de D. Henrique... só encontro esse motivo, e posso aceitá-lo. Outro, parece-me difícil.

Há porém uma série de argumentos, que estão resumidos aqui em paineis.org.
Destaco a questão da face esculpida no túmulo da Batalha, porque me parece o mais pertinente.

(i ) Há um rosto que não corresponde ao padrão da escultura da época, tem formas algo simplificadas, que não se ajustam ao outro detalhe. É perfeitamente natural que uma escultura exposta tenha sido danificada quase irremediavelmente, por algum partidário de D. Pedro, e certamente não faltariam candidatos ao trabalho, logo à época, e especialmente no reinado de D. João II.
No entanto, a escultura mantém traços que a ligam ao quadro em Zurara. O corte de cabelo e o lobo da orelha são practicamente iguais. O olhar também poderia corresponder sem dificuldade, é a parte inferior do rosto que tem maior mudança, graças a traços demasiado vincados, que não se coadunam com a malha fina que existe na coroa ornamental da cabeça. Aliás a parte inferior da cara parece ajustar-se de facto à de D. Pedro, talvez por deformação propositada, eliminando o típico bigode.
Por isso, se se considerar uma imagem errada em Zurara, num livro de guarda pessoal, não se pode deixar de considerar uma deformação quase evidente num busto exposto. Acresce que as coincidências notáveis na posição do corte de cabelo, evidenciam tratar-se de D. Henrique. A confusão com D. Pedro só aumenta pela coroa ornamental da cabeça, que é semelhante à que se vê no "retrato" mais jovem de D. Pedro. Talvez o trabalho de escopro tenha sido ao ponto de destruir o chapelão...

(ii) Há uma questão relativa à cor do cabelo, que me parece secundária, e resulta de uma nova proposta de transcrição na leitura do manuscrito de Zurara. Parece-me que pelo menos ambas as interpretações (a de João de Barros, e a nova) são possíveis, e João de Barros teria maior proximidade histórica, e outras fontes. 

(iii) Há depois a questão de uma eventual alteração da divisa com o moto 
"talAnt de bien fAi're".
O problema são os dois A maiúsculos... só que onde é vista uma adulteração, pode ver-se outro sentido. Ou seja, os A maiúsculos deveriam passar para o início das palavras, ficando
Atlant de bien Afri'e,
que é como quem diz "América por bem África"... juntando o moto de D. João I (por bem), e remetendo à questão do paralelismo América-África, notado também pela duquesa Medina-Sidonia.
O "fere" ao invés de "faire" não tinha o "i" conveniente, nem ao "talant" convinha o "e", haveria mais o empenho do talento nos talentos (moeda)... 

Para além disso, se é que interessa alguma coisa, poderia ainda ficar "Atlantide", e o rabisco no d pode não ser bem um rabisco, e mais um mini-mapa com a península da Florida... mas isso são conjecturas.
Como diria Frei Luís de Sousa, tem duas pirâmides dos reis do Egipto... sim, mas tinha uma em cada hemisfério, como se já soubesse que havia outras na América, ou pior, como se já preconizasse uma divisão dos hemisférios pelo meridiano de Tordesilhas. E assim, quem teve que "coser esse barrete", de "duas metades", foi o seu sucessor de Viseu, D. Manuel, mas esse é outro personagem.

(iv) A questão da simetria da cara nos painéis e na crónica... pode até ter uma explicação, mas não creio que seja vendo o quadro como uma "charada".  É uma oposição política. Na crónica de Zurara, o Infante está virado para Oriente, como sempre esteve, e é D. João II, na tentativa de legitimação de D. Jorge, que irá virá-lo para onde lhe convém...

Sobre o Infante D. Henrique acrescento a sua saída (expulsão) da Ordem da Jarreteira, talvez tenha preferido a Ordem do Tosão de Ouro, adoptado o chapelão do borgonhês do "confrade" Filipe, por bem, o Bom, seu cunhado. A dinastia podia omitir o passado bulhão, e a Ida, com os novos talentos, passaria a afrancesar o talento com um sangue afonsinho borgonhês, carimbado oficialmente.


7) Infante D. Pedro
Sobre o Infante D. Pedro, começo com esta descrição de Camões 7§77

(77)...
De um velho branco, aspecto venerando
Cujo nome não pode ser defunto
Enquanto houver no mundo trato humano:
No trajo a Grega usança está perfeita,
Um ramo por insígnia na direita.

78
Um ramo na mão tinha... Mas, ó cego!
Eu, que cometo insano e temerário,
Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego,
Por caminho tão árduo, longo e vário!
Vosso favor invoco, que navego
Por alto mar, com vento tão contrário,
Que, se não me ajudais, hei grande medo
Que o meu fraco batel se alague cedo.


A "grega usança" tomo-a como referência às vestes de D. Pedro, nem sei se alguma vez houve outro candidato para esta descrição de Camões. A imagem do jovem Pedro lembra-me os Evzones gregos.
Vemos nos panéis a fivela do cinto da Jarreteira, desapertada, e talvez a blusa evidencie uma "grega usança"... o ramo já não tinha, e se tinha, foi ocultado por uma espada. Essa espada, mal posicionada entre as mãos, e sem continuação notória do gume/baínha, parece ser uma inserção posterior (seria importante ter uma imagem radiográfica desta parte).

Já assinalei possíveis confusões entre as imagens de D. Pedro e do busto de D. Henrique no túmulo da Batalha, que coloco nesta imagem:
A semelhança mais importante é o ornamento da coroa (assinalo as folhas semelhantes com quadrados vermelhos).
Há ainda alguma semelhança na parte inferior do rosto, identificada em paineis.org. Como já referi, pode ter-se tratado de uma adulteração do busto inicial. O Mosteiro da Batalha, longe de estar imune a alterações, sofreu consideráveis mudanças. Relembro, por exemplo, a parte hoje vazia, e atribuída ao "soldado desconhecido". Faz falta uma outra, atribuída aos "navegadores e exploradores desconhecidos".

D. Pedro, estando já morto, cumpre o critério das mãos juntas, tal como D. Henrique, faltará só o ramo nas mãos, que nos parece ter sido substituído pela parte superior de uma espada.


8) D. Beatriz de Viseu e D. Manuel
Uma outra figura importante nos painéis é a da velha senhora, por cima da Rainha, dando uma possível ideia de parentesco, mas não só. As duas mulheres têm um lugar de destaque no conjunto.
D. Beatriz de Viseu, é mãe da Rainha D. Leonor, e é uma peça central na época.
Substitui-se quase ao Papa, como mediadora no Tratado de Alcáçovas, entre D. João II e Isabel de Castela, mantendo os filhos de ambos como reféns, nas Terciarias de Moura.
É portuguesa, mas aparece como "parte terceira", numa questão entre os seus sobrinhos, mas também entre Portugal e Espanha.
O seu filho é D. Manuel, e sucederá a D. João II, que preferia D. Jorge, seu filho "bastardo".

Há semelhanças físicas face a um outro retrato de D. Beatriz, onde aparece mais nova, mas com trajo religioso algo similar.
A figura retratada é religiosa, vê-se o terço, mas nos painéis não está a rezar. No outro quadro, D. Beatriz está a rezar, com as mãos juntas. Nos painéis não pode ter as mãos juntas, porque está viva à época. Nascida em 1430, teria 55 anos na hipótese (iii) de 1485, e 61 anos na hipótese (iv) de 1491. Uma idade próxima dos 60 anos é consistente com a fisionomia do seu rosto.

No outro painel, em posição semelhante, à de D. Beatriz, em oposição ao "príncipe",  aparece outro jovem, com o "barrete cosido" que identificámos antes com D. Diogo. Faço agora uma comparação com D. Manuel, com uns anos e uns quilos de diferença:
O contorno, da sobrancelha ao nariz, é muito semelhante. Nascido em 1469 teria 16 anos em 1485, e 22 anos em 1491.
Porém, há um detalhe, que me obrigou a afastar a hipótese de ser D. Manuel - o jovem parece ter as mãos juntas (só se vê uma mão), e assim, pela regra, estaria morto... Poderia por isso ser o irmão, D. Diogo, assassinado pelo rei em 1484.

A cerimónia em questão, c. 1485, seria assim uma reabilitação de D. João II, prostrado no chão, pedindo perdão à Rainha, sua irmã, e à mãe, D. Beatriz, pelo assassinato do filho.
O quadro seria encomendado para esse efeito...

Essa hipótese de 1485 estava para mim quase como definitiva, pela sua razoabilidade, até reparar num outro detalhe, pouco tempo antes de escrever o texto:
-  todos os personagens tinham a barba aparada, excepto os que tinham as mãos juntas.
Ou seja, os vivos tinham a barba rapada, e isso correspondia a um acontecimento preciso - a morte de D. Afonso, na queda de cavalo em Santarém.
O rei D. João II rapou a barba, e todos fizeram o mesmo, segundo Garcia de Resende.

Poderia haver uma excepção a essa regra, no 5º painel, que presumi ser o Infante Santo, D. Fernando. No entanto, na posição do personagem, a perspectiva não tornaria visíveis as suas mãos. Portanto, não havia uma quebra efectiva de regra, e todo o enquadramento faria sentido.

Faltava recolocar D. Manuel. Uma outra figura no 5º painel tinha algumas semelhanças com outro retrato de D. Manuel, e na altura considerei a hipótese de estar ali representado. No entanto, dadas as semelhanças com este retrato, é possível que estivesse ainda retratado na figura do Duque de Viseu, como duas partes do mesmo projecto.

[continua]

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publicado às 13:24

Depois do "Colombo", coloco aqui o quarto texto da série "Tese de Alvor-Silves", sob o título "Encoberto", conforme foi escrito há três anos. Creio que esta foi a primeira versão lançada em 22/12/2009, mas depois fiz algumas alterações e acabei por concatená-lo com o texto seguinte (denominado "Adamastor"), para suprimir as muitas opinações fruto do estilo que ia assumindo. Com a supressão do Knol, muitas das imagens já nem tinham ligação, e tive que recuperá-las em ficheiros gravados. Ao procurar nos ficheiros antigos, fui recuperando muitas coisas que escrevi e que deixei para trás. A mais interessante é a do mapa de Jorge Aguiar, que vou aqui colocar em breve.

Neste texto há dois detalhes sem grande importância, mas que quero referir, pois envolvem o programa de José Hermano Saraiva, que ainda passava na RTP-2. Foi nesta altura que o vi colocar a interrogação sobre a ideia do Infante D. Henrique no desembarque em Ceuta para um ataque terrestre a Tanger. Essa lenta progressão terrestre tinha sido a principal causa do desastre militar, que veio a sacrificar o Infante D. Fernando, que era quem comandava o ataque naval e não estava em perigo...
- Nessa altura estava bastante convencido (como é visível) de uma oposição política sobre a direcção das descobertas... de um lado o Ocidente oferecia-se a uma colonização, aparentemente mais pacífica, e pelo lado Oriental esperavam-se sangrentas batalhas, para a reconquista de Jerusalém (projecto antigo dos Templários, herdado na Ordem de Cristo). Este ideal da reconquista de Jerusalém prosseguia da Idade Média, passados vários séculos sobre a recuperação liderada por Saladino. Feito o Índico um mar cristão, abriria uma frente de ataque - pela rectaguarda, para entrada pelo Mar Vermelho e reconquista da Terra Santa. Tal plano seria seguido por D. Manuel, e executado admiravelmente por Afonso de Albuquerque, até à sua deposição. Nesta hipótese, a linha de acção da Casa de Viseu, iniciada pelo Infante D. Henrique, concretizada por D. Manuel, seria essa - a da cruzada templária a oriente. Por outro lado, a linha da Casa de Coimbra, iniciada pelo Infante D. Pedro, seria (por hipótese aqui colocada) a oposta... seria a de uma expansão colonial e comercial a Ocidente. A Casa de Coimbra tem o seu principal protagonista em D. João II, e a prova objectiva do seu interesse a Ocidente será o Brasil marcado em Tordesilhas. Preterido D. Jorge a D. Manuel na sucessão de D. João II, a sua Casa de Coimbra vê-se forçada a mudar de nome para Aveiro, e os partidários desse projecto de D. João II, ao governarem a Índia, vão esquecendo o objectivo de cruzada. Finalmente, a Casa de Bragança aparecia na sombra, tal como em Alfarrobeira, claramente opositora de Coimbra, representaria essencialmente a oposição a qualquer iniciativa, manobrando nos bastidores da corte. Acabará tanto por convidar a entrada de Filipe II como ser catapultada para o derrube de Filipe IV.
A ideia de que o Infante D. Henrique estaria mais motivado pela cruzada, do que pelas descobertas, ficou mais consolidada naquele programa, pela questão levantada por José Hermano Saraiva.
- O outro detalhe, ocorreu poucas semanas depois. Tendo mencionado o antigo relógio nas Caldas da Rainha, vi outro programa de José Hermano Saraiva que invocava um ainda mais antigo relógio de Serpa, e apesar deste estar datado de 1440, creio que ele o dava como mais antigo. Apresentava ainda, como curiosidade do Museu de Serpa, um relógio de navegação que, ao seu estilo, avisava ser francês... como se avisasse que tal prodígio não era suposto constar das nossas navegações.

Por outro lado, relendo o texto, devo avisar que a minha suspeita da utilização de um sistema de coordenadas local, zenital, baseado nas direcções que partiam das rosas-dos-ventos, e outros centros, se revelou à época menos promissora do que aparentava... verdade seja dita que também não tive vontade de inspeccionar mais. Ou seja, na altura, pareceu-me estranho que se desenhassem cartas mais imprecisas nos anos seguintes às descobertas, para além de muitas marcações, que estavam claramente erradas. Poderia ser só para despiste, mas tal como virando o Reinel se descobre em África um contorno Mexicano, pareceu-me ser natural que os mapas tivessem outros segredos. A pista de Pedro Nunes seria fundada no modo mais prático de navegação, ou seja seguindo as direcções locais que convinham aos "mareantes" pela sua posição. Poderia ser que escondessem num contorno impreciso do continente europeu, um contorno preciso de outras paragens... Mas a inspecção disso não é fácil, porque não é possível saber o que pretendiam representar, nem há mapas suficientes para o confirmar.
Já coloquei aqui a análise da Carta do Atlântico Norte para dar uma ideia do tipo de coisas que se podem procurar, mas terá pouco valor objectivo... a menos que seja para rebater interpretações mais mirabolantes feitas com outros mapas, nomeadamente o de Piri Reis.

O globo de João de Lisboa (que nos serve aqui de logotipo) é um claro exemplo de uso de coordenadas polares - com um só pólo, o pólo norte:
e já aqui fiz a conversão para aparecer como um planisfério típico:
Para que se perceba o trabalho envolvido nestas coisas, tive que assinalar manualmente cada pontinho na carta, para depois programar automaticamente a conversão que se vê.

Se aceitarmos que se trata de um mapa de 1514 e não uma adição feita até 1560 ao seu Tratado (cf. Cortesão), e já apresentámos várias provas, dará uma ideia parcial do que se sabia 5 anos antes da circum-navegação de Magalhães.

Depois, é claro, estas coisas são esquecidas, e como sabemos que não temos capacidade para coisas complicadas, aparece, passados 134 anos, em 1648, um francês de nome Louis de Mayerene Turquet, com a mesma representação centrada no pólo norte, reclamando a sua autoria:
La Nouvelle maniere de representer le Globe terrestre
... inventée par Louis de Mayerene Turquet 
(1648)

Repare-se que muito provavelmente Turquet não sabia da existência do mapa de João de Lisboa, tal como hoje a maioria dos estudos em cartografia que vemos parecem ignorar olimpicamente a maioria dos mapas constantes na Portugallia Monumenta Cartographica, lançada há mais de 50 anos... enfim, também parece que está esgotada.

Segue o texto, que me recorda o também o dia em que o contador do Knol "decidiu parar", e a que se devem dar os devidos descontos de entusiasmo, de quem tinha acabado de cair "na real":





Encoberto

ou seja, "o Encoberto" é o oposto "ao Descoberto".
 
Colombo pôs a descoberto a América à Europa. É verdade!... Só que des-cobrir não tem o mesmo significado que lhe damos hoje. Quando Colombo chegou, foi por onde os portugueses tinham carreiras regulares... esse foi o perigo da viagem dele - chegar lá sem ser Descoberto no caminho pelos Portugueses! Não conseguiu... de tal forma a coisa estava bem controlada!
Tese de ALVOR SILVES - Parte 4 de 7
22 de Dezembro de 2009


Mapas - Sem erros, mas com segredos
Quando olhamos para a Carta Portulana de Pedro Reinel, de 1484-85, parece ter um mapa de África! Pois parece... mas Pedro Nunes avisa-nos que não é bem assim, e chega mesmo a dizer:

"O outro género de informações é dos que notaram algumas alturas. Mas isto somente fizeram, nos lugares que estavam num mesmo paralelo, e isto também aproveitava pouco. O terceiro genero é o dos mareantes: os quais diz que não sabiam mais que as distâncias dos lugares, que a eles lhes parecia estarem norte-sul donde partiam; e os que estavam leste-oeste sabiam muito malporque isto era outrossim muito incerto (...)" 
Pedro Nunes - Tratado em Defensam da Carta de Marear (1537) 
(publicado depois de Carlos V de Espanha mandar queimar todas as Cartas Náuticas)

Este texto de Pedro Nunes serviu-me para confirmar um ligeiro detalhe que já tinha previamente reparado na carta de Pedro Reinel... voltando-a na direcção leste-oeste e não norte-sul... ou seja, RODANDO-A, obtemos, um contorno que se assemelha à costa Mexicana... até mesmo na zona de latitude onde essa costa deveria aparecer. Assim:
 
Carta "Pedro Reinel me fez" (1484)
 
(i) Detalhe da mesma Carta, depois de RODAR;  (ii) Costa do México.
Mais uma coincidência!... Mesmo que Pedro Nunes diga para virar a carta? Mas, tem havido quem se apresse a denegrir a capacidade náutica portuguesa, e principalmente até alguns portugueses. Quanto maior a erudição, maior será a inquisidora convicção, e Cortesão foi vítima disso!... Ainda há semanas vi um elogio a um outro artigo dos anos 1970, onde se denegria acentuadamente a capacidade de marcar latitudes e longitudes... É claro que enquanto se pensar que o relógio da Igreja da N. Sr. Pópulo nas Caldas da Rainha é um artefacto decorativo, e que os primeiros relógios mecânicos são certamente coisa de "génios estrangeiros", estaremos bem no nosso caminho!

Há coisas que parecem estar mal no mapa... de facto, para ficar mesmo bem teria que se retirar a Península Ibérica, tirar o contorno de Tunis, etc... Mas depois, quem visse os mapas não iria estranhar não estar a Península Ibérica?

E, ainda, se repararmos, há até bandeiras - que delimitam bem a zona de validade do contorno! E não só, permitem ainda datação... a bandeira moura em Espanha permite datar o mapa como anterior a 1492 - seguramente, e até como anterior a 1485 - data da conquista de Marbella. A datação aceite, e que se mantém (apesar de tentativas nacionais em sentido oposto)... é a de 1484-85. Pois, a informação nos mapas não é apenas decorativa... ou fruto de erro:  
Há um detalhe, que justifica distorções, que só percebi com Pedro Nunes. As cartas usavam coordenadas zenitais, semi-polares e locais... o nome é grande, mas quem for entendido perceberá um pouco do que quero dizer. É algo que eu nunca tinha visto, e usará conceitos mais próprios do séc. XIX, quase XX, na questão da utilização de representação cartográfica seccional. Não posso explicar aqui - todo o Tratado de Defensam da Carta de Marear, serve esse propósito encoberto! É claro que Pedro Nunes tenta argumentar dizendo que a representação planar é pior do que esta, mas é claro que não é compreendido! Ele "não conseguirá"... pois Mercator é que fica com os louros! 
    - As rosas-do-vento servem de pólos, para zénites a descoberto, de onde saem meridianos locais!
    - Há outros centros que servem de pólos, para zénites a encoberto!

Assim, a informação nos mapas, não é apenas a que está a descoberto... 
... há tanto, ou muito mais que está encoberto,
e que foi tomado por erro - é isso que Pedro Nunes tenta explicar! 
É por isso que o Mapa de Cantino (1502) tem deformações e é menos fiável... era apenas uma cópia para Alberto Cantino, um espião a serviço do Duque de Ferrara (... mas que nos foi muito útil).

Como foi possível a Pedro Nunes passar informação, sob olhares minuciosos da Inquisição?
Primeiro, tem a protecção do esclarecido Infante D. Luís, irmão de D. João III, mas depois Pedro Nunes tem mesmo que sair da Corte e de Lisboa! Só regressa, é claro, já com a protecção de Dom Sebastião... e, já velho, morre "naturalmente", logo a seguir à partida de D. Sebastião para o "massacre de Alcazar".

- É assim que é a feita a História de Portugal, de coincidências!
Mas não é só a de Portugal... este mapa apareceu exactamente em 1960, nuns Arquivos da (... Guiné, desculpem-me, Guiene, Aquitânia, ou seja:) Gironde, em Bordéus - numa altura em que a França acabava as suas pretensões colonialistas (na Guiné, cf. notas do Visconde de Carreira, séc. XIX).

- Também há mapas na Torre do Tombo?...Sim, mas mais recentes... por exemplo (& aleluia) existe a Biblioteca Nacional Digital, ainda que incompleta, tem já muita coisa! Aí encontrei outra pérola, chamada Livro de Marinharia. É atribuído a João de Lisboa, a quem são reportadas viagens até 1506, e morte em 1525.


(i) Representação polar semi-clássica

 
Livro de Marinharia - João de Lisboa (morte: 1525)
Note-se que há um quadrante que é vazio, na parte superior... por isso há claras indicações para a união nos 270º restantes, e os nomes coincidem de ambos os lados (p.ex. Japão).

É já muito próximo do que conhecemos hoje?... Pois é!
Ora como o Japão só foi descoberto em 1543, qualquer erudito conclui, que ou foi um bom palpite, ou então que o problema é datação do mapa, ou do autor. Resta justificar tanta clareza em tanta coisa... que só ficou clara muito depois, resta justificar o espaço em branco de 90º, que só torna mais difícil executar o mapa. Vejamos... poderia ser para cortar e fazer um cone? É uma resposta, mas talvez também queira significar que ainda estavam por marcar no globo 1/4 do restante conhecimento, que já se tinha...

E qual era o conhecimento que já se tinha? Deixamos Pedro Nunes falar por nós, pois não saberíamos fazer melhor. Começa logo a obra assim:
Eu fiz senhor tempo ha um pequeno tratado sobre certas dúvidas que trouxe Martim Afonso de Sousa, quando veio do Brasil. (...) Mas queira Deus suceder-me isto de sorte, que não seja necessário outro comento a este comento. Não já para Vossa Alteza [Infante Luís] a quem é tudo claro e tão notório (...)
Não há dúvida que as navegações deste reino, de 100 anos a esta parte são as maiores, mais maravilhosas, de mais altas e discretas conjecturas que as de nenhuma outra gente no mundo. 
Os Portugueses ousaram cometer o grande mar Oceano. Entraram por ele sem nenhum receio. Descobriram novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos e o que mais é novo céu e novas estrelas. 
E perderam-lhe tanto o medo que nem há grande quentura da torrada zona, nem o descompassado frio da extrema parte do sul, com que os antigos escritores nos ameaçavam lhes poder estorvar, que, perdendo a estrela norte e tornando-a a cobrar, descobrindo e passando o temeroso Cabo da Boa Esperança, o mar de Ethiopia, de Arabia, de Persia, poderam chegar à India. 
Passaram o rio Ganges tão nomeado, a grande Trapobana, e as ilhas mais orientais. Tiraram-nos muitas ignorâncias e amostraram-nos ser a terra maior que o mar, e haver aí Antípodas, que até os Santos duvidaram, e não há região, que nem por quente nem por fria se deixe de habitar. E que num mesmo clima e igual distância da equinocial: há homens brancos e pretos e de muitas diferentes qualidades. 
E fizeram o mar tão chão que não há hoje quem ouse dizer que achasse novamente alguma pequena ilha, alguns baixos, ou se quer algum penedo, que por nossas navegações não seja já descoberto. Ora manifesto é que estes descobrimentos de coisas, não se fizeram indo acertar, mas partiam os nossos mareantes muito ensinados e providos de instrumentos e regras de astrologia e geometria, que são coisas que os cosmógrafos hão-de andar apercebidos, segundo diz Ptolomeu no primeiro livro da sua Geografia.
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(in Tratado da Defensam da Carta de Marear, 1537)...
para detalhes, transcrição da Revista de Engenharia Militar -1911

Fiz alguns destaques... para que se note mesmo!

(i) Passados muitos anos... "Deus deu-nos a sorte" de ter resistido até hoje! Mesmo assim note-se que Pedro Nunes está sob controlo da Inquisição. O Infante Luís só o protege até onde pode, e nem o Rei Dom João III terá completo controlo sobre o problema... do outro lado está Carlos V e não só!

(ii) Dificilmente se poderá dizer que há um descompassado frio na extrema parte sul de África, mas o mesmo não se poderá dizer da extrema parte sul da América... onde está o Cabo Horn.

(iii) A Trapobana é associada ao Ceilão, a tal ilha que tem Colombo como capital... Será que, quando se nomeia a Índia, se pode falar numa grande Trapobana como sendo o Ceilão... Madagáscar não é maior? Não será mais adequado começar a pensar que Trapobana foi, isso sim, a Austrália?

(iv) Depois, Pedro Nunes, em 1537, reclama um descobrimento absoluto... de toda a Terra, antes desconhecida. Estamos em 1537... e de facto, não é fácil encontrar "grandes descobridores" nomeados e honrados por isso, no Séc. XVI. A questão colocou-se só depois... Depois, tudo o que não constava, explicitamente declarado, era considerado "encoberto", e assim poderia ser "descoberto". Demorou algum tempo, de facto! Pelo menos, até Cook, final do séc. XVIII, e ainda assim temos que excluir as viagens polares, séc. XIX. Demorou a realizar em 300 anos, o que de acordo com Pedro Nunes (eu nem me atreveria a tanto...), tinha sido feito pelos portugueses em 100 anos.
Os ingleses mantiveram parte do acordo de cavaleiros, mas não na memória, só nas terras que consideraram pertencer-lhes. Os dinamarqueses só reclamaram a Gronelândia, que por múltiplas razões lhes deveria pertencer! Quem saberá a estória? Todos os intervenientes... quiçá, excepto nós!

(v) Finalmente, retira aquela ideia propagandeada de que se descobriam coisas acidentalmente.
Não houve nada acidental!

Pelos vistos, estas afirmações não chegam!
Foi publicado oficialmente numa Revista Militar de 1911... estamos já na altura da República!
Há, de facto, outras maneiras, de manter uma História submersa... e acontece ao confiar numa divulgação local e muito controlada.


(ii) Representação da América Central
Ainda, no Livro de Marinharia, encontramos outra pérola. Já é tardia... mas ainda está lá! 
Cabo "Sagre" no Panamá (no quadrado verde),

um detalhe do Mapa maior:
Livro de Marinharia - mapa da América Central (< 1525)

Antes de comentar a questão do Cabo Sagres...
Repare-se que o mapa é antigo, ao ponto de colocar bandeiras, assinalando possessões nacionais.... e em castelos, onde?
- Na Colômbia e no Perú, junto aos Incas!
Coisa estranha??
Não... basta lembrar o Castelo de S. Jorge da Mina.
Recapitulemos:
(i) ... de onde nos chegava o ouro? ... do Benim, do Congo?
(ii) Sim, e onde eram essas terras?
Houve ouro vindo de lá, depois de lá chegarem os espanhóis, por exemplo, com D. João III?
De onde veio o declínio do Império Português?

Ou, será que, com o Tratado de Tordesilhas, tudo acabou... ou melhor, foi acabando. Houve uma transição até 1520... ano em que subitamente os Espanhóis estão preparados para tomar conta das coisas. Dá que pensar?

Então, regressemos ao Cabo Sagres!- Há um Cabo Sagres em Portugal, todos o conhecemos!- Havia um Cabo Sagres em África, menos o sabem, mas era na Guiné-Conacri, e consta noutros mapas oficiais, isso é reconhecido!- Agora há também um Cabo Sagres no Panamá... e não adiantará dizer que é Sangre, ou semelhante despiste, pois foi renomeado "Graças a Dios"... é claro, assim notou-se menos!

- O que é interessante?
(i) os cabos americano e africano estão ~ sobre o mesmo paralelo;
(ii) os cabos português e africano estão ~ sobre o mesmo meridiano;
(iii) aí terminam as "navegações" atribuídas ao Infante D. Henrique.

- Há ainda outros dados, mas ficam para mais tarde, se necessário!
Detalhe: Sagres - Sacro pagão... mas também SACRE >> ACRE (Terra Santa), ACRA (África).

 
Talant de bien faire
O Infante D. Henrique usava esta frase como divisa (antes de Tanger, terá usado IDA... iniciais de Infante Dom Anrique, pela sua vontade de conquistar - Tanger, ou Jerusalém?). Frei Luís de Sousa (séc. XVII) classificou a divisa como "duas pirâmides dos antigos reis do Egipto", e encontram-se no livro perdido de Zurara (só recuperado no séc. XIX, em França...):


Divisa do Infante D. Henrique

Talant de bien faire, significaria vontade de bem fazer, mas o "e" falta em talent, pois não se trataria de talento, nem de vontade.
Há de facto dois hemisférios... poderá ver-se uma pirâmide em cada um deles, e até no topo há quem veja um "olho" na pirâmide oriental - onde é que eu já vi este símbolo (... sem ser na nota de 1 dólar)?
Na pirâmide ocidental, é claro, o "olho" descai para Oriente. E depois, vamos brincar um pouco aos anagramas:
TALANT >>ATLANT
FAI'RE >>AFRI'E
Nada mal? Num hemisfério, uma pirâmide atlântica, no outro uma africana.
Mas, para Henrique, o BIEN, o Bem, é claro... era pelo lado Oriental, pelo lado da Cruzada.

- Ao contrário, o irmão Infante Dom Pedro, deixou uma Balança, uma doce Lira, conforme designa Camões, equilibrada... e um desejo - DÉSIR... e depois surgirão outros, que assim foram "o Desejado"!

- Também D. João II procura o equilíbrio, de um lado, para equilibrar a balança está o seu sangue de Pelicano, que retira do corpo, para alimentar os seus filhos - o povo! Do outro lado, não está nada... deveria de estar qualquer coisa - e passa por ser um Camaroeiro, mas nada está! Nem precisará estar, a balança pende naturalmente para as casas Viseu-Bragança, o lado Coimbra-Aveiro vai pagar sempre por isso!

Como vimos, e note-se bem - isto não é uma questão de herança sanguínea, é uma questão de herança cultural (e de medo)! O Infante D. Luís ou D. Sebastião pertencem claramente à Casa Viseu, e por boa vontade, tentam colocar-se do outro lado da balança... mas só conseguem passar informação, nada mais! Da mesma forma, e não querendo falar desse período mais confuso (Séc. XIX), é perfeitamente verosímil que o rei D. Carlos, dada a proximidade com Eduardo VII de Inglaterra, tivesse perfeitamente compreendido as razões do acordo do mapa-cor-de-rosa... ainda que assim, como poderia ele revelar à nação todo esse encobrimento anterior?


Colômbia
A Colômbia tem uma particularidade interessante... Chegou a ser pensada para a travessia Atlântica-Pacífica, em vez do Canal do Panamá....Porquê? - porque tem no seu Rio Atrato, um rio muito navegável.
No final desse Rio Atrato, encontramos uma cidade, chamada Quibdó, e outra mais pequena chamada "IstMina"... estou a fazer ênfase no "Mina", mas seria possível também fazer no "Istmo" (acompanhando o Rio S. Juan até à foz em Buenaventura).

Mas, vejam-se as coincidências... e estão longe de acabar aqui - há um navegador português chamado Pêro Escobar (há muita gente em Portugal com o nome Escobar?... e na Colômbia?), que está associado às navegações da Mina, e à descoberta de São Tomé, sob o serviço de Fernão Gomes.
Ora esse serviço requeria efectivamente muita mão de obra, de origem africana.
Para trabalhar onde?
Qual é o país do continente americano hispânico que tem mais população de origem africana - a Colômbia (e parte da Venezuela), de longe! Nos restantes países dificilmente sabemos da sua presença.
- O que se terá passado?
Essa mão de obra seria usada no serviço da Mina, e era tanta, que não pode regressar ou sair da Colômbia, fica lá! Depois, houve sempre uma separação entre Portugal e Espanha, e de facto os escravos negros só muito pontualmente foram usados pelos espanhóis noutros locais... falta explicar algumas Antilhas, mas isso é outra estória, ainda anterior.


Os paralelos como referência
O que serve de referência para relatar Descobertas/Encobertas?...Normalmente, nas descrições de Zurara e de Duarte Pacheco Pereira, são os paralelos.Ou seja, a cada descrição em África, corresponde uma descrição na América, mas pode haver sobreposição.

Os termos "mouro", ou "negro" pouco significam... em Portugal era frequente dizer-se, indistintamente, que coisas anteriores à era cristã eram "mouras", sem se referirem a "sarracenos".Da mesma forma "negro" pode ser visto como alguém que não foi iluminado pela fé de Deus, não é tanto negro de cor, mas mais negro de alma... ou seja, poderá não ter religião organizada.Assim, é possível seguir as descrições dos autores, sem preconceitos, ou pré-julgamentos, de localização geográfica. E depois, bate tudo certo! Ou seja, percebe-se o que os autores nos queriam transmitir.

A coisa está de tal forma intrincada, que D. Afonso V achou bem oferecer uma cópia das Crónicas da Guiné de Zurara, ao Rei de Nápoles, seu familiar. Duarte Pacheco Pereira, é mais explícito... mas igualmente intrincado, já que a certa altura é mais difícil perceber quando fala de África ou da América. - Usa uma numeração dos Itens para auxílio...

Depois, é claro, alguns nomes vão mudando... uma designação para Zurara, não é necessariamente a mesma de Pacheco Pereira, pois o nome já é outro. É preciso abstrairmo-nos de preconceitos, pegar num mapa, e ir descendo a Costa Americana, de acordo com as latitudes.Mas, não é assim tão difícil, e é surpreendente!

O problema do Bojador
Ou seja, é mais ou menos fácil perceber que as coisas começam depois de Gil Eanes ter coordenado uma grande expedição - exploratória da América - até 1434, que deve ter demorado quase 12 anos... pelo menos é disso que se queixa Henrique!

Quando os portugueses perceberam que passar o continente não era possível, dentro de latitudes razoáveis, o Infante Dom Henrique terá tido luz verde para avançar com o projecto Oriental, por parte do seu irmão, o Rei D. Duarte.

O problema, o "cabo", Bojador está dobrado! ... ou, dito doutra forma, que sentido faria parar as navegações e atacar Tanger de seguida?

Entre 1435 e 1440 não aparecem outros registos de navegações, é tempo de cruzadas, e do desastre de Tanger, em 1437.
- Apesar de Tanger ser costeira, a invasão vai ser por terra, partindo de Ceuta. Porquê?
Que eu saiba, ninguém tem justificação para esta estratégia do Infante Dom Henrique...Ora, no sentido de ser preparatória à Cruzada (... à IDA), contornando África, ele usa Tanger como simulação para mostrar que será perfeitamente possível, a partir de um ponto terrestre marchar por um terreno difícil, e atingir Jerusalém. Precisa do apoio dos aliados... e assim julgará convencê-los.

Não consegue, é derrotado!... Tem uma escapatória, o apoio por mar do irmão Fernando. É esse que ele escolhe para o substituir como refém, é esse que será o Infante Santo para manter Ceuta.

Há um claro trauma nacional, durante o cativeiro do Infante Santo, e faz-se ainda uma tentativa armada de resgate... mas sem sucesso. Como D. Duarte morre e há um problema na regência, pela menoridade de D. Afonso IV, a mãe aragonesa é rapidamente exilada - teria que ser, havia demasiados segredos em jogo, para qualquer conhecimento de Aragão! Nesse ponto, os irmãos Henrique e Pedro estão de acordo!


Infante Dom Pedro
- O Infante Dom Pedro, mais velho, assume a regência em 1439, e é o primeiro período de ouro, que marcará o que se passará de seguida. Haverá colaboração com Henrique, nesta nova empresa.
É o primeiro período de ouro - literalmente!
É o tempo das caravelas... rápidas na ligação com a América.
Se Gil Eanes se teria preocupado com a ligação ocidental até 1434, sem entrar no continente, navegando pela costa, a partir daí vão começar os contactos.

Logo de início, por Gil Eanes e Afonso Baldaia (1440) - os registos começam aí com Zurara (que escreve "sob orientação científica do Infante Dom Henrique", já depois de Pedro morrer).
Depois, é uma sucessão de nomes em África, que nenhuma importância aí têm, mas que se percebe terem importância - à mesma latitude - na América, por exemplo - o Rio do Ouro (que quase nem é rio, em África).

A costa vai descendo, Arguim, Tider, Ergim, invocando povos em ilhas que não passam de bancos de areia... em África. Do outro lado, na América, é só difícil saber exactamente que ilhas se tratam, em Zurara... já com Pacheco Pereira, é mais fácil.

É aqui que começa a atribuir a chegada do ouro aos "mercadores do deserto"... é a necessidade de fazer uma Feitoria em Arguim. É tempo dos Azenagues! Mas... onde se passará tudo isto? Porque não, do outro lado, no mesmo paralelo, no México, com os Aztecas?

O Infante Dom Pedro pode ter sido um excelente governante (a nível interno e externo), mas também beneficiou desta pequena dádiva de ouro, caída dos céus!

Mas toda essa estória fica para depois... Seguimos usando a descrição de Duarte Pacheco Pereira.

Cabo Verde
Chega-se a Cabo Verde. E a que corresponde o Cabo Verde?
Nada mais nada menos, do que à grande península do Iucatão...Porquê?... Porque a Costa Africana segue, mas à mesma latitude, a Americana não!
Qual é a brilhante ideia?
É que as ilhas de Cabo Verde irão ser associadas a Grandes Antilhas.
Assim, temos seguramente São Tiago = Cuba, depois as restantes, também não é difícil...
É por isso que o Cabo Verde, aparece como um grande Cabo deformado nos mapas... por isso aparece uma rosa-dos-ventos, o zénite, para justificar a distorção polar... e tantas outras coisas, por exemplo, é aqui que se faz a distinção entre Etiópia Superior e Etiópia Inferior... e depois a outra, a Etiópia Sob-Egipto, a que ele considera africana.
- Onde seguimos?
O próximo ponto possível, compatível com outras latitudes no continente Africano é, sem dúvida, localizado nas Honduras, na "Etiópia Inferior". Teremos aí outro ponto de referência.

Nicarágua
O nome mais importante que se segue, é o Rio Canágua... que depois é renomeado convenientemente:

Canágua >> Çanaga >> Senegal
conforme vai constando nas cartas!Do outro lado, o que temos?
Temos, exactamente a Nicarágua... e vejamos, a coisa não fica por aqui!
Como nomeia um chefe local? Trata-se do chefe Nicarao... Nicarao+Canágua ~ Nicarágua estamos ou não próximo de Nicarágua, cuja capital é Manágua? Sim!

Podemos ter mais umas coincidências... certíssimo!!
Mas então olhemos a descrição de um grande lago entrando no Canágua:
Temos uma lagoa com "32 por 12 léguas", falamos de 188Km por 72Km... dimensões exactas para o Lago da Nicarágua....
Não encontramos nada semelhante a isso no Rio Senegal! O lago Guier será de facto uma lagoa comparado com isto!
Convém ainda notar que a resistência à colonização espanhola foi muito prolongada, na zona da Nicarágua, e por isso não terá sido possível uma imediata renomeação...

Panamá e Sagres
Depois, de facto, vamos encontrar uma Serra Leoa... que será Leoa, no correspondente Panamá, pois impedirá a progressão para Ocidente.É a grande cadeia montanhosa do Panamá que liga a América do Sul à do Norte.Mais uma vez a Costa volta a subir, e o contorno americano não acompanha o africano...É tempo dos contornos ocidentais darem lugar aos orientais...

Resumo do paralelismo nas descrições de Duarte Pacheco e Zurara.
(nova inclusão: a 27/12/2009)
É aqui que pode recomeçar o projecto Oriental. É aqui que ficará o Cabo Sagres, conforme referido por Duarte Pacheco Pereira. É aqui que termina a colaboração do Infante Dom Henrique com o irmão Dom Pedro.

Segue-se a luta interna... com um Duque de Bragança a influenciar o jovem Afonso IV.É aqui que esse jovem rei decide humilhar o tio, pai da sua mulher. É tempo de Alfarrobeira, é tempo do Infante Dom Pedro morrer, para dar lugar às novas conquistas para a Cruzada, contra os infiéis. É tempo desse jovem rei conquistar praças africanas, até que o Infante Dom Henrique morre, e há uma nova esperança desejada - chama-se D. João II, acima de tudo, neto de Dom Pedro. Do outro lado, há uma Spera que se acentua, especialmente depois da conquista de Arzila e de Tanger, no tal Dia de São Bartolomeu.


Encoberto e Desejado
O grande feito ocidental foi encoberto e será tempo de esperar pelo primeiro "Desejado", cumprindo o Désir de Pedro.
- Do Pedro que o povo canta e que coloca uma fonte com o seu nome em Coimbra, pelos amores que lhe tem, conforme dirá Camões, que a isso junta ninfas do Mondego;
- Do Pedro, avô de Joane, que Gil Vicente coloca contra o Sapateiro da Candosa, contra o Rachador de Alverca - ou melhor, Alfarrobeira.

É o Pedro, desejado, do sonho ocidental, do sonho americano, colonizador...
Será esse Pedro que o povo amou ao ponto de nos deixar uma infinita melancolia de séculos. Por ser tão amado poderá aparecer, até como um Gigante Adamastor em D. João II, mas também como um Trágico Massacrado em D. Sebastião. Num ponto são comuns, os desejados desaparecem... até não mais aparecerem!

Um Désir, que afinal sempre esperámos depois do séc. XVI, e que o Padre António Vieira tornou claro não ser representado por D. João IV... (... a ser alguém, seria muito mais a sua mulher, a Rainha Luísa de Guzman, descendente de Ana de la Cerda e do português Rui Gomes da Silva "o Rei Gomez", príncipes de Eboli... mas isso é outra estória!)

Mas "o Encoberto" é também o contrário "do Descoberto", é a mensagem que fica presa a um nevoeiro, cada vez mais espesso, onde só nos chegam pequenos sinais... suficientes para uma eterna inquietação, de fantasmas que sepultámos mal, e que pedem que lhes seja honrada a memória!

Há só uma História? Ou há a Estória que deixa registos, que apaga registos, e que às vezes deixa pontas soltas... até que apareça alguém a assinalar, e depois se volte tudo a colar, durante mais alguns séculos. Tem sido assim! Neste momento, o que é preciso é rever o inacreditável, e que haja então quem invente outra Estória, melhor que esta, que cole todas coincidências de forma mais verosímel.




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publicado às 04:34

Depois do "Colombo", coloco aqui o quarto texto da série "Tese de Alvor-Silves", sob o título "Encoberto", conforme foi escrito há três anos. Creio que esta foi a primeira versão lançada em 22/12/2009, mas depois fiz algumas alterações e acabei por concatená-lo com o texto seguinte (denominado "Adamastor"), para suprimir as muitas opinações fruto do estilo que ia assumindo. Com a supressão do Knol, muitas das imagens já nem tinham ligação, e tive que recuperá-las em ficheiros gravados. Ao procurar nos ficheiros antigos, fui recuperando muitas coisas que escrevi e que deixei para trás. A mais interessante é a do mapa de Jorge Aguiar, que vou aqui colocar em breve.

Neste texto há dois detalhes sem grande importância, mas que quero referir, pois envolvem o programa de José Hermano Saraiva, que ainda passava na RTP-2. Foi nesta altura que o vi colocar a interrogação sobre a ideia do Infante D. Henrique no desembarque em Ceuta para um ataque terrestre a Tanger. Essa lenta progressão terrestre tinha sido a principal causa do desastre militar, que veio a sacrificar o Infante D. Fernando, que era quem comandava o ataque naval e não estava em perigo...
- Nessa altura estava bastante convencido (como é visível) de uma oposição política sobre a direcção das descobertas... de um lado o Ocidente oferecia-se a uma colonização, aparentemente mais pacífica, e pelo lado Oriental esperavam-se sangrentas batalhas, para a reconquista de Jerusalém (projecto antigo dos Templários, herdado na Ordem de Cristo). Este ideal da reconquista de Jerusalém prosseguia da Idade Média, passados vários séculos sobre a recuperação liderada por Saladino. Feito o Índico um mar cristão, abriria uma frente de ataque - pela rectaguarda, para entrada pelo Mar Vermelho e reconquista da Terra Santa. Tal plano seria seguido por D. Manuel, e executado admiravelmente por Afonso de Albuquerque, até à sua deposição. Nesta hipótese, a linha de acção da Casa de Viseu, iniciada pelo Infante D. Henrique, concretizada por D. Manuel, seria essa - a da cruzada templária a oriente. Por outro lado, a linha da Casa de Coimbra, iniciada pelo Infante D. Pedro, seria (por hipótese aqui colocada) a oposta... seria a de uma expansão colonial e comercial a Ocidente. A Casa de Coimbra tem o seu principal protagonista em D. João II, e a prova objectiva do seu interesse a Ocidente será o Brasil marcado em Tordesilhas. Preterido D. Jorge a D. Manuel na sucessão de D. João II, a sua Casa de Coimbra vê-se forçada a mudar de nome para Aveiro, e os partidários desse projecto de D. João II, ao governarem a Índia, vão esquecendo o objectivo de cruzada. Finalmente, a Casa de Bragança aparecia na sombra, tal como em Alfarrobeira, claramente opositora de Coimbra, representaria essencialmente a oposição a qualquer iniciativa, manobrando nos bastidores da corte. Acabará tanto por convidar a entrada de Filipe II como ser catapultada para o derrube de Filipe IV.
A ideia de que o Infante D. Henrique estaria mais motivado pela cruzada, do que pelas descobertas, ficou mais consolidada naquele programa, pela questão levantada por José Hermano Saraiva.
- O outro detalhe, ocorreu poucas semanas depois. Tendo mencionado o antigo relógio nas Caldas da Rainha, vi outro programa de José Hermano Saraiva que invocava um ainda mais antigo relógio de Serpa, e apesar deste estar datado de 1440, creio que ele o dava como mais antigo. Apresentava ainda, como curiosidade do Museu de Serpa, um relógio de navegação que, ao seu estilo, avisava ser francês... como se avisasse que tal prodígio não era suposto constar das nossas navegações.

Por outro lado, relendo o texto, devo avisar que a minha suspeita da utilização de um sistema de coordenadas local, zenital, baseado nas direcções que partiam das rosas-dos-ventos, e outros centros, se revelou à época menos promissora do que aparentava... verdade seja dita que também não tive vontade de inspeccionar mais. Ou seja, na altura, pareceu-me estranho que se desenhassem cartas mais imprecisas nos anos seguintes às descobertas, para além de muitas marcações, que estavam claramente erradas. Poderia ser só para despiste, mas tal como virando o Reinel se descobre em África um contorno Mexicano, pareceu-me ser natural que os mapas tivessem outros segredos. A pista de Pedro Nunes seria fundada no modo mais prático de navegação, ou seja seguindo as direcções locais que convinham aos "mareantes" pela sua posição. Poderia ser que escondessem num contorno impreciso do continente europeu, um contorno preciso de outras paragens... Mas a inspecção disso não é fácil, porque não é possível saber o que pretendiam representar, nem há mapas suficientes para o confirmar.
Já coloquei aqui a análise da Carta do Atlântico Norte para dar uma ideia do tipo de coisas que se podem procurar, mas terá pouco valor objectivo... a menos que seja para rebater interpretações mais mirabolantes feitas com outros mapas, nomeadamente o de Piri Reis.

O globo de João de Lisboa (que nos serve aqui de logotipo) é um claro exemplo de uso de coordenadas polares - com um só pólo, o pólo norte:
e já aqui fiz a conversão para aparecer como um planisfério típico:
Para que se perceba o trabalho envolvido nestas coisas, tive que assinalar manualmente cada pontinho na carta, para depois programar automaticamente a conversão que se vê.

Se aceitarmos que se trata de um mapa de 1514 e não uma adição feita até 1560 ao seu Tratado (cf. Cortesão), e já apresentámos várias provas, dará uma ideia parcial do que se sabia 5 anos antes da circum-navegação de Magalhães.

Depois, é claro, estas coisas são esquecidas, e como sabemos que não temos capacidade para coisas complicadas, aparece, passados 134 anos, em 1648, um francês de nome Louis de Mayerene Turquet, com a mesma representação centrada no pólo norte, reclamando a sua autoria:
La Nouvelle maniere de representer le Globe terrestre
... inventée par Louis de Mayerene Turquet 
(1648)

Repare-se que muito provavelmente Turquet não sabia da existência do mapa de João de Lisboa, tal como hoje a maioria dos estudos em cartografia que vemos parecem ignorar olimpicamente a maioria dos mapas constantes na Portugallia Monumenta Cartographica, lançada há mais de 50 anos... enfim, também parece que está esgotada.

Segue o texto, que me recorda o também o dia em que o contador do Knol "decidiu parar", e a que se devem dar os devidos descontos de entusiasmo, de quem tinha acabado de cair "na real":





Encoberto

ou seja, "o Encoberto" é o oposto "ao Descoberto".
 
Colombo pôs a descoberto a América à Europa. É verdade!... Só que des-cobrir não tem o mesmo significado que lhe damos hoje. Quando Colombo chegou, foi por onde os portugueses tinham carreiras regulares... esse foi o perigo da viagem dele - chegar lá sem ser Descoberto no caminho pelos Portugueses! Não conseguiu... de tal forma a coisa estava bem controlada!
Tese de ALVOR SILVES - Parte 4 de 7
22 de Dezembro de 2009


Mapas - Sem erros, mas com segredos
Quando olhamos para a Carta Portulana de Pedro Reinel, de 1484-85, parece ter um mapa de África! Pois parece... mas Pedro Nunes avisa-nos que não é bem assim, e chega mesmo a dizer:

"O outro género de informações é dos que notaram algumas alturas. Mas isto somente fizeram, nos lugares que estavam num mesmo paralelo, e isto também aproveitava pouco. O terceiro genero é o dos mareantes: os quais diz que não sabiam mais que as distâncias dos lugares, que a eles lhes parecia estarem norte-sul donde partiam; e os que estavam leste-oeste sabiam muito malporque isto era outrossim muito incerto (...)" 
Pedro Nunes - Tratado em Defensam da Carta de Marear (1537) 
(publicado depois de Carlos V de Espanha mandar queimar todas as Cartas Náuticas)

Este texto de Pedro Nunes serviu-me para confirmar um ligeiro detalhe que já tinha previamente reparado na carta de Pedro Reinel... voltando-a na direcção leste-oeste e não norte-sul... ou seja, RODANDO-A, obtemos, um contorno que se assemelha à costa Mexicana... até mesmo na zona de latitude onde essa costa deveria aparecer. Assim:
Carta "Pedro Reinel me fez" (1484)
 
(i) Detalhe da mesma Carta, depois de RODAR;  (ii) Costa do México.
Mais uma coincidência!... Mesmo que Pedro Nunes diga para virar a carta? Mas, tem havido quem se apresse a denegrir a capacidade náutica portuguesa, e principalmente até alguns portugueses. Quanto maior a erudição, maior será a inquisidora convicção, e Cortesão foi vítima disso!... Ainda há semanas vi um elogio a um outro artigo dos anos 1970, onde se denegria acentuadamente a capacidade de marcar latitudes e longitudes... É claro que enquanto se pensar que o relógio da Igreja da N. Sr. Pópulo nas Caldas da Rainha é um artefacto decorativo, e que os primeiros relógios mecânicos são certamente coisa de "génios estrangeiros", estaremos bem no nosso caminho!

Há coisas que parecem estar mal no mapa... de facto, para ficar mesmo bem teria que se retirar a Península Ibérica, tirar o contorno de Tunis, etc... Mas depois, quem visse os mapas não iria estranhar não estar a Península Ibérica?

E, ainda, se repararmos, há até bandeiras - que delimitam bem a zona de validade do contorno! E não só, permitem ainda datação... a bandeira moura em Espanha permite datar o mapa como anterior a 1492 - seguramente, e até como anterior a 1485 - data da conquista de Marbella. A datação aceite, e que se mantém (apesar de tentativas nacionais em sentido oposto)... é a de 1484-85. Pois, a informação nos mapas não é apenas decorativa... ou fruto de erro:  
Há um detalhe, que justifica distorções, que só percebi com Pedro Nunes. As cartas usavam coordenadas zenitais, semi-polares e locais... o nome é grande, mas quem for entendido perceberá um pouco do que quero dizer. É algo que eu nunca tinha visto, e usará conceitos mais próprios do séc. XIX, quase XX, na questão da utilização de representação cartográfica seccional. Não posso explicar aqui - todo o Tratado de Defensam da Carta de Marear, serve esse propósito encoberto! É claro que Pedro Nunes tenta argumentar dizendo que a representação planar é pior do que esta, mas é claro que não é compreendido! Ele "não conseguirá"... pois Mercator é que fica com os louros! 
    - As rosas-do-vento servem de pólos, para zénites a descoberto, de onde saem meridianos locais!
    - Há outros centros que servem de pólos, para zénites a encoberto!

Assim, a informação nos mapas, não é apenas a que está a descoberto... 
... há tanto, ou muito mais que está encoberto,
e que foi tomado por erro - é isso que Pedro Nunes tenta explicar! 
É por isso que o Mapa de Cantino (1502) tem deformações e é menos fiável... era apenas uma cópia para Alberto Cantino, um espião a serviço do Duque de Ferrara (... mas que nos foi muito útil).

Como foi possível a Pedro Nunes passar informação, sob olhares minuciosos da Inquisição?
Primeiro, tem a protecção do esclarecido Infante D. Luís, irmão de D. João III, mas depois Pedro Nunes tem mesmo que sair da Corte e de Lisboa! Só regressa, é claro, já com a protecção de Dom Sebastião... e, já velho, morre "naturalmente", logo a seguir à partida de D. Sebastião para o "massacre de Alcazar".

- É assim que é a feita a História de Portugal, de coincidências!
Mas não é só a de Portugal... este mapa apareceu exactamente em 1960, nuns Arquivos da (... Guiné, desculpem-me, Guiene, Aquitânia, ou seja:) Gironde, em Bordéus - numa altura em que a França acabava as suas pretensões colonialistas (na Guiné, cf. notas do Visconde de Carreira, séc. XIX).

- Também há mapas na Torre do Tombo?...Sim, mas mais recentes... por exemplo (& aleluia) existe a Biblioteca Nacional Digital, ainda que incompleta, tem já muita coisa! Aí encontrei outra pérola, chamada Livro de Marinharia. É atribuído a João de Lisboa, a quem são reportadas viagens até 1506, e morte em 1525.


(i) Representação polar semi-clássica

 
Livro de Marinharia - João de Lisboa (morte: 1525)
Note-se que há um quadrante que é vazio, na parte superior... por isso há claras indicações para a união nos 270º restantes, e os nomes coincidem de ambos os lados (p.ex. Japão).

É já muito próximo do que conhecemos hoje?... Pois é!
Ora como o Japão só foi descoberto em 1543, qualquer erudito conclui, que ou foi um bom palpite, ou então que o problema é datação do mapa, ou do autor. Resta justificar tanta clareza em tanta coisa... que só ficou clara muito depois, resta justificar o espaço em branco de 90º, que só torna mais difícil executar o mapa. Vejamos... poderia ser para cortar e fazer um cone? É uma resposta, mas talvez também queira significar que ainda estavam por marcar no globo 1/4 do restante conhecimento, que já se tinha...

E qual era o conhecimento que já se tinha? Deixamos Pedro Nunes falar por nós, pois não saberíamos fazer melhor. Começa logo a obra assim:
Eu fiz senhor tempo ha um pequeno tratado sobre certas dúvidas que trouxe Martim Afonso de Sousa, quando veio do Brasil. (...) Mas queira Deus suceder-me isto de sorte, que não seja necessário outro comento a este comento. Não já para Vossa Alteza [Infante Luís] a quem é tudo claro e tão notório (...)
Não há dúvida que as navegações deste reino, de 100 anos a esta parte são as maiores, mais maravilhosas, de mais altas e discretas conjecturas que as de nenhuma outra gente no mundo. 
Os Portugueses ousaram cometer o grande mar Oceano. Entraram por ele sem nenhum receio. Descobriram novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos e o que mais é novo céu e novas estrelas. 
E perderam-lhe tanto o medo que nem há grande quentura da torrada zona, nem o descompassado frio da extrema parte do sul, com que os antigos escritores nos ameaçavam lhes poder estorvar, que, perdendo a estrela norte e tornando-a a cobrar, descobrindo e passando o temeroso Cabo da Boa Esperança, o mar de Ethiopia, de Arabia, de Persia, poderam chegar à India. 
Passaram o rio Ganges tão nomeado, a grande Trapobana, e as ilhas mais orientais. Tiraram-nos muitas ignorâncias e amostraram-nos ser a terra maior que o mar, e haver aí Antípodas, que até os Santos duvidaram, e não há região, que nem por quente nem por fria se deixe de habitar. E que num mesmo clima e igual distância da equinocial: há homens brancos e pretos e de muitas diferentes qualidades. 
E fizeram o mar tão chão que não há hoje quem ouse dizer que achasse novamente alguma pequena ilha, alguns baixos, ou se quer algum penedo, que por nossas navegações não seja já descoberto. Ora manifesto é que estes descobrimentos de coisas, não se fizeram indo acertar, mas partiam os nossos mareantes muito ensinados e providos de instrumentos e regras de astrologia e geometria, que são coisas que os cosmógrafos hão-de andar apercebidos, segundo diz Ptolomeu no primeiro livro da sua Geografia.
--------------

(in Tratado da Defensam da Carta de Marear, 1537)...
para detalhes, transcrição da Revista de Engenharia Militar -1911

Fiz alguns destaques... para que se note mesmo!

(i) Passados muitos anos... "Deus deu-nos a sorte" de ter resistido até hoje! Mesmo assim note-se que Pedro Nunes está sob controlo da Inquisição. O Infante Luís só o protege até onde pode, e nem o Rei Dom João III terá completo controlo sobre o problema... do outro lado está Carlos V e não só!

(ii) Dificilmente se poderá dizer que há um descompassado frio na extrema parte sul de África, mas o mesmo não se poderá dizer da extrema parte sul da América... onde está o Cabo Horn.

(iii) A Trapobana é associada ao Ceilão, a tal ilha que tem Colombo como capital... Será que, quando se nomeia a Índia, se pode falar numa grande Trapobana como sendo o Ceilão... Madagáscar não é maior? Não será mais adequado começar a pensar que Trapobana foi, isso sim, a Austrália?

(iv) Depois, Pedro Nunes, em 1537, reclama um descobrimento absoluto... de toda a Terra, antes desconhecida. Estamos em 1537... e de facto, não é fácil encontrar "grandes descobridores" nomeados e honrados por isso, no Séc. XVI. A questão colocou-se só depois... Depois, tudo o que não constava, explicitamente declarado, era considerado "encoberto", e assim poderia ser "descoberto". Demorou algum tempo, de facto! Pelo menos, até Cook, final do séc. XVIII, e ainda assim temos que excluir as viagens polares, séc. XIX. Demorou a realizar em 300 anos, o que de acordo com Pedro Nunes (eu nem me atreveria a tanto...), tinha sido feito pelos portugueses em 100 anos.
Os ingleses mantiveram parte do acordo de cavaleiros, mas não na memória, só nas terras que consideraram pertencer-lhes. Os dinamarqueses só reclamaram a Gronelândia, que por múltiplas razões lhes deveria pertencer! Quem saberá a estória? Todos os intervenientes... quiçá, excepto nós!

(v) Finalmente, retira aquela ideia propagandeada de que se descobriam coisas acidentalmente.
Não houve nada acidental!

Pelos vistos, estas afirmações não chegam!
Foi publicado oficialmente numa Revista Militar de 1911... estamos já na altura da República!
Há, de facto, outras maneiras, de manter uma História submersa... e acontece ao confiar numa divulgação local e muito controlada.


(ii) Representação da América Central
Ainda, no Livro de Marinharia, encontramos outra pérola. Já é tardia... mas ainda está lá! 
Cabo "Sagre" no Panamá (no quadrado verde),

um detalhe do Mapa maior:
Livro de Marinharia - mapa da América Central (< 1525)

Antes de comentar a questão do Cabo Sagres...
Repare-se que o mapa é antigo, ao ponto de colocar bandeiras, assinalando possessões nacionais.... e em castelos, onde?
- Na Colômbia e no Perú, junto aos Incas!
Coisa estranha??
Não... basta lembrar o Castelo de S. Jorge da Mina.
Recapitulemos:
(i) ... de onde nos chegava o ouro? ... do Benim, do Congo?
(ii) Sim, e onde eram essas terras?
Houve ouro vindo de lá, depois de lá chegarem os espanhóis, por exemplo, com D. João III?
De onde veio o declínio do Império Português?

Ou, será que, com o Tratado de Tordesilhas, tudo acabou... ou melhor, foi acabando. Houve uma transição até 1520... ano em que subitamente os Espanhóis estão preparados para tomar conta das coisas. Dá que pensar?

Então, regressemos ao Cabo Sagres!- Há um Cabo Sagres em Portugal, todos o conhecemos!- Havia um Cabo Sagres em África, menos o sabem, mas era na Guiné-Conacri, e consta noutros mapas oficiais, isso é reconhecido!- Agora há também um Cabo Sagres no Panamá... e não adiantará dizer que é Sangre, ou semelhante despiste, pois foi renomeado "Graças a Dios"... é claro, assim notou-se menos!

- O que é interessante?
(i) os cabos americano e africano estão ~ sobre o mesmo paralelo;
(ii) os cabos português e africano estão ~ sobre o mesmo meridiano;
(iii) aí terminam as "navegações" atribuídas ao Infante D. Henrique.

- Há ainda outros dados, mas ficam para mais tarde, se necessário!
Detalhe: Sagres - Sacro pagão... mas também SACRE >> ACRE (Terra Santa), ACRA (África).

 
Talant de bien faire
O Infante D. Henrique usava esta frase como divisa (antes de Tanger, terá usado IDA... iniciais de Infante Dom Anrique, pela sua vontade de conquistar - Tanger, ou Jerusalém?). Frei Luís de Sousa (séc. XVII) classificou a divisa como "duas pirâmides dos antigos reis do Egipto", e encontram-se no livro perdido de Zurara (só recuperado no séc. XIX, em França...):


Divisa do Infante D. Henrique

Talant de bien faire, significaria vontade de bem fazer, mas o "e" falta em talent, pois não se trataria de talento, nem de vontade.
Há de facto dois hemisférios... poderá ver-se uma pirâmide em cada um deles, e até no topo há quem veja um "olho" na pirâmide oriental - onde é que eu já vi este símbolo (... sem ser na nota de 1 dólar)?
Na pirâmide ocidental, é claro, o "olho" descai para Oriente. E depois, vamos brincar um pouco aos anagramas:
TALANT >>ATLANT
FAI'RE >>AFRI'E
Nada mal? Num hemisfério, uma pirâmide atlântica, no outro uma africana.
Mas, para Henrique, o BIEN, o Bem, é claro... era pelo lado Oriental, pelo lado da Cruzada.

- Ao contrário, o irmão Infante Dom Pedro, deixou uma Balança, uma doce Lira, conforme designa Camões, equilibrada... e um desejo - DÉSIR... e depois surgirão outros, que assim foram "o Desejado"!

- Também D. João II procura o equilíbrio, de um lado, para equilibrar a balança está o seu sangue de Pelicano, que retira do corpo, para alimentar os seus filhos - o povo! Do outro lado, não está nada... deveria de estar qualquer coisa - e passa por ser um Camaroeiro, mas nada está! Nem precisará estar, a balança pende naturalmente para as casas Viseu-Bragança, o lado Coimbra-Aveiro vai pagar sempre por isso!

Como vimos, e note-se bem - isto não é uma questão de herança sanguínea, é uma questão de herança cultural (e de medo)! O Infante D. Luís ou D. Sebastião pertencem claramente à Casa Viseu, e por boa vontade, tentam colocar-se do outro lado da balança... mas só conseguem passar informação, nada mais! Da mesma forma, e não querendo falar desse período mais confuso (Séc. XIX), é perfeitamente verosímil que o rei D. Carlos, dada a proximidade com Eduardo VII de Inglaterra, tivesse perfeitamente compreendido as razões do acordo do mapa-cor-de-rosa... ainda que assim, como poderia ele revelar à nação todo esse encobrimento anterior?


Colômbia
A Colômbia tem uma particularidade interessante... Chegou a ser pensada para a travessia Atlântica-Pacífica, em vez do Canal do Panamá....Porquê? - porque tem no seu Rio Atrato, um rio muito navegável.
No final desse Rio Atrato, encontramos uma cidade, chamada Quibdó, e outra mais pequena chamada "IstMina"... estou a fazer ênfase no "Mina", mas seria possível também fazer no "Istmo" (acompanhando o Rio S. Juan até à foz em Buenaventura).

Mas, vejam-se as coincidências... e estão longe de acabar aqui - há um navegador português chamado Pêro Escobar (há muita gente em Portugal com o nome Escobar?... e na Colômbia?), que está associado às navegações da Mina, e à descoberta de São Tomé, sob o serviço de Fernão Gomes.
Ora esse serviço requeria efectivamente muita mão de obra, de origem africana.
Para trabalhar onde?
Qual é o país do continente americano hispânico que tem mais população de origem africana - a Colômbia (e parte da Venezuela), de longe! Nos restantes países dificilmente sabemos da sua presença.
- O que se terá passado?
Essa mão de obra seria usada no serviço da Mina, e era tanta, que não pode regressar ou sair da Colômbia, fica lá! Depois, houve sempre uma separação entre Portugal e Espanha, e de facto os escravos negros só muito pontualmente foram usados pelos espanhóis noutros locais... falta explicar algumas Antilhas, mas isso é outra estória, ainda anterior.


Os paralelos como referência
O que serve de referência para relatar Descobertas/Encobertas?...Normalmente, nas descrições de Zurara e de Duarte Pacheco Pereira, são os paralelos.Ou seja, a cada descrição em África, corresponde uma descrição na América, mas pode haver sobreposição.

Os termos "mouro", ou "negro" pouco significam... em Portugal era frequente dizer-se, indistintamente, que coisas anteriores à era cristã eram "mouras", sem se referirem a "sarracenos".Da mesma forma "negro" pode ser visto como alguém que não foi iluminado pela fé de Deus, não é tanto negro de cor, mas mais negro de alma... ou seja, poderá não ter religião organizada.Assim, é possível seguir as descrições dos autores, sem preconceitos, ou pré-julgamentos, de localização geográfica. E depois, bate tudo certo! Ou seja, percebe-se o que os autores nos queriam transmitir.

A coisa está de tal forma intrincada, que D. Afonso V achou bem oferecer uma cópia das Crónicas da Guiné de Zurara, ao Rei de Nápoles, seu familiar. Duarte Pacheco Pereira, é mais explícito... mas igualmente intrincado, já que a certa altura é mais difícil perceber quando fala de África ou da América. - Usa uma numeração dos Itens para auxílio...

Depois, é claro, alguns nomes vão mudando... uma designação para Zurara, não é necessariamente a mesma de Pacheco Pereira, pois o nome já é outro. É preciso abstrairmo-nos de preconceitos, pegar num mapa, e ir descendo a Costa Americana, de acordo com as latitudes.Mas, não é assim tão difícil, e é surpreendente!

O problema do Bojador
Ou seja, é mais ou menos fácil perceber que as coisas começam depois de Gil Eanes ter coordenado uma grande expedição - exploratória da América - até 1434, que deve ter demorado quase 12 anos... pelo menos é disso que se queixa Henrique!

Quando os portugueses perceberam que passar o continente não era possível, dentro de latitudes razoáveis, o Infante Dom Henrique terá tido luz verde para avançar com o projecto Oriental, por parte do seu irmão, o Rei D. Duarte.

O problema, o "cabo", Bojador está dobrado! ... ou, dito doutra forma, que sentido faria parar as navegações e atacar Tanger de seguida?

Entre 1435 e 1440 não aparecem outros registos de navegações, é tempo de cruzadas, e do desastre de Tanger, em 1437.
- Apesar de Tanger ser costeira, a invasão vai ser por terra, partindo de Ceuta. Porquê?
Que eu saiba, ninguém tem justificação para esta estratégia do Infante Dom Henrique...Ora, no sentido de ser preparatória à Cruzada (... à IDA), contornando África, ele usa Tanger como simulação para mostrar que será perfeitamente possível, a partir de um ponto terrestre marchar por um terreno difícil, e atingir Jerusalém. Precisa do apoio dos aliados... e assim julgará convencê-los.

Não consegue, é derrotado!... Tem uma escapatória, o apoio por mar do irmão Fernando. É esse que ele escolhe para o substituir como refém, é esse que será o Infante Santo para manter Ceuta.

Há um claro trauma nacional, durante o cativeiro do Infante Santo, e faz-se ainda uma tentativa armada de resgate... mas sem sucesso. Como D. Duarte morre e há um problema na regência, pela menoridade de D. Afonso IV, a mãe aragonesa é rapidamente exilada - teria que ser, havia demasiados segredos em jogo, para qualquer conhecimento de Aragão! Nesse ponto, os irmãos Henrique e Pedro estão de acordo!


Infante Dom Pedro
- O Infante Dom Pedro, mais velho, assume a regência em 1439, e é o primeiro período de ouro, que marcará o que se passará de seguida. Haverá colaboração com Henrique, nesta nova empresa.
É o primeiro período de ouro - literalmente!
É o tempo das caravelas... rápidas na ligação com a América.
Se Gil Eanes se teria preocupado com a ligação ocidental até 1434, sem entrar no continente, navegando pela costa, a partir daí vão começar os contactos.

Logo de início, por Gil Eanes e Afonso Baldaia (1440) - os registos começam aí com Zurara (que escreve "sob orientação científica do Infante Dom Henrique", já depois de Pedro morrer).
Depois, é uma sucessão de nomes em África, que nenhuma importância aí têm, mas que se percebe terem importância - à mesma latitude - na América, por exemplo - o Rio do Ouro (que quase nem é rio, em África).

A costa vai descendo, Arguim, Tider, Ergim, invocando povos em ilhas que não passam de bancos de areia... em África. Do outro lado, na América, é só difícil saber exactamente que ilhas se tratam, em Zurara... já com Pacheco Pereira, é mais fácil.

É aqui que começa a atribuir a chegada do ouro aos "mercadores do deserto"... é a necessidade de fazer uma Feitoria em Arguim. É tempo dos Azenagues! Mas... onde se passará tudo isto? Porque não, do outro lado, no mesmo paralelo, no México, com os Aztecas?

O Infante Dom Pedro pode ter sido um excelente governante (a nível interno e externo), mas também beneficiou desta pequena dádiva de ouro, caída dos céus!

Mas toda essa estória fica para depois... Seguimos usando a descrição de Duarte Pacheco Pereira.

Cabo Verde
Chega-se a Cabo Verde. E a que corresponde o Cabo Verde?
Nada mais nada menos, do que à grande península do Iucatão...Porquê?... Porque a Costa Africana segue, mas à mesma latitude, a Americana não!
Qual é a brilhante ideia?
É que as ilhas de Cabo Verde irão ser associadas a Grandes Antilhas.
Assim, temos seguramente São Tiago = Cuba, depois as restantes, também não é difícil...
É por isso que o Cabo Verde, aparece como um grande Cabo deformado nos mapas... por isso aparece uma rosa-dos-ventos, o zénite, para justificar a distorção polar... e tantas outras coisas, por exemplo, é aqui que se faz a distinção entre Etiópia Superior e Etiópia Inferior... e depois a outra, a Etiópia Sob-Egipto, a que ele considera africana.
- Onde seguimos?
O próximo ponto possível, compatível com outras latitudes no continente Africano é, sem dúvida, localizado nas Honduras, na "Etiópia Inferior". Teremos aí outro ponto de referência.

Nicarágua
O nome mais importante que se segue, é o Rio Canágua... que depois é renomeado convenientemente:

Canágua >> Çanaga >> Senegal
conforme vai constando nas cartas!Do outro lado, o que temos?
Temos, exactamente a Nicarágua... e vejamos, a coisa não fica por aqui!
Como nomeia um chefe local? Trata-se do chefe Nicarao... Nicarao+Canágua ~ Nicarágua estamos ou não próximo de Nicarágua, cuja capital é Manágua? Sim!

Podemos ter mais umas coincidências... certíssimo!!
Mas então olhemos a descrição de um grande lago entrando no Canágua:
Temos uma lagoa com "32 por 12 léguas", falamos de 188Km por 72Km... dimensões exactas para o Lago da Nicarágua....
Não encontramos nada semelhante a isso no Rio Senegal! O lago Guier será de facto uma lagoa comparado com isto!
Convém ainda notar que a resistência à colonização espanhola foi muito prolongada, na zona da Nicarágua, e por isso não terá sido possível uma imediata renomeação...

Panamá e Sagres
Depois, de facto, vamos encontrar uma Serra Leoa... que será Leoa, no correspondente Panamá, pois impedirá a progressão para Ocidente.É a grande cadeia montanhosa do Panamá que liga a América do Sul à do Norte.Mais uma vez a Costa volta a subir, e o contorno americano não acompanha o africano...É tempo dos contornos ocidentais darem lugar aos orientais...

Resumo do paralelismo nas descrições de Duarte Pacheco e Zurara.
(nova inclusão: a 27/12/2009)
É aqui que pode recomeçar o projecto Oriental. É aqui que ficará o Cabo Sagres, conforme referido por Duarte Pacheco Pereira. É aqui que termina a colaboração do Infante Dom Henrique com o irmão Dom Pedro.

Segue-se a luta interna... com um Duque de Bragança a influenciar o jovem Afonso IV.É aqui que esse jovem rei decide humilhar o tio, pai da sua mulher. É tempo de Alfarrobeira, é tempo do Infante Dom Pedro morrer, para dar lugar às novas conquistas para a Cruzada, contra os infiéis. É tempo desse jovem rei conquistar praças africanas, até que o Infante Dom Henrique morre, e há uma nova esperança desejada - chama-se D. João II, acima de tudo, neto de Dom Pedro. Do outro lado, há uma Spera que se acentua, especialmente depois da conquista de Arzila e de Tanger, no tal Dia de São Bartolomeu.


Encoberto e Desejado
O grande feito ocidental foi encoberto e será tempo de esperar pelo primeiro "Desejado", cumprindo o Désir de Pedro.
- Do Pedro que o povo canta e que coloca uma fonte com o seu nome em Coimbra, pelos amores que lhe tem, conforme dirá Camões, que a isso junta ninfas do Mondego;
- Do Pedro, avô de Joane, que Gil Vicente coloca contra o Sapateiro da Candosa, contra o Rachador de Alverca - ou melhor, Alfarrobeira.

É o Pedro, desejado, do sonho ocidental, do sonho americano, colonizador...
Será esse Pedro que o povo amou ao ponto de nos deixar uma infinita melancolia de séculos. Por ser tão amado poderá aparecer, até como um Gigante Adamastor em D. João II, mas também como um Trágico Massacrado em D. Sebastião. Num ponto são comuns, os desejados desaparecem... até não mais aparecerem!

Um Désir, que afinal sempre esperámos depois do séc. XVI, e que o Padre António Vieira tornou claro não ser representado por D. João IV... (... a ser alguém, seria muito mais a sua mulher, a Rainha Luísa de Guzman, descendente de Ana de la Cerda e do português Rui Gomes da Silva "o Rei Gomez", príncipes de Eboli... mas isso é outra estória!)

Mas "o Encoberto" é também o contrário "do Descoberto", é a mensagem que fica presa a um nevoeiro, cada vez mais espesso, onde só nos chegam pequenos sinais... suficientes para uma eterna inquietação, de fantasmas que sepultámos mal, e que pedem que lhes seja honrada a memória!

Há só uma História? Ou há a Estória que deixa registos, que apaga registos, e que às vezes deixa pontas soltas... até que apareça alguém a assinalar, e depois se volte tudo a colar, durante mais alguns séculos. Tem sido assim! Neste momento, o que é preciso é rever o inacreditável, e que haja então quem invente outra Estória, melhor que esta, que cole todas coincidências de forma mais verosímel.




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